sábado, 22 de janeiro de 2022

A BELA DO RETRATO.

 

 Sérgio estava contente, pois havia conseguido mais uma peça para sua pequena coleção de antiguidades e arte; um retrato a óleo de uma moça trajada á moda antiga com cabelos encaracolados e belos olhos claros como âmbar. Encontrou-o num antiquário sem indicação de autoria ou data de execução, mas se apaixonou pela pintura daquela jovem anônima que lhe trazia o sabor de outros tempos, mas necessitava pequenos reparos.

 Assim levou-o á um amigo restaurador que elogiou a técnica e o esmero da pintura que remetia ás primeiras décadas do século XX. Havia pequenas marcas do tempo fáceis de corrigir além da necessidade de limpeza. O quadro seria entregue em um mês.

 Naquela noite Sérgio sonhou com aquela moça! Estavam em um ateliê e ele pintava o quadro. Mas estranhamente ele não conseguia ver o rosto da modelo.

 No dia marcado ele estava ansioso para ver o resultado da restauração, e não se decepcionou: o retrato estava ainda mais vívido nas cores em contraste com o fundo escuro. - Magnífico! – exultou. Então o restaurador mostrou algo que estava escondido sob a borda da moldura, nada menos do que a assinatura do artista: Maurice Gaeldi. - Não é nome conhecido; talvez tivesse sido algum pintor anônimo. – concluiu o restaurador.

 Surpreso, Sérgio exclamou: - Meu bisavô se chamava Maurice Gaeldi! Será possível tamanha coincidência?

 

 Maurice Gaeldi era um nome perdido em memórias imprecisas de sua família. Havia poucas fotos dele. Sabia-se apenas que era oriundo da província de La Matanza, na Argentina, e viera em 1916 para trabalhar na construção civil. Casou-se com sua bisavó Ana e teve filhos. Porém, faleceu em 1930. Depois Ana se casou de novo e o sobrenome Gaeldi foi suprimido em favor de Sousa do novo marido nas próximas gerações. Portanto, sendo uma referência muito antiga, sem testemunhas vivas, e com parentes sem interesse no assunto, Sérgio não teve como descobrir nada além daquilo do que velhos documentos guardados em pastas igualmente velhas poderiam revelar. A descoberta que seu bisavô foi um pintor aguçou a curiosidade que o levou á rastrear a trajetória do retrato até o antiquário.

Mas não puderam dizer-lhe muita coisa, pois o quadro veio em um lote contendo vários itens, arrematado de um guarda-móveis, e Sérgio seguiu até lá, e novamente as informações eram poucas. Disseram-lhe que quadro foi deixado junto á uma mobília, mas a pessoa que alugava o box, chamada Luzia Carvalhosa havia falecido, e não conseguiram encontrar parentes ou quem se responsabilizasse. Então como era de praxe aguardaram alguns anos e depois venderam o que tivesse valor, mas ficaram três malas cheias de roupas que só escaparam da caçamba do lixo porque foram esquecidas sob uma escada.

E lá se foi Sergio encher o bagageiro do seu carro com aquelas malas que exalavam cheiro de mofo, mas poderiam conter pistas sobre a origem da bela do retrato. Seria Luzia Carvalhosa?

 

Munido de luvas e máscara, Sérgio começou a esmiuçar o conteúdo das malas. Espalhou tudo no chão da garagem: blusas, saias, casacos, roupa de cama, e até roupas íntimas femininas um tanto antigas e roídas se traças. Havia também uma frasqueira com um velho estojo de pó de arroz, pentes, uma tesourinha enferrujada, uma escova e uma caixinha de grampos de cabelo, além de alguns apetrechos de costura. Era como violar a intimidade alheia, e por um instante Sérgio pensou nas pequenas antiguidades que colecionava, certamente vindas de espólios semelhantes. Sendo um solitário, e tendo parentes sem apreço á velharias e á arte, certamente iriam parar em mãos estranhas, ou no lixo depois que ele se fosse. Então abanou a cabeça e se concentrou no que tinha que fazer.

 As malas já estavam vazias e não encontrou nada que trouxesse uma pista, apenas fragmentos de um cotidiano comezinho. Sérgio ficou desanimado; estava cansado. - Foi inútil. – concluiu, e mais tarde recolheria tudo aquilo com destino certo, a lixeira. Olhou a frasqueira, e quando foi apanhá-la, o forro apodrecido se desfez, deixando cair algo: era um pequeno maço de papéis amarrado com barbante: folhas de caderneta de mercearia marcadas como “pago”, notinhas de farmácia além de uma velha filipeta anunciando uma cartomante de nome madame Circe com o número do telefone. Então se surpreendeu, pois também havia um bilhete! “Guarde o quadro como lembrança da nossa amizade. Abraços: Maria”. Mais um misterioso nome feminino sem pista alguma, apenas o papelzinho da cartomante. Será que aquele número ainda valia?

 

 Na manhã seguinte chegou ao apartamento num antigo prédio da cidade, cuja porta estava enfeitada com uma guirlanda cheia de bolinhas coloridas: Era dezembro, e ele até se esquecera do natal!

 Uma mulher elegante de nome Vera atendeu Sérgio e convidou-o á entrar na saleta de visitas enquanto dizia: – Eu achei tão engraçado alguém ligar procurando pela madame Circe! – riso: - Era o nome que minha falecida mãe usava quando botava cartas. O nome dela era Maria, e Maurice Gaeldi foi meu bisavô!

 Surpreso, Sérgio perguntou: - Então,... Nós somos parentes?

 - Não exatamente! Você sabe que ele veio da Argentina para trabalhar aqui na construção civil?

 - Sim; ele veio da cidade de La Matanza; então conheceu minha bisavó Ana, e se casaram. – respondeu.

 - Certo,... Mas há uma parte da história que você não sabe. Ele já era casado quando deixou a Argentina! – Sérgio ficou boquiaberto e ela prosseguiu. – Era com a minha bisavó que se chamava Violeta. Eles se casaram muito jovens, tiveram dois filhos, e se separaram! – mostrou antigas cartas: - Só que mesmo se arriscando ele a trouxe para o Brasil, e manteve as duas famílias até falecer em 1930. – riso: - Foi um escândalo! Mas ele deixou a bisa Violeta amparada. Está chocado?

Lendo as cartas em castelhano, Sérgio falou: - Estou surpreso! Agora entendo porque tios e tias mais velhos não gostavam de falar dele. – abanou a cabeça: - Minha família é muito careta!

 - Ah, mas aqui nós sempre falamos no bisavô argentino com muito carinho. Venha, vou lhe mostrar algo! – seguiram á uma sala de jantar com vários quadros nas paredes e também pinturas de mulheres vestidas á moda da década de 1920. Vera foi enumerando: - Esta aqui é a atriz Glória Swanson! - apontou outras: - Ali, é Mary Picford, e adiante Theda Bara e Lia Torá! – se virou á Sérgio: - Nosso bisavô gostava de pintar retratos das atrizes do cinema mudo, e a tela que você possui é a atriz Lilian Gish, que foi dado de presente á Luzia, uma amiga de mamãe!

 - Ora essa, então a bela do retrato era uma atriz de Hollywood! – riso: - Nós nunca soubemos deste talento do bisavô. Talvez ele reservasse este lado artístico á Violeta! – deu de ombros.

 - Haverá partes desta história que jamais saberemos! – suspirou: - Esses homens latinos e esta mania de terem um amor á cada porto! Será que haverá mais algum por aí?

 Ele sorriu: - É melhor nem querermos saber! – os dois riram e Vera disse: - Eu estava montando minha árvore de natal; que tal você me ajudar? Depois faremos um lanche!

 Sergio aceitou, e voltou depois diversas vezes para saber mais daquela família, que se não era a sua, era como se fosse. Ele se sentia á vontade naquele apartamento repleto de arte. Talvez fosse o início de uma bela amizade.

Ou um amor?

 

FIM (?)