Um conto de Marcelo Espindola & Ramón Brandão.
Parte 1
O prédio se chamava Edifício Doutor Egídio Ladeira em homenagem ao proprietário do antigo solar, desaparecido para sua construção. Ninguém deu muita atenção á demolição; acharam até bom ter menos um pardieiro na cidade, agora substituído pela arquitetura moderna do novo prédio de apartamentos.
O jovem casal arrumava a mudança no apartamento 101. João, Débora e o filho de quatro anos, Caíque. Estavam felizes com seu novo lar num prédio recém-construído ainda cheirando á materiais de construção. Para eles, uma conquista!
À noite, estavam exaustos. Foi apenas o tempo de preparar sua primeira refeição na nova cozinha, tomarem banho, colocarem Caíque na cama no seu lindo quarto.
No leito, o casal trocava carícias antes do sexo quando Caíque chegou à porta choramingando, enquanto buscava o aconchego dos pais. - Deve estar estranhando a casa nova, João! - falou Débora. Então concordaram em deixá-lo dormir com eles, só aquela noite. Débora riu ao dizer: - É meio estranho morar num prédio onde apenas nós somos os moradores!
- Daqui a pouco teremos vizinhos! - olhou Caíque dormindo: - Amanhã, esse mocinho irá para a aula. Aí, volto e a gente tira o atraso! - Débora riu.
Depois de deixar Caíque na escolinha, João voltou para casa a fim de aproveitar o dia de folga com Débora.
Na garagem, ainda cumprimentou a funcionária da conservadora se preparando para limpar o saguão do prédio.
O final da manhã encontrou-os na cama no restinho das carícias trocando impressões sobre a nova casa e o choro de Caíque: - A psicóloga disse que é normal crianças pequenas estranhem o quarto diferente noutra casa. Ele se acostuma!
- Ah, está quase tudo arrumado! – completou Débora. Eles se aproximaram para um beijo quando escutaram batidas que pareciam virem da báscula da suíte que dava num respiradouro à garagem. Parecia alguém pedindo ajuda.
A faxineira tinha ficado presa no quartinho de guardar os itens de limpeza do prédio. João abriu a porta e ela explicava: - Eu entrei para apanhar a vassoura e a porta fechou sozinha! Aí, não consegui abrir! - ele a experimentou, e abriu e fechou normalmente. Mas por via das dúvidas, comunicaria á Avelino, o construtor do prédio que vivia na cobertura, um possível defeito na fechadura.
Enquanto isto, Débora seguia para a cozinha para preparar algo para o almoço. E quando passou pela porta do quarto de Caíque, viu que todos os brinquedos estavam esparramados pelo chão. Ela abanou a cabeça: - Menino levado! - sussurrou, enquanto alisou a barriga discretamente.
À tarde, João voltou para casa trazendo o pequeno Caíque, adormecido nos braços, logo colocado na sua caminha para o final do cochilo, antes do banho e o lanche. - Ah, tão bom voltar para a nossa casa! - falou abraçado à Débora - Como foi o dia na casa nova?
- Cheio de novidades! Vamos ter uma vizinha nova no andar de cima, uma senhora chamada Clóris!
- Que nome engraçado!
- Ela é judia. Boa companhia para o senhor João Steinberg!
- Judeu que nem sabe ler a Torá! - riu - Mais novidades?
-Veio também um rapaz ver o apartamento do lado. Adorou, e vai trazer a mulher para ver amanhã. Ela está grávida! - sorriu - Será uma boa companhia para mim neste momento tão especial!
João abriu um sorriso: - Não brinque assim comigo, Débora! O que está querendo dizer?
Ela mostrou o exame: - Que estamos grávidos, amor! Três meses!
Ele a abraçou e beijou: - Que fantástico! Ah danadinha; então era por isso que queria apartamento de três quartos, héim?
- Era bom prevenir, né?
- Será que vem aí nossa garotinha?
- Ou mais um garoto... E por falar nisso, olha ele na porta!
- Mãe... tô com fome! - João o segurou no colo e disse: - Tudo de bom, amor! Ah, esse lugar vai nos trazer sorte!
Na hora de dormir, Débora entrou no quarto de Caíque. O garoto estava deitado e quieto na cama, mas seus brinquedos estavam espalhados pelo chão: - Ah, que bagunça! – exclamou, e se abaixou para guardar tudo, sob o olhar do menino. Depois, sentou na cama para o beijo de boa noite: - Dorme com Deus, querido! - e saiu, deixando o abajur ligado.
Voltou ao seu quarto e se enfiou debaixo das cobertas com João, que perguntou: - Caíque está quietinho?
- Sim, estava quase dormindo. Foi um dia cheio! - respondeu Débora, se aninhando ao lado do marido. Então, se amaram bem quietinhos, sem barulhos.
Na madrugada, João despertou. Pareceu ter ouvido algo. A mulher estava dormindo. Então, ele prestou atenção, mas estava tudo em silêncio. Devia ter sido um barulho na rua. Ele precisou ir ao banheiro e se levantou devagar para não despertá-la.
No retorno ao quarto, notou a luz do corredor vazando pela fresta da porta da sala. A lâmpada possuía sensor de movimento, que acendia quando alguém passava. Estranhou porque somente o seu apartamento e o da cobertura estavam ocupados. Concluiu que devia ser Avelino chegando ou saindo.
Depois se aproximou da porta do quartinho de Caíque, que dormia profundamente. João sorriu, e voltou para cama, não sem antes notar na penumbra do abajur seus brinquedos espalhados pelo quarto.
Na manhã seguinte, João se preparava para levar o filho á escola. Débora teria um dia de trabalho cheio. Por causa da mudança, não pode exercer a função de tradutora para uma editora, e havia trabalho acumulado: - É a vida voltando à rotina, meu amor!
- Mas não exagere! – beijou-a: - Agora você está em estado interessante! – os dois riram, e João saiu.
Ao passar pela garagem, olhou a porta do quartinho de vassouras aberta e viu Avelino lá dentro, que veio sorridente: - E então; estão gostando do apê?
- É ótimo! Estamos adorando.
- Fico feliz em saber. Construí com muito carinho, sabe? - olhou em torno.
- Sem dúvida. - respondeu João: - Preciso ir, tenha um bom dia! Venha filho. - o menino olhava pela porta do quartinho aberta, quando Avelino o afastou: - Não entre aí campeão. Está sujo! - e riu, fechando a porta. João pegou o filho pela mão e seguiram ao carro.
Débora terminava de lavar a louça do café da manhã e seguia ao quarto de Caíque. Abanou a cabeça ao ver todos os brinquedos fora do seu bauzinho amarelo. O garoto nunca tinha sido tão bagunceiro; mas creditou ao estranhamento a nova casa enquanto recolhia carrinhos e bonecos pelo chão. Quando foi guardar, viu apenas um boneco, o menino personagem de "Ben 10", dentro do baú. Deu de ombros e guardou os outros brinquedos. Depois, seguiu ao quarto transformado em escritório, e sorriu ao pensar que futuramente seria dormitório do bebê que esperava enquanto acariciava a barriga. Mas o trabalho a esperava. Então, ligou o computador e começou a tradução num texto acadêmico.
Depois de um tempo, escutou pessoas no corredor. Era o casal acompanhado por Avelino indo ver o apartamento ao lado. Seria tão bom ter uma vizinha também jovem e grávida para trocarem impressões e dicas!
Depois de um breve espaço de tempo as vozes tomaram o tom de uma urgência de socorro e Débora foi conferir. A mulher grávida saiu amparada pelo marido e Avelino. Parecia estar sentindo dores abdominais. Em pânico o marido ligou para o médico dizendo que estavam seguindo ao hospital. Avelino e Débora ajudaram-nos á descer a escada e colocá-la no carro, que saiu rápido. Débora perguntou: - O que houve senhor Avelino?
- Não sei! Tava tudo bem e ela começou a passar mal do nada!
- Deus ajude que não seja nada grave! – concluiu Débora
Ao fim da tarde, João voltava para casa, trazendo Caíque sonolento ao colo. Ao seguir á escada, viu um cachorrinho sentado diante da porta do quartinho de vassouras. Era um poodle que não desviava a atenção da porta. Então, ouviu uma voz feminina: - Penny! Aqui, Penny! - era uma senhora de cabelos grisalhos que chamava o cãozinho. - Fujona! Oh,... O senhor é João e este é seu filhinho Caíque?
- Sim senhora...
- Nem me apresentei. Sou Clóris, a nova moradora do apartamento 201. Conheci sua esposa mais cedo!
- Ah, sim. Muito prazer.
Ela se abaixou para apanhar o cãozinho: - Venha querida! - pegou-a nos braços. João sorriu e falou: - Bem, se me dá licença, preciso subir porque daqui a pouco meu garoto vai querer lanchar!
- Oh sim, que criança adorável! Dê tchauzinho aos vizinhos, Penny! - falou segurando a patinha da cachorrinha.
João seguiu, segurando um pouco o riso: - Penny? Que figura!
Mais tarde, o casal ainda comentava sobre o episódio da grávida que passou mal na visita ao apartamento, e Débora dizia ter marcado visita à ginecologista na manhã seguinte. João a levaria depois de deixar Caíque na escolinha, e riu ao relatar um caso: a professora me perguntou quem era o "Doutor Egídio" porque Caíque o mencionou na aula. Eu disse que é o nome do nosso prédio. Então ela achou graça. Débora sorriu: - É sinal de que ele está amando nossa casa, como eu! Ah, estou tão contente!
João segurou sua mão e disse: - Também estou muito feliz!... É a primeira vez que vivo numa casa nova, de primeira locação. – olhou em volta: - Depois que meu pai faleceu, eu, mamãe e vovó, passamos por muitas dificuldades. Não foi fácil! -riso: - Se te falarem que todo judeu é rico; não acredite!
- Puxa! E eu crente que tinha dado o golpe do baú! – zombou Débora, e os dois se beijaram.
Então escutaram um barulho no andar de cima, seguido do ruído das unhas do cãozinho atritando no chão ao andar, e a voz de Clóris: ah, Penny levada! - eles riram - Que figura essa senhora Clóris!
- Ela é boazinha, João! Deixe-me ver o que nosso Caíque está aprontando! Criança quando fica muito quieta, já viu né? - E saiu rumo ao quarto do filho.
Ao chegar ao quarto, todos os brinquedos estavam esparramados e Caíque sentado diante do baú amarelo. A mãe se aproximou: filho, o que está fazendo?
Caíque colocou o dedinho nos lábios: - Shhhhhh! Não faz barulho. O menino não pode ouvir!
- Que menino?
Ele apontou ao baú. Débora olhou-o. Era o bonequinho "Ben 10" colocado bem no fundo: - Filho, por que você pôs ele aí?
- Pra dormir! - fechou a tampa - Ele não pode acordar!
- Mas e os outros brinquedos e bonecos? Vão dormir onde Caíque?
Ele deu de ombros: - A gente coloca na gaveta. O baú é só dele, tá mãe?
Ela concordou: - Está bem filho. Vou buscar aquela caixa organizadora azul então para não deixar seu quartinho bagunçado.
João lavou a louça do lanche e iria à sala ligar a TV para assistir futebol, quando se assustou ao ver a porta da frente aberta. Por um instante, pensou que Débora tivesse saído ao corredor, mas estava vazio, exceto pela presença de Penny sentadinha no degrau da escada olhando-o fixo.
- Penny? - Ouviu a voz de Clóris - Fugiu de novo? - assobiou - Vem querida! - o cãozinho subiu rápido e ouviu-se a porta do apartamento de cima se fechar. João ficou sem entender e Débora se aproximou: - O que foi amor?
- Você deixou a porta da frente aberta, Débora?
- Não!... Oh, espere. Eu ia pôr o lixo pra fora e o telefone tocou. Era da editora. Ah meu Deus, devo ter esquecido!
- Ah,... Sim. Levou o lixo?
- Acabei esquecendo!
- Então eu levo!
João desceu à portaria e, ao retornar, ouviu ruídos na garagem. Quando se preparava para conferir, escutou a voz de Avelino. Concluiu que devia ser ele e retornou ao seu apartamento.
Mas á madrugada João acordou com a impressão de ter escutado algo. Mesmo sendo na parte central da pequena cidade, haveria silencio naquela hora da noite. Às vezes se ouvia um ou outro carro passando ou o apito do trem que ecoava por todo o vale. Débora dormia tranquila, meio descoberta. Ele a cobriu e levantou. Passou ao quarto de Caíque, que também dormia. Depois, seguiu à sala e se sentou no sofá, sem acender qualquer luz, e notou a luz acesa no corredor vazando pela fresta da porta da frente: - Que diabo; Avelino não dorme? - se perguntou. Depois de dez minutos, a luz apagou. Ele recostou no sofá, buscando o sono e a luz tornou a acender, mas não houve qualquer barulho no corredor. Ele seguiu à porta e a abriu: - Mas... Que merda é essa? - resmungou ao ver Penny sentada na porta de sua casa, em silêncio. Abaixou-se e ela se aproximou, abanando o rabo. Ele deixou que ela lhe cheirasse a mão para não assustá-la e a pegou resmungando.
- Que velha doida essa Clóris, deixando o bichinho pra fora de casa!
Com cuidado, apanhou-a no colo e seguiu ao andar de cima, aproximando-se da porta e havia ruídos. Não tocou a campainha, preferindo bater de leve, chamando devagar: - Dona Clóris, está acordada? Penny ficou do lado de fora! - após uns instantes, se ouviu barulho de chinelo arrastando e a voz dela:
- Quem está aí?
- João, o vizinho de baixo. Sua cachorrinha ficou presa do lado de fora.
Ela abriu a porta e espiou, com a corrente presa, e exclamou: - Penny? Oh meu Deus! - abriu a porta e a apanhou: - Menina levada! Aproveitou um descuido para fugir! - olhou-o: - Obrigada, senhor João. E desculpe o incômodo!
- Não tem de quê. Boa noite, senhora. - e voltou ao seu apartamento para nova surpresa. Seu filho estava em pé à porta.
- Caíque?
- Quero água!
João o pegou, fechou a porta e foram à cozinha. Depois, colocou o filho na cama e voltou ao seu quarto. Uma noite de insônia o aguardava.
A manhã seguinte foi no ritmo de uma noite mal dormida para João.
Depois de deixar Caíque na escola e Débora na clínica da ginecologista, onde se demoraria em exames, ele passou no escritório, apanhou alguns processos para examinar em casa. Mas isto era desculpa, porque o que faria de verdade era tirar um cochilo para aguentar o dia.
Então teve um sonho estranho: ele abria a porta do quartinho de vassouras na garagem, e era porão muito antigo com diversos objetos guardados: baús e móveis quebrados. Andou um pouco segurando um lampião, quando tropeçou em algo escondido na penumbra...
Foi despertado pelo telefone; Era Débora, informando que demoraria nos exames, que havia almoço pronto na geladeira e outras recomendações domésticas. Conversaram um pouco e desligaram. João olhou o relógio, que marcava 11h05min da manhã, e seguiu ao escritório para examinar alguns os processos: - Ossos do ofício do Direito! - pensou. Então, viu que seu notebook ficou no carro.
Ele desceu à garagem e viu um carro parado ao lado do seu Ford Eco Sport: era um Fiat Argo preto. Como a pick-up de Avelino também estava ali, devia ser mais um candidato a inquilino. Deu de ombros, apanhou seu notebook e quando seguia à escada, viu um objeto coberto com uma lona. Ele descobriu uma parte e era um piano antigo, que também lhe tangenciou memórias de sua avó, que tocava piano, Então, deteve-se diante da porta do quartinho de vassouras, lembrando-se do sonho durante o cochilo. A curiosidade tomou as rédeas, e João girou a maçaneta abrindo a porta.
Estava escuro e João ligou a luz: era um cômodo estreito onde exalava cheiro seco de obra nova. Havia um pequeno banheiro com vaso sanitário, pia e chuveiro. No lado oposto, o cômodo seguia como uma espécie de corredor repleto de prateleiras contendo produtos de limpeza, panos, latas de tinta e outros itens de construção terminando num portão de ferro. João seguiu até o fim e não estava trancado. Dava numa área de serviços que tomava toda a extensão dos fundos do prédio. Acima, via-se o paredão despontando janelas dos apartamentos dos fundos, todas fechadas, pois nenhum dos apartamentos estava ocupado. A área estava em desordem com restos de material de construção, peneiras, carrinhos de mão, sacos de cimento, azulejos e sacos contendo entulhos diversos. João abanou a cabeça ante a bagunça. Então, ecoou o barulho da porta se fechando. Ele correu para a saída, tentou girar a maçaneta que parecia emperrada e a porta não abria: - Mas que merda... Trancou? - ele insistia, mas a fechadura nem se movia e a porta permanecia fechada. Aflito, João começou a bater, pedindo ajuda: - Hei! Alguém aí me ajude. A porta emperrou! - ainda insistia sem conseguir. Estava sem seu celular. Então, decidiu voltar à área, torcendo para que Avelino tivesse levado o inquilino a um dos apartamentos dos fundos, e assim pudesse pedir ajuda.
CONTINUA...