sexta-feira, 5 de novembro de 2021

OS PÉS DE CHINELO - conto publicado inicialmente em 07 de outubro de 2019.

 


 Paulo se sentia feliz ao estacionar seu Hyundai HB20 a entrada daquela casa de campo, cuja arquitetura mesclava estilo contemporâneo a antigos materiais de demolição, digna de figurar nas melhores revistas de arquitetura e decoração! Ele entrou junto a sua mulher Clara e Pablo, seu filho de dois anos e foram capturando todos os detalhes nas retinas: antiguidades, sofás aconchegantes cheios de almofadas e uma galeria de velhas fotos no corredor para melhor compor o ambiente. Uma delas estava torta e Paulo a endireitou com cuidado antes de voltar à sala onde o filhinho brincava. Ele se aproximou de Clara por trás, beijando-a no cangote. – Que casa linda; o doutor Flávio Levi foi muito legal ao emprestar pra gente! – Clara sorriu de leve, observando o pequeno Pablo já á vontade sentado no chão com seus dinossauros de brinquedo.

 Eles decidiram não passear, optando pelo descanso após a viagem, e á noite Paulo se esparramava no sofá adiante da TV assistindo ao noticiário esperando o sono chegar, pois apesar do cansaço estava exultante por poder usufruir daquele conforto numa deferência do patrão ao seu auxiliar mais competente. Clara e Pablo já estavam dormindo e a TV em volume baixo para não perturbar, sendo possível ouvir o farfalhar do vento nas árvores. Paulo se afundou mais ainda no sofá deixando o corpo no abandono da preguiça quando subitamente ouviu algo: perecia alguém calçando chinelos e vinha do quarto. Como tinha suíte, imaginou que a mulher se levantou para ir ao banheiro e tornou a relaxar no sofá. Instantes depois o barulho recomeçou, desta vez no corredor. Ele se ergueu e chamou-a. – Clara; é você? – não houve resposta e o ruído parou um instante, voltando em seguida. Intrigado, Paulo seguiu ao corredor e o barulho cessou novamente, recomeçando na sala onde ele estava. Enquanto andava em círculos pela sala ouviu o mesmo ruído, desta vez na varanda. Ele abriu a porta com cuidado e viu que folhas largas de uma costela de adão oscilavam ao vento e roçavam no gradil de madeira da amurada. Ele abanou a cabeça e riu, depois entrou e desligou a TV, seguindo ao quarto. Clara dormia de lado, encolhidinha. Ele se deitou fazendo conchinha a mulher.

Na manhã seguinte após o café, Paulo saiu com o filhinho para explorar o bosque. O vizinho possuía cavalos e ele queria mostrá-los a Pablo. Clara não os acompanharia, pois iria fazer o almoço utilizando o fogão de lenha. Ela preparou os ingredientes na bancada e de repente pareceu ter escutado algo no corredor da casa e seguiu para verificar. Não tinha ninguém, mas o som se repetiu no lavabo, e ao entrar a porta fechou sozinha. Clara foi abri-la e se deteve ao ouvir passos arrastando chinelos no corredor de um lado á outro. – Paulo? ... É você? Não brinque assim! – nenhuma resposta. Então veio o temor de algum invasor: talvez um assaltante.  Assustada, falou. – Eu não estou sozinha, meu marido está aí fora! Se não falar quem é eu vou gritar! – as passadas cessaram. Então ela ouviu batidas á porta. – Clara meu amor, o que está acontecendo? – era Paulo. Ela abriu a porta se jogando nos seus braços e contou que escutou passos de alguém calçando chinelos se arrastando no chão. Ele abanou a cabeça, tranquilizando-a e mostrando a moita de costelas de adão que se debruçavam no gradil da amurada de madeira fazendo ruídos ao tremular no vento e disse: – Somos bichos de cidade e não conhecemos nada de roça! – riso. – Vai ver que a natureza anda arrastando os chinelos, né? – e a abraçou. Clara olhava em torno ainda assustada.

Após o almoço a jovem família foi passear. Foram á cachoeirinha já combinando um mergulho na manhã seguinte, e depois seguiram ao pequeno povoado próximo; um lugar aprazível com um parquinho na praça rodeada de bancos de madeira onde eles poderiam namorar à moda antiga.

         Á noite o casal conversava quase desaparecendo no mar de almofadas coloridas do sofá enquanto o pequeno Pablo dormia no quarto exausto de tantas aventuras. A TV estava ligada e Paulo brincou. – Não acredito que você vai ver novela! – ela respondeu. – O que mais tem pra fazer aqui de noite? – Paulo sorriu malicioso ao dizer: - Tanta coisa! – e se abraçaram, preparando-se para o amor. Mas foram interrompidos pelo barulho dos chinelos arrastando no chão no quarto onde Pablo dormia. Sem pensar duas vezes os pais correram e o ruído desapareceu. Clara falou. – Não foi uma planta balançando lá fora, o barulho veio de dentro de casa... Não estou gostando disto! – Paulo coçou a cabeça sem resposta e o ruído se repetiu na sala, mas ao chegarem era apenas silencio. Nervoso, ele saiu à varanda e pediu que Clara trouxesse uma toalha que usaria para cobrir as plantas evitando que se encostassem à grade de madeira, e os ruídos pararam.

A madrugada seguia tranquila com a pequena família adormecida até Clara despertar escutando algo estranho: parecia um murmúrio de vozes vindo de fora da casa. Muitas vozes. Intrigada, ela acordou o marido. – Paulo, tem gente lá fora! – ele já ia repetir que eram apenas sons da floresta quando o murmúrio recomeçou. Devagar ele seguiu á janela que deixava ver a varanda, mas estava escuro demais para enxergar qualquer coisa. Ele cochichou. - Vou acender as luzes da varanda e do jardim. Fique aqui olhando da janela! – em instantes todas as luzes ao redor da casa estavam acesas e Clara o viu chegar á varanda, olhar em torno e ainda caminhar pelo jardim. Depois entrou dizendo. – Não vi ninguém. Quando acendi a luz você viu alguém correr? – ela abanou a cabeça dizendo. – Não vi, e você não devia ter ido lá fora,... – então ouviram o barulho no quarto e Pablo chorou. Os dois voaram ate lá e o menino olhava a porta. O arrastar de chinelos recomeçou na sala. Paulo seguiu ao corredor e falou. – Seja quem for; eu estou armado! – blefou. – Vá embora! – trancou a porta do quarto, pegou o filho no colo e deitaram-se os três na cama de casal. Em instantes o barulho e as vozes cessaram. Custaram a dormir e deixaram todas as luzes externas acesas o resto da noite.

         Na manhã seguinte Paulo seguiu à casa de Cláudio, o vizinho dos cavalos, buscando alguma explicação para aqueles fenômenos. Ao ouvi-lo relatar os ruídos de pés arrastando chinelos e o som de vozes, ele abanou a cabeça afirmando que naquela noite ficou acordado até tarde, e disse que não ouviu nem viu nada de anormal, até porque possuía cães de guarda que alertariam á qualquer movimento de estranhos na estrada ou mesmo na mata nos arredores. Paulo passou as mãos nos cabelos e disse. – Minha mulher está apavorada! O que é isto; são fantasmas?

 - Oh não! – Cláudio respondeu que, como estava na primavera, aquele som que parecia pessoas falando ao mesmo tempo, eram sapos e pererecas em período de acasalamento, coachando. E quanto ao barulho de chinelo, certamente eram gambás andando por baixo do assoalho a procura de comida ou morcegos que entram pelas aberturas nas cumeeiras do telhado e voam próximos ao teto alto, por isto não os viam, mas ele teria a solução. Tirou um pequeno apito do bolso, o entregou á Paulo e disse: - Isto aqui emite um som que a gente não consegue ouvir, mas os morcegos e gambás sim e fogem quando escutam! – Paulo apanhou o apito e soprou. Os cães latiram ao mesmo tempo. – Está vendo? – sorriu Cláudio. – Quando começar o barulho dos chinelos assopre com força que os bichos vão sair correndo! – riso – Qual fantasma assombraria uma casa estalando de nova? – Paulo concordou e agradeceu.

De volta á vivenda, Clara segurava o apito com desdém. – Mas o que a gente ouviu foi passos calçados de chinelos por toda a casa e gente falando, e não barulho de sapos e gambás! – Paulo tomou o apito e disse. – Eu já não tenho tanta certeza. O que ouvimos foram ruídos e sons do campo que não conhecemos e assim os associamos a algo familiar. É isto! – Clara olhou-o sem crer. – Vamos conferir? – afirmou Paulo assoprando o apito. Deu para ouvir o ladrar dos cães do vizinho ao longe e em seguida um ruído de algo que parecia se arrastar no chão que deviam ser gambás. Ele apontou para o teto sem tirar o apito da boca mostrando dois morcegos voando junto ao teto, aparentemente alucinados pelo som que só eles ouviam. Clara cobriu a cabeça com as mãos enquanto os animais revoaram pelos cômodos da casa até acharem uma janela aberta para saírem rápido. Então Paulo tirou o apito da boca: – Viu? Você está assustada á toa! – Clara aceitou a explicação ainda desconfiada. Na verdade queria ir embora dali. 

O resto do dia passou tranquilo. Á tarde visitaram Cláudio para agradecer e aproveitaram para uma pequena cavalgada. Convidados á jantar, eles ficaram até tarde na casa do vizinho. Tudo perfeito. No dia seguinte já tinham programa certo: um banho na cachoeirinha.

Á noite Clara estava na cozinha lavando louça enquanto Pablo dormia no quarto. Paulo se aproximou e deu um cheiro no pescoço da mulher, que se assustou deixando uma xícara cair: - Droga! – reclamou ao que ele falou: - Calma, é apenas uma xícara! – ela o encarou: - Paulo, eu acho que a gente devia ir embora! - ele reagiu: - Ora, Por quê?  - ela respondeu: - Essa casa me dá arrepios e aquelas vozes pareciam dizer “vão embora”! – ele retrucou: - Ah Clara, por favor, eram só sapos coachando! – ela prosseguiu. – Seja lá o que for eu não estou gostando! – Paulo abanou a cabeça e respondeu impaciente: - Que diabo, Clara! Eu arranjei esta casa pra gente passar um fim de semana gostoso, e parece que nada é bom para você! – ela se esquivou irônica: - Esse lugar é estranho, mas não se pode falar nada, porque foi agrado do doutor Flávio! – ele replicou: - O que você está querendo dizer com isto? – ela disparou: - Que você é um puxa saco do patrão! – nisto o som dos chinelos e murmúrios reiniciaram e ela ameaçou: - Se você quer ficar, eu vou embora! - exaltado Paulo respondeu: - Você vai ficar aqui! - e colocou o apito na boca, mas o barulho não parava, parecendo ecoar por toda a casa quase como se fossem passos de muitas pessoas calçando chinelos, fazendo Pablo acordar chorando. O casal não o ouviu e continuou discutindo enquanto o barulho se tornava um sapateado macabro consonante á ladainha sombria de vozes cada vez mais intensa.

 

 Meses depois, um Mercedes-Benz prata parava diante da casa. Saiu um homem: era Flávio Levi, dono da vivenda. Uma mulher saiu também: sua esposa Mara que falou. – É tão linda esta casa que nós construímos querido. O pessoal da revista de arquitetura quer fazer uma matéria! – Flávio sorriu largo e disse. – Ela está pronta há dois anos e só agora nós podemos passar um fim de semana aqui com ela prontinha! - o casal entrou e Mara perguntou: – Você trocou os móveis do quarto? – ele respondeu: - Sim. Coisa mais triste o filhinho de Paulo e Clara ter fraturado o crânio ao cair da cama e morrido. - Mara o confortou: - Não temos culpa da negligência dos pais do garoto, amor! - Flavio tentou amenizar. – Não devemos julgar. - Sara insistiu. – Mas isso agora acabou. Daqui em diante nada de emprestar a casa á ninguém! Só a gente vem aqui. – ele concordou e afirmou: - eu queria ter trocado todos os móveis da casa! – Mara discordou. – Que absurdo, claro que não! Deu muito trabalho garimpar esses móveis em antiquários, principalmente estes que vieram da Europa! – falava Mara alisando o tempo de uma papeleira. Flávio deu de ombros e andou pelo corredor observando a galeria de fotos antigas. – Onde você conseguiu esses retratos? – Mara se aproximou respondendo: - Vieram junto com os móveis.  – Flávio olhava-os: pareciam fotos de família com muita gente, todos sérios e calçados de chinelos. Havia um quadro torto de uma mulher loira com olhar severo e uniforme. Ele o corrigiu e observou com atenção: - Tem um negocio escrito. – chegou mais perto. – “Irma Grese,... Bergen Belsen, 1939, konzentra... Lager...” está borrado, não dá para ler direito, parece alemão. – Mara explicou: – O antiquário falou que é o nome de um hotel na Alemanha e essa mulher devia ser camareira, ou sei lá! – ele fez um muxoxo, dizendo. – Livre-se desses retratos; são feios! – ela discordou. – De jeito nenhum, são relíquias! – ele olhou de novo o retrato e pensou: - Berger Belsen... Engraçado, esse nome não me é estranho. - Mara respondeu: - A próxima vez que formos a Europa, vamos lá! Quem sabe esse hotel ainda existe? - ele deu de ombros e seguiu ao quarto junto á esposa.

 

Dois dias depois, homens do corpo de bombeiros faziam rescaldo no incêndio que destruiu a vivenda, matando Mara e Flávio carbonizados. Não havia explicação para o sinistro, apenas a explicação de Claudius, o vizinho, de que a casa teria problemas elétricos, mas Flávio não o ouviu. - Provavelmente foi um curto circuito! – concluíram.

 

Um ano depois, Claudius adquiriu a propriedade dos filhos do casal Levi, que, traumatizados, se desfizeram dela. Satisfeito, ele enterrou restos de móveis e fotografias antigas retiradas dos escombros. Então abanou a cabeça ao dizer: - Que pena que o doutor Flávio Levi não prestou atenção aos detalhes e se esqueceu da própria história do seu povo! – riu: - Burguesinho ignorante; vai ver que nem sabia que era judeu! Mas tudo isto poderia ser evitado se tivesse me vendido a propriedade quando eu quis! – Então abriu uma pasta com a escritura de posse do novo proprietário: Claudius Hermann Grese, e sorriu ao dizer: – Obrigado, vovó! – e fez a saudação nazista.

 

Fim