sexta-feira, 14 de agosto de 2020

CONTOS DA PRAÇA DA ESTAÇÃO #6

 

SATIRO

Meia noite e vinte; uma mulher chega afoita ao ponto de ônibus da Praça da Estação. É empregada doméstica e aquela noite teve como missão evitar que a patroa pulasse pela janela do apartamento no sétimo andar, por que seu marido pediu o divórcio e foi embora. A filha da patroa lhe pediu que ficasse com a mãe até que ela viesse do Rio de Janeiro, bem rápido, como se a cidade maravilhosa ficasse na esquina!

Chuviscava, fazia frio e havia a bendita máscara por causa da covid embaçando seus óculos. O ponto estava vazio àquela hora com apenas um casal e um homem. Como ela não queria ficar sozinha naquele lugar, buscou asilo junto ao casal, mas o ônibus deles veio logo, restando apenas á companhia daquele cavalheiro, sentado no banco, que usava casaco preto de couro e boné. Porém, ao se aproximar viu que ele não estava com máscara, então não chegou muito perto sentando na pontinha do banco. Mas nem por isto deixou de ser gentil:

- Boa noite, senhor.

- Boa noite.

- O senhor viu se o ônibus do Linhares já passou?

Ele deu de ombros: - Não reparei, cheguei a pouco também. De longe eu vi um ônibus, mas depois que esse povo da prefeitura achou de mudar a cor dos ônibus, não sei mais qual é qual! O que ia pro Linhares eu sabia que era grená; o do meu bairro eu sabia que era azul! Isso foi falta do que fazer, isto sim!

- É,... Confunde um pouquinho. Onde o senhor mora?

- Barreira do Triunfo. Rhum! Esse ônibus nunca foi triunfo; mudou a cor, mas continuou a mesma derrota, ainda mais agora com essa pandemia!

- Desculpe a pergunta: mas o senhor não tá com medo dessa doença?

- Sim! Tenho mais de sessenta, e to no grupo do pé na cova!

- Então porque o senhor não está usando máscara?

Ele tirou um pano do bolso: - Rebentou o elástico e acabei não comprando outra.

- Rebentou agora?

- Não. Foi de dia.

- Não daria tempo de comprar outra?

- Até dava,... Mas acabei largando pra lá!

- Oh, mas,... Como o senhor se chama?

- Satiro.

- Nome diferente.

- Pois é. Minha mãe era muito criativa.

Riso: - Pois então, senhor Satiro: andar sem máscara é perigoso. O senhor não tem medo de pegar essa doença, e morrer?

Ele a olhou e respondeu: - Sabe Senhora,... Qual seu nome?

- Ana.

- Sabe senhora Ana: essa doença é traiçoeira! Ela não chega num mosquito que a gente pode se proteger com inseticida, botando tela na janela ou indo pra algum lugar que não tenha mosquitos. Não é verdade?

- Sim, é verdade.

Ele franziu a testa: - Onde eu moro, o que não falta é mosquito porque tem água parada e vala negra pra todo lado. Há terrenos sem capinar cheios de lixo e umas casas vazias com piscina descoberta que nem adianta a gente reclamar porque o dono é juiz, procurador, deputado, essa corja aí que a fiscalização se borra de medo e nem passa perto do portão deles! Aí, todo mundo pega dengue, zika, difteria e essa outra que tem um nome difícil, chicum,... Cuia?

- É chicungunha!

- Isso mesmo! É tudo doença da miséria, da falta de esgoto e do abandono! Na Barreira se eu perguntar assim: “conhecem alguém que morreu de dengue?”. Muita gente responde: “conheci!”. Se perguntar a mesma coisa de zika, difteria, ou porque precisava fazer um exame ou cirurgia pelo SUS, e demorou demais? “Conheci!”. Ou assassinado? “Conheci!”. E de covid? “Conheci!”. Pra tudo isso que mata, é sempre o mesmo “conheci”, sem drama, choro,... Ás vezes com raiva, mas sempre do mesmo jeito!

- É! – falou Ana: - Lá no meu bairro é assim também. Mas o que isso quer dizer, senhor Satiro?

- Que nos bairros a onde vive pessoas mais humildes, dessas que o poder público esqueceu; morrer de doença é comum. A covid é só mais um jeito de morrer! Aí vem o prefeito e seus secretários assustados, porque estamos nos acostumando com a morte por covid! – deu de ombros: - Quando se cria uma legião de sobreviventes do descaso, cria-se o pior tipo de sobrevivente: o que não crê nas autoridades que sempre lhes deram as costas. Então os desobedecem!... Isso é como criar cobras debaixo do travesseiro.

Ana abanou a cabeça: - O senhor fala de um jeito tão pessimista. Eles dão bons conselhos, para o nosso bem!

- Não duvido que sejam bons; o caso é que eles nunca deram nada pra gente, e dar conselhos é muito fácil; mas dar isenção de impostos sem querer vir receber tudo depois, com juros? Ah! Só que não! – apertou os lábios com raiva: - Meu filho morreu de dengue hemorrágica por causa de uma maldita piscina descoberta na casa abandonada de um filho da puta, sei lá o quê da república, dessas que a prefeitura passa reto com medo do dono. Era um viveiro de mosquitos! Todo mundo sabe que tem dengue há bastante tempo no Brasil, mas não há pressa nenhuma em criar vacina pra isso! O meu filho único morreu ano passado,... Hoje é aniversário da morte dele e eu fui ao Cemitério Municipal, no túmulo onde está sepultado... Depois fiquei perambulando pela rua até a noite, e me esqueci do tempo.

Ana suspirou: - Sinto muito senhor Satiro. Só de pensar que uma vacina teria salvado a vida do seu filho, dá raiva mesmo!

- Raiva é pouco! Pra dengue não tem vacina; mas pra covid vai aparecer bem rapidinho. Quer saber por que senhora Ana? A covid não respeita telas; não precisa de mosquito e nem água parada por perto. Não mata só os pobres; mata gente importante também! E nem adianta fugir pra Europa, porque é capaz até de morrerem mais depressa por lá!– riso triste: - Assim, cientistas estão virando noites em institutos e universidades pra descobrir a vacina! – abaixou a cabeça: - Choram quando um desses figurões morre por falta daquilo que é de graça: o ar. Mas quando pobres morrem pela falta do que pagam caro para ter: saneamento e respeito, nós não vemos tanto choro. Fazem caras de piedade e dizem que “estão providenciando”. Pro meu filho é tarde demais para qualquer providência! Eu volto pra minha casa,... E ele não está lá. Só isto que eu sei.

- Eu imagino que deve ser doloroso, mas gente não deve pensar assim! – ponderou Ana. - A morte, quando vem desse jeito tão inesperado, dói do mesmo jeito, mesmo que uns tenham mais recursos que outros. – deu de ombros: - Porque, como o senhor disse: o ar que falta é de graça e não tem fortuna que compre. Não é?

Satiro passou as costas da mão nos olhos e disse: - É capaz!... Ah, senhora Ana: desculpe-me, eu não estou bom para conversar. Estou muito triste. – buscou um lenço no bolso do casaco e improvisou uma máscara. – Mas a senhora tem razão. É uma pandemia que vai matar muita gente, e o fato de eu estar revoltado não me dá o direito de trazer todo mundo pra dentro da minha tristeza, e nem falar um monte de besteira; esta dor é só minha! Desculpe.

Ana teve vontade de segurar suas mãos e abraçá-lo num conforto; mas sabia que não podia. Então perguntou: - E se seu ônibus não vier; o senhor vai ficar na Praça da Estação? De noite aqui é perigoso.

- Daqui a pouco passa meu ultimo ônibus, não se preocupe. – olhou para o lado. – Acho que o Linhares está vindo aí senhora Ana!

Ela olhou: - É ele mesmo, que bom! – fez sinal e o coletivo parou. Antes de entrar ela falou: - Boa noite, senhor Satiro,... Meus sentimentos pelo seu filho.

- Obrigado. Vá com Deus, senhora Ana.

O ônibus partiu e ele ficou sozinho naquele banco, olhando o vazio; talvez seu próprio vazio.

Então viu seu ônibus chegando e parando no sinal fechado na esquina. – Finalmente! – levantou-se para sinalizar a parada do coletivo quando viu uma mariposa bem grande sobrevoando meio tonta na garoa, oscilando imprecisa até pousar no assento do banco. Parecia uma pequena asa delta cinzenta com manchas claras arredondadas nas asas, semelhante a olhos. Isto lembrou seu filho, ainda em criança, lhe explicando que aquilo era um recurso de camuflagem, simulando olhos abertos para espantar predadores. Lembrança tão doce, quanto amarga.

O sinal abriu e o veículo se aproximava. Satiro olhou o assento do banco, e a mariposa havia sumido, então deu sinal e entrou no ônibus. Logo estaria na sua casa, no vazio da ausência do seu filho querido. Era duro, mas teria que se acostumar e fazer como a mariposa: simular um pouco de fé para espantar sua tristeza.

 

FIM

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