Em 1947 um dos primeiros revendedores da Volkswagen na Holanda, chamado Bem Pon, imaginou uma maneira de aproveitar a plataforma do Käfer (Fusca) num veículo para transporte de cargas leves, eficiente e econômico. Então fez um esboço que foi apresentado ao major Ivan Hirst, oficial do Exercito Inglês que após o termino da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) administrou a fábrica a titulo de “espolio de guerra”. Percebendo a pertinência de um veículo utilitário naquele momento, e com auxílio do engenheiro alemão Alfred Haesner, elaboraram o projeto do veículo cuja produção iniciou na Alemanha em 1949, denominado inicialmente VW Tipo -2 T1, com motor traseiro refrigerado a ar de 1.131 cm³ (1.1) e capacidade para 800 kg de carga. O nome Kombi vem de Kombinationsfahrzeug, ou veículo multi uso. Como era muito grande mesmo para o idioma alemão, abreviaram para Kombi.
Em 1968, um homem chamado Fábio possuía um desses raros exemplares alemães dos primeiros anos. Porém, aquela época uma Kombi 1951 furgão estava longe de ser automóvel antigo cobiçado por colecionadores, não passando de um carro velho que Fabim, como era conhecido, tinha que se servir no seu trabalho de fazer pequenos fretes; que mal comportava a prometida carga de 800 kg! Seu sonho era adquirir um “Pick-up Volkswagen”, a Kombi camioneta, com motor de 1.500 cm³ (1.5) bem mais potente que a Marronzinha.
Contudo, Fabim não conseguia juntar o montante de dinheiro necessário á entrada de uma Kombi, mesmo usada, porque a Marronzinha não permitia que pegasse fretes maiores com destinatários mais longos por causa da pouca potência do velho motor 1.1, que já não estava tão confiável. Assim, ele ia se virando como podia, tendo seu sonho cada vez mais distante
Então veio a oportunidade numa maneira um tanto bizarra.
A Faculdade de Medicina estava precisando de cadáveres nas aulas de anatomia. Já existia uma espécie de convenio com o Sanatório de Barbacena que permitia a doação de cadáveres de indigentes ao estudo da medicina. Porém, havia muita demora na burocracia na emissão da documentação num momento em que a Faculdade tinha urgência nestas “peças anatômicas”. Ao seu turno, o sanatório era obrigado a guardar os cadáveres no seu necrotério até que pudessem ser despachados. Então, como a solução rápida do problema era do interesse de ambas as instituições, decidiram transportar os cadáveres de forma clandestina. Isto teria que ser feito de madrugada para escapar á fiscalização da policia rodoviária que, como diziam de forma jocosa: - Dormia cedo!
Fabim ficou sabendo disto através de colegas que afirmavam não aceitar este serviço. Diziam que de jeito nenhum carregariam defuntos de madrugada, mesmo com a promessa do valor pago no frete até dez vezes mais! Ele foi fazendo as contas e viu que poderia dar entrada na sua tão sonhada VW camioneta 1500, talvez até zero quilômetro. Com um veículo novo bom para trabalhar, seria fácil pagar as prestações de um financiamento!
Na manhã seguinte, Fabim já acertava os detalhes do “frete” com o diretor da Faculdade: ele deveria chegar á Barbacena á meia noite e seguir direto ao necrotério do sanatório onde já o esperavam para arrumar a “carga” na Marronzinha, que por ser modelo furgão tinha uma chapa metálica separando a cabine do compartimento da carga. Fabim não veria o que estava transportando. Depois ele retornaria, indo direto á salas de anatomia da Faculdade para o desembarque do defunto. Então receberia seu pagamento. Assim o fez. Saiu por volta das 20hs seguindo pela antiga BR-3 (ainda não existia a BR-040). Conforme acertado, ele chegou ao necrotério do sanatório as 0hs12min, dentro do horário previsto. Demorariam cerca de uma hora e meia para colocar a urna contendo o cadáver no compartimento de carga da Marronzinha. Cederam-lhe um quarto com cama para um cochilo até a hora do retorno, as 2h05min.
As 5h15min, Fabim chegou á Faculdade; retiraram a urna e lhe pagaram pelo frete com a recomendação de sigilo para tudo aquilo. Ele saiu de lá feliz, com bolso cheio: - Foi moleza! – falava num sorriso.
Ele ainda foi á Barbacena buscar cadáveres mais três vezes, sem problemas. Já andava na concessionária VW de olho nas Kombis camionetas, e até simulando condições de financiamentos; assim que terminasse o trabalho, fecharia o negócio.
Mas na quarta e ultima viagem, as coisas saíram um pouco do cronograma. Ele saiu atrasado, ás 20h25min, e chegando ao sanatório, o embarque também atrasou porque o cadáver era de um indivíduo grande e alto, sendo necessário providenciar uma urna maior. Isto só foi concluído ás 3h da madrugada; portanto seria preciso acelerar a Marronzinha para chegar á Faculdade antes do amanhecer. Fabim sentou na direção e saiu ligeiro para cumprir o horário.
Logo estava na estrada de olho no relógio, e resmungando: - Tava bom demais. Justamente no ultimo frete, tinha que dar merda! – mas prosseguiu confiante que tudo daria certo.
Adiante numa reta, um cavalo no meio da pista o obrigou á uma manobra rápida para não atropelá-lo que o fez invadir o acostamento cheio de brita; mas conseguiu dominar a direção e voltar á pista. Aliviado, ele respirou e prosseguiu.
Porém, começou a escutar ruídos como se fossem pancadas vindas da parte de trás da Kombi. Isto o assustou: - Ah não, Marronzinha! Agora não! – falou Fabim temendo que o barulho denunciasse algum problema mecânico, e um enguiço naquela estrada, naquela hora e carregando um defunto, era tudo que ele não precisava. Assim ele diminuiu a velocidade para que o motor fizesse menos barulho e o ruído parou. Foi um breve alívio, pois as pancadas retornaram assim que ele impôs mais velocidade á Kombi. Ainda tentou sentir algum cheiro diferente: borracha queimada, ou algo que indicasse o problema, mas não havia nada, apenas as pancadas que alternavam o ritmo. Então Fabim aguçou mais o ouvido, e percebeu que as pancadas vinham do compartimento de carga logo atrás; como se fosse alguém batendo no metal com punho fechado. Ele nunca foi homem de acreditar em fantasmas e dizia sempre que não tinha medo do mundo dos mortos, e sim do mundo dos vivos; e aquilo o arrepiou totalmente, pois estava carregando o cadáver de uma pessoa que ficou interna do sanatório até morrer: e se não estivesse morto de fato? Tinha lido sobre catalepsia, que é um estado onde a pessoa parece morta, mas está viva. E se o homem que estava na urna não estivesse morto, e agora acordou dentro de um caixão, num lugar escuro e barulhento, como era a parte traseira da Marronzinha? E ainda poderia ser pior: - Que tipo de maluco era este? Um psicopata assassino, e grandão ainda por cima?... Virge Maria, que enrascada! – E as pancadas prosseguiam. Passou por um posto de gasolina, mas não poderia pedir ajuda. Pois como explicar aquela carga macabra? Assim ele acelerou para chegar logo ao destino, e o pessoal da Faculdade que se virasse com a encrenca.
Mas as pancadas não paravam, tirando sua atenção da estrada a ponto de quase fazê-lo entrar no acesso errado de um trevo. Decididamente não seria possível prosseguir naquela angústia; então Fabim buscou um local adiante onde havia um poste de luz para poder parar, e assim o fez. Estacionou a Marronzinha ao lado do postinho roliço de onde pendia uma lâmpada desanimada. Buscou a chave de roda contornou o veículo pela lateral oposta ás portas; ao passar pela traseira ainda tentou enxergar o interior do compartimento de carga pela vigia, mas era o mais absoluto breu. Aproximou devagar das portas; segurou firme a maçaneta e a abriu. Subitamente sua perna foi tocada por uma pesada mão que escorregou pela sua canela. Apavorado, Fabim saiu correndo e se escondeu no mato ao lado da estrada, atrás de um arbusto, com o coração aos pinotes para, seja lá o que fosse não o visse. Passaram-se dez minutos de silêncio entremeado por piados de pássaros noturnos e o farfalhar lúgubre da mata, apenas isto, sem barulhos de passos. Então, devagarzinho ele se ergueu e viu a lateral da Marronzinha iluminada pela luz do poste; a porta estava aberta e pendia um braço grosso, encostando-se ao chão. Fabim espiava tentando ver algum movimento naquele braço, mas estava inerte. Não seria possível ficar a noite inteira ali. Poderia passar algum veículo e o motorista ao ver a Kombi no acostamento, poderia parar também supondo algum problema. E se fosse um carro de polícia? Então Fabim se muniu de coragem, segurou firme a chave de roda e se aproximou de Marronzinha, espichando o pescoço para conferir. – Ora esta! – exclamou ao ver que o cavalete de escorava a urna estava fora do lugar, fazendo-a tombar de lado. O barulho era sua tampa aberta batendo na lataria do compartimento de carga da Kombi; e o braço do defunto escapou pela borda. Irritado, Fabim o colocou para dentro, e fechou a porta com raiva. Depois tomou a direção, ligou o motor e seguiu seu rumo. – Fantasma é o caralho! – ia resmungando.
Ao chegar á Faculdade, explicou o ocorrido, e que não teve jeito de colocar o cadáver novamente dentro da urna. Deram de ombros; estava morto mesmo!
Dias depois Fabim já estava feliz ao volante de sua sonhada Kombi camioneta 1500 bege com a capota azul.
Já a pobre Marronzinha foi vendida muitas vezes, até desaparecer na memória dos objetos esquecidos pelo mundo.
FIM.
Que coragem kkkkk. O que o dinheiro não faz...
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