terça-feira, 27 de abril de 2021

A KOMBI VERDE.

 

              

A “The DeLuxe Microbus Samba” ou “Kombi Volkswagen Transporter Samba Bus” ou simplesmente Kombi Samba, foi produzida a partir de junho de 1951 na Alemanha e contava com detalhes diferenciados de acabamentos, como pinturas bicolores e frisos em alumínio dividindo os dois tons, rádio, para brisas basculantes e, como maiores destaques, pequenas vigias acima da borda da capota sobre as janelas e teto solar coberto com capota de lona. Foi produzida até 1967, quando a Volkswagen reestilizou a carroceria da Kombi alemã, criando outros modelos de luxo com novos nomes. Sobre a denominação “Samba”, aparentemente não se refere ao estilo musical brasileiro, e sim uma sigla em alemão para “Sonnendach-Ausführung Mit Besonderem Armatuerenbrett”, algo como “versão de teto solar com painel especial”. Mas mesmo na VW alemã, não há consenso sobre isto.

 

 

 

 

O gabinete de Américo na sua mansão era luxuoso e repleto de fotos e pinturas de carros pelas paredes. Havia uma enorme prateleira cheia de troféus e medalhas conquistadas com seus automóveis antigos em encontros de antigomobilistas pelo país. Apesar disto, Américo sentia que seus carros já não chamavam tanta atenção nestes eventos, e poder exibir uma raríssima Kombi Samba restaurada e totalmente desconhecida por seus pares, restauraria também seu prestígio.

Seu advogado estava á postos para ouvi-lo enquanto andava de um lado a outro gesticulando e esbravejando: - Mulherzinha insuportável! Com quem ela pensa que está falando, toda senhora de si naquela casa cafona cheirando á classe média metida á boa? Eu ofereci muito mais do que aquele carro vale, e a imbecil recusou! – apontou o dedo ao advogado: - Devia haver uma lei neste país que proibisse pessoas medíocres de possuírem raridades como aquela maravilhosa Kombi Samba! – abriu os braços: - É assim que são destruídos automóveis antigos nas mãos de pessoas que não têm a menor ideia do que possuem!

- Bem doutor. – Falou Lucas, o advogado. – Do ponto de vista legal, não temos como obrigá-la a vender seu carro; é direito de posse garantido por lei.

Américo se sentou no cadeirão estofado e disse: - É lógico que não agiremos ao arrepio da lei! – debruçou na mesa. – Há detalhes deste caso que você não conhece! – apanhou um notebook e mostrou fotos da Kombi. – O amigo que indicou sua localização, recebeu isto de um garoto, filho da empregada da casa, há uns quinze dias. Ocorre que dona Soraya afirmou ter demitido sua empregada recentemente. Ela se chama Alba, e na época que recebi essas fotos, o moleque ainda devia ter acesso á casa. Então foi nesse tempo que dona Soraya deu o pé na empregada!  É por aí que você vai investigar. Meu faro está dizendo que tem encrenca aí!

- Hum; deixe comigo, doutor. Vou começar agora.

Américo recostou no cadeirão e falou: - É excelente ter auxiliares que entendem tudo de cara! – e sorriu.

 

Um mês depois, Soraya entrava no Fórum para audiência de reconciliação numa ação movida pela sua ex-empregada Alba, exigindo indenização por danos morais, e já no corredor, encontrou-se com Alba ao lado de seu advogado. Ela parou e fitou a mulher, que lhe devolveu o olhar.

Depois, na sala de audiências, a juíza abria a sessão: - A senhora Alba da Costa, representada pelo advogado doutor Haroldo Del Grano, afirma tem sido humilhada pela sua ex-patroa, a senhora Soraya Silva e Mello, no ato da demissão, e assim pede indenização por danos morais. – olhou a advogada de Soraya, perguntando: - Isto procede, doutora Ana?

Advogada respondeu: - Meritíssima; minha cliente afirma que não teve intenção de humilhar a senhora Alba de forma alguma, tendo inclusive atendido á todas as exigências quanto á quitação de direitos trabalhistas em obediência á CLT, conforme documentos apresentados na defesa. Informo também o motivo da demissão se deu pelo fato do filho da senhora Alba da Costa ter realizado festas na residência de minha cliente, na sua ausência, contando com a omissão da senhora Alba, como também consta na defesa.

- Meritíssima. Data vênia; permite um aparte? – interviu o advogado. A juíza concedeu: - A presente ação não está questionando a senhora Soraya quando á obediência da legislação trabalhista vigente, e sim na forma como esta demissão se deu, com palavras afrontosas á dignidade da senhora Alba, aqui presente, á qual me permite repetir trecho do seu depoimento: “dona Soraya me humilhou dizendo que não sei criar meu filho! Depois chamou ele de marginal!”. – o advogado abanou a cabeça em desaprovação: - A senhora Alba já estava ciente da demissão, e tinha pedido desculpas pelo ato de seu filho, que é menor; portanto não haveria necessidade de impingir tais impropérios á senhora Alba, uma pessoa humilde que, constrangida, não pôde se defender!

A Juíza se dirigiu á Soraya: - Isto procede?

Ela se mexeu desconfortavelmente na cadeira e respondeu: - Realmente eu posso ter me exaltado além da conta. Mas convenhamos que notar que sua casa e até sua própria cama foi usada na sua ausência e depois descobrir pela boca de vizinhos que seu lar foi palco de uma festa sem a sua permissão, é um pouco demais!

Novamente o advogado interviu perguntando diretamente: - A senhora tem provas que seu aposento foi utilizado por terceiros na sua ausência?

Sua advogada ia replicar, mas Soraya interviu: - Não tenho prova alguma disto, a não ser minha percepção de que havia algo errado no meu quarto! – A advogada tomou a palavra: - Meritíssima; doutor Del Grano e senhora Alba, aqui presentes. Minha cliente está ciente que se exaltou no momento que demitia sua serviçal, e pede desculpas por este arroubo emocional, estando disposta a acatar os termos deste pedido de indenização. Acreditamos não ser do interesse de nenhum dos presentes o prolongamento desta ação.

A juíza dirigiu a Del Grano: - Creio então que podemos formalizar um acordo, desde que as partes concordem.

Ele assentiu: - Sim meritíssima; eu e minha cliente estamos de acordo.

A juíza fez sinal afirmativo num meneio de cabeça, e falou – Ótimo! Vamos passar então á estipulação do valor desta indenização.

- Mais uma vez, meritíssima. Data vênia: minha cliente exige um bem material como pagamento da indenização. – buscou um papel: - Trata-se de um veículo marca Volkswagen Kombi ano 1963, cor verde, placa numero GLS-3311.

Soraya interrompeu: - Espere! – olhou Alba. – Você quer o carro que foi do meu marido? Para quê; a Kombi nem anda!

Haroldo olhou-a, e falou: - Senhora Soraya e doutora Ana aqui presentes: estamos propondo um acordo que como a doutora mesmo afirmou, colocaria ponto final nesta pendenga, que não é do interesse de nenhum dos presentes, certo? A destinação que a senhora Alba dará ao veículo, estando de posse do mesmo, é apenas da conta dela. Certo?

Soraya abanou a cabeça e falou: - Oh!... Certo! Já está tudo entendido, doutor Del Grano. Se for isto que Alba quer: eu aceito!

A Juíza então concluiu a audiência com os tramites jurídicos celebrando o acordo.

Á saída do Fórum, Soraya se aproximou de Del Grano, e falou: - Parabéns doutor. Vocês ganharam!

- A justiça foi feita, senhora.

- Realmente! – sorriu: - “Aos vencedores, as batatas”! – e se retirou num último olhar á Alba, que novamente o devolveu.

 

Dias depois no gabinete da mansão, espocou uma garrafa de champanhe em comemoração á vitória de Américo: - Tragam suas taças senhores. Vamos fazer um brinde! – a as taças estalaram ao toque dos cristais, com o líquido espumante sendo consumido pelos advogados Lucas e Del Grano.

- Mal posso esperar para ver aquela belezura chegando á minha casa. O guincho já foi buscar!

- Sim doutor! – falou Lucas após um gole.

- Mas lembrem-se de que o meu nome não pode aparecer nisto em nenhum momento! Tem que ficar parecendo que o doutor Del Grano se apresentou para defender a empregada como justiça gratuita; e eu apenas soube da ação, e comprei a Kombi dela! – bebeu um gole: - Um dos meus assessores foi no guincho para fazer a compra como se fosse ele mesmo. Aqueles chatos dos clubes de antigomobilismo não devem saber de nada disto!

- É evidente doutor Américo! – respondeu Lucas: - Tudo em sigilo. A senhora Alba nem sabe que o doutor existe! Mas eu até cheguei a pensar que a senhora Soraya não aceitaria o acordo, e partiria ao litígio.

Américo riu: - Ela percebeu que seria causa perdida!

- É possível. – completou Del Grano. – Mas ela disse uma frase estranha: “aos vencedores, as batatas”. Confesso que não entendi a citação á Machado de Assis.

- Ela é doida!  - falou Américo enchendo novamente sua taça: - E se tentasse uma apelação, nós arrancaríamos até aquela casa dela! Mulherzinha petulante. Ah como eu queria ser um mosquitinho para ver a cara dela quando o oficial de justiça foi buscar o carro!

Então avisaram que o caminhão prancha estava á portaria da mansão, e Américo ordenou que entrasse; - Venham senhores, venham assistir ao desembarque de mais uma raridade para minha coleção. Daqui, irá direto á restauração!

Ele chegou vermelho de excitação á entrada da mansão.

Mas não foi o que esperava: o caminhão prancha estava vazio.

- O que aconteceu: - perguntou perplexo: - Cadê a Kombi?

O assessor encarregado de fazer a compra desceu do caminhão um tanto desconcertado: - Nós fomos ao endereço da dona Alba, mas não tinha ninguém em casa!

- Como assim? – correu segurando-o pelo colarinho da camisa: - Não pode ser. Ela estava esperando conforme combinado. Qual merda você fez, héim seu imprestável? – o assessor ficou sem ação. Os advogados e o motorista vieram acalmar Américo, que o soltou e ordenou ainda nervoso. - Então desembucha! Fala logo o que aconteceu?

Ajeitando a camisa, o assessor respondeu: - Fizemos do jeito que o doutor mandou; mas quando chegamos lá, a casa estava vazia, até com a porta aberta. Aí veio uma vizinha e nós perguntamos pela dona Alba. Ela disse que tinha se mudado junto com o filho!

- O quê? – socava as mãos no ar enquanto falava: - Como mudou? – olhou os advogados: - Vocês dois não explicaram pra empregadinha o que tinha um cara querendo comprar a Kombi, e iria lá buscar? Seus idiotas!

Lucas respondeu: - Fizemos sim! – dirigiu ao assessor: - Ela se mudou para onde, e quando?

- Ela e o filho saíram de mudança hoje de manhãzinha dizendo que Iam trabalhar na casa de um homem rico na Bahia, mas não soube dizer para qual cidade.

- E a Kombi, para onde ela foi? Fala idiota!

- A vizinha disse que não viu. Mas deixaram uma coisa para entregar ao doutor! – o assessor foi á boleia do caminhão trazendo uma pequena caixa de papelão. – A vizinha disse que era para entregar diretamente ao doutor Américo.

- Como ela sabia meu nome?... E que diabo tem aqui? – ele abriu a caixa, e estava cheia de batatas com um cartão por cima escrito:

Aos vencedores, as batatas! Bom apetite. Ass. Soraya.”.

- O que significa isto? – exaltou-se.

Com a mão na boca, Del Grano falou: - Putz! Agora entendi a citação á “Quincas Borba”!

- Pouco importa de onde ela tirou a citação, seu palerma; você devia ter entendido na hora! Então isto quer dizer que ela pegou a Kombi de volta? – gritou Américo; - Não pode!... Eu ganhei a ação! – e continuava gritando com a caixa de batatas nas mãos. – Façam alguma coisa, chamem a polícia, prendam essas pilantras!

- Não há base legal para isto doutor! – explicava Del Grano: - Dona Alba ganhou a ação, e poderia fazer o que quisesse com a Kombi.

Completamente transtornado Américo atirou a caixa de batatas nos advogados: - Essas duas bruacas fizeram isso debaixo das barbas de vocês dois, seus filhos da puta incompetentes!... Tá todo mundo no olho da rua! Fora daqui antes que eu solte os cachorros em vocês! – gritava enquanto pisoteava as batatas espalhadas pelo chão.

 

Enquanto isto, longe dali, Soraya olhava sua garagem vazia, que nunca lhe pareceu tão grande. O vizinho fortão estava ao lado e perguntou: - Então a Kombi foi para a Bahia?

- Sim. Há anos um colecionador de carros antigos de Salvador quis compra-la, e eu recusei. Então, diante do acontecido, achei por bem matar dois coelhos numa só pancada: Resolvia o problema da Alba com trabalho, que a bem da verdade é uma boa serviçal. Não fui justa com ela! E também daria á velha Kombi Samba uma destinação certa. Não queria que fosse parar nas mãos daquele homem desagradável; mas também não queria deixá-la parada nesta garagem se estragando. Então eu uni as pontas: assim que saiu a sentença, o colecionador da Bahia já estava aqui, á postos para fechar o negócio!

- Mas a senhora perdeu um veículo antigo bem valioso!

- Sim, é verdade. Mas neste episódio eu aprendi uma lição. – riso. – E lições costumam não custar barato!

- Qual lição senhora?

- Que valiosas serão as memórias que guardarei para sempre da minha vida com Epaminondas na nossa Kombi querida, que agora será restaurada como merece. – suspirou: - E tudo isto, eu posso levar guardado no meu coração!

 

 

 

FIM