sexta-feira, 21 de agosto de 2020

CONTOS DA PRAÇA DA ESTAÇÃO #7

 

Maria

No ateliê da escola de pintura, um gatinho enroscava-se nas pernas de uma das alunas, que deixa a atenção ao buquê de hortênsias azuis que imprimia na tela para fixar naquele bichano, fazendo- lhe um carinho na cabeça: - Tão bonitinho! De onde veio?

Uma mulher ao lado responde: - É um gato vadio que ás vezes aparece.

- Adoro gatos vadios! – depois do carinho, o gato saiu á plataforma da antiga estação ferroviária, onde funciona a escola Antônio Parreiras, e sumiu enquanto a mulher voltava sua atenção ás hortênsias.

- Seu quadro ficou muito bonito! – elogiou a colega.

- Obrigada!... Como a senhora se chama mesmo?

- Sou Maria!

- Oh, que coincidência, eu também sou Maria. – riso: - Maria da Abadia: Didi.

- Prazer, sou Maria Auxiliadora: Dodora.

Didi olhou o quadro: - Estou fazendo para o quarto do meu filho que chega da Itália mês que vem! – olhou-a: - Ele é gay e adora flores.

Outras alunas olharam-na, e Dodora falou: - Ficaram lindas!

- Obrigada! – limpou os pincéis e concluiu: - Bem, por hoje chega! – guardou seu material numa maleta e se levantou, sentindo incômodo nos pés. – Até a próxima semana, amigas! – elas retribuíram o cumprimento com parcimônia enquanto Dodora falou: - Também terminei. Vou acompanhá-la.

As duas saíram e quando desciam á escadaria da escola, Didi parou e reclamou: - Que droga! – e tirou o sapato.

- O que foi?

- Esse maldito sapato está acabando com meus pés. Olhe meu calcanhar, está ferido!

- É mesmo! Deve estar incomodando.

- Sim! Não gosto de guiar descalça, mas desse jeito não dá! Vou procurar uma farmácia e comprar bandêides para ver se alivia.

- Talvez seja bom colocar um pouco de mertiolate nesta ferida. Porque você não vem comigo ao meu apartamento para cuidarmos disto?

- Não vai atrapalhar?

- De modo algum! Vamos; eu vivo naquele prédio ao lado do antigo hotel.

Elas seguiram falando amenidades. Didi não gostava de passar diante do prédio fechado do velho hotel, mas não comentou.

 

Já na sala do espaçoso apartamento, Didi colocava o bandêide no calcanhar, e depois o sapato: - Aliviou bem. Ah, mas assim que chegar em casa, esse par de sapatos vai direto pro lixo! Obrigada, Dodora.

- De nada,... Jéssica.

Didi olhou-a espantada: - De que você me chamou?

- De Jéssica. Este não era o seu nome de guerra? – encarou-a: - Assim que vi você, não tive dúvidas: já a conhecia de muito tempo atrás quando vi você como acompanhante do doutor Olívio.

- Oh-o; você está enganada, não era eu!

- Não estou enganada. Você foi com doutor Olívio em festas e recepções. Meu marido era sócio dele, que confidenciou até mesmo seu nome verdadeiro: Maria da Abadia. Era você!

Didi meneou a cabeça e respondeu: - Ok, você me pegou! Realmente eu fui o que se chamava escort girl nos anos oitenta. – riso: - Nome bonito para garota de programa, ou simplesmente puta de luxo! – levantou-se: - Como dizia o grande Herivelto Martins: “segredo é para quatro paredes”, né? Eu já vinha notando seus olhares para cima de mim; então era por isso?

- Sim, eu a reconheci, mas você não se lembrou de mim.

- Não é exatamente uma época memorável da minha vida,... Ei, espere um pouco!... Para que você me trouxe ao seu apartamento? Olhe só: não faço mais programas, e mesmo no tempo que os fazia, eu era uma puta meio caretona que não topava programa com mulher!

- Que absurdo,... Eu não gosto de mulher! Sou casada.

- Então o que é? Chantagem?

Ela abanou a cabeça e falou: - Nada disso! Por favor; sente-se e me ouça. – ela sentou ainda com semblante desconfiado enquanto Dodora prosseguiu: - Eu aproveitei a oportunidade para trazê-la aqui porque,... – suspirou como tomando coragem: - Eu preciso de algumas respostas!

- Sobre o quê?...  Oh Deus, já entendi: é mais uma dona de casa fazendo fantasia com a vida de uma puta!

- Não coloque nesses termos, por favor! – olhou para os lados buscando as palavras e disparou: - Eu queria saber,... É como isto começa. Por quê?...

- Porque virei puta?

– Sim. Você tem problemas em falar disto?

Riso: - Nem um pouco; até porque a história é simples e nem um pouco original: eu sou do Norte, de um lugar chamado Pedras de Maria da Fé. Família grande; pai que não parava em nenhum emprego por causa da bebedeira; e eu, a filha mais velha semianalfabeta sem ter muito que fazer para ajudar num lugar onde se vê miséria para qualquer lado que se vire! Minha mãe vendia doces na rodoviária, e um dia chegou acompanhada de uma loura chamada Carlota, que dizia estar á procura de moças dispostas a trabalhar em casas de famílias, como domésticas, em Juiz de Fora; e pagaria bem! Eu nem tive escolha; estava decidido que iria. E,... No fundo, eu queria sair dali! No dia seguinte, eu mais duas garotas embarcamos rumo á esta cidade, em busca de uma vida melhor,... Nada mais clichê! Carlota nos hospedou nesse pardieiro que era o hotel aí ao lado até podermos ir conhecer nossos novos patrões. – suspirou meio nervosa: - Era tudo mentira Dodora! Fomos informadas que, infelizmente, já haviam contratado empregadas, mas como Carlota havia feitos despesas para nos trazer, teríamos que pagá-la. Além disso, as nossas famílias estavam contando com a gente,... Então, dizendo que era para nos ajudar, a vagabunda nos conseguiu outro trabalho, como garçonetes! Eu não era burra e saquei do que se tratava: ser puta!

- Não tinha como fugir, ou pedir ajuda?

- Para quem, a polícia? O pior é que realmente a minha família contava com esse dinheiro; assim, não tive alternativa. Cheguei a fazer ponto na Praça da Estação, e até fui presa uma vez! – fez um muxoxo: - Só que tempos depois me acharam bonita demais para rodar a bolsinha na calçada. Então me deram banho da loja, e virei puta de luxo; ou escort girl! O nome de guerra foi por causa da atriz Jéssica Lange. Mas, a verdade é que dei muita sorte de encontrar o doutor Olívio, que passou a me bancar. – sorriu: - Consegui engravidar dele, e assim saí da vida! – encarou-a: - E então Dodora: satisfeita?

Ela deu de ombros: - Eu também tenho uma história clichê pra contar: fui uma garota de classe-média com os sonhos pequeno-burgueses mais medíocres possíveis encontrados em enredos de revistinhas para moças, falando de príncipes encantados. Oh, e ele não tardou a chegar: lindo, atencioso amoroso e rico! Meu vestido de noiva parecia pastiche da embalagem furta-cor do bombom “Sonho de Valsa”, e era isto mesmo que eu era, porque a parte da história que eu não conhecia, é que meu pai pretendia virar sócio da firma do pai do meu noivo, e aparentemente eu fui o passaporte deste acesso, embrulhada para presente!

- Credo! Mas, seu marido foi decepcionante nas suas atribuições conjugais; batia em você?

- Pelo contrário! – riso: - Era bastante eficiente, e me tratava,... E ainda me trata como uma rainha! Porém, como regra nas boas casas reais: ele coleciona amantes. Devo ter chifres na testa com matéria prima suficiente para abrir uma fábrica de pentes!

- Se você sabe disto, e é claro que não curte; porque não pula fora deste casamento?

Riso amargo: - Porque sou covarde, ele me dá boa vida, e o amo. – olhou-a: - Como vê Didi, existem putas, e putas!

- É verdade!... Bem; se você está satisfeita, eu posso ir embora?

- Só mais uma coisa,... Eu preciso saber por que ele procura amantes que sei serem prostitutas na maioria! Á onde eu errei?

Didi deu de ombros: - Ah, eu não conheço a vida de vocês para responder isto com tanta precisão! Mas,... Na minha experiência profissional, por assim dizer: houve homens que pareciam fazer sexo com eles mesmos, e esperavam de mim performances teatrais com muitos gritos e gemidos! Se isto era o que queriam e pagavam, era esta a mercadoria que eu os entregava. Havia os que usavam meu corpo como dublê de outras mulheres inacessíveis, porque as perderam. Esses esperavam de mim palavras de amor, e eu lhes dava isto, mas tive pena de alguns deles! Outros faziam comigo o que não faziam com suas esposas e namoradas, porque elas não deixavam, ou por algum pudor escrupuloso. Uns queriam me bater, e para esses eu guardava minhas lições de judô! – suspiro: - De vez em quando apareciam os solitários,... Derrotados ou tímidos que nem conseguiam. Enfim Dodora, uma verdadeira galeria da miséria humana!

- Era ruim assim?

- No início era horroroso e nojento. Depois passou a ser apenas burocrático. Com exceção de Olívio, que me tratou como gente.

A expressão de Dodora se tornou grave: - Meu marido tem uma amante fixa! Os dois pensam que não sei de nada; mas eu sei até quem é a vadia, e agora mesmo ele está viajando, e não duvido que seja com ela! – olhou para Didi: - Você acha que meu marido procura o quê nela? O que não estou conseguindo lhe dar?

- Ora,... Eu não sei!... Não conheço vocês para fazer essa,... Análise.

- Então, vou finalmente dizer o que quero de você Didi! Quero que você comece a frequentar minha casa, como minha amiga. Vou lhe apresentar a Oscar, meu marido, e quero que você se torne amante dele!

- O quê?

- Isso que estou falando; assim, como minha amiga, você poderá me dizer o que ele quer!... – levantou-se e aproximou de Didi, que até encolheu na poltrona ao ouvi-la: - Eu tenho dinheiro. Pagarei bem!

- Olhe Dodora,... Eu não estou mais neste metier!

- Então me arranje alguém de sua confiança para fazer isto!... - e começou á soluçar: - Pelo amor de Deus,... Eu amo demais aquele homem e não posso perdê-lo!

Escorregado pelo lado apoiada no braço da poltrona, Didi levantou dizendo: - Fique calma!... Isso não funciona dessa maneira!... E se ele já tem amante fixa, eu ia ser só mais um biscate.

Dodora pôs as mãos na cabeça: - Ah meu Deus,... O que estou fazendo? – afastou-se: - Não quero perder meu marido, mas acho que estou perdendo o juízo!... Por favor, se esqueça de tudo o que aconteceu aqui! Estou fora do meu normal.

- Sim, claro. Esta tarde nunca aconteceu!... Bem, eu preciso ir. Meu filho vai voltar da Itália e tenho milhares de coisas a fazer!

- Ele vai amar o quadro de Hortênsias azuis!

- Certamente! – falou Didi aproximando-se da porta e buscando a maçaneta.

- Deixe que eu abra a porta, senão você não volta, não é?

Didi passou rápido despedindo-se: - É verdade,... Nos vemos na próxima aula de pintura! Bye!

 

Já na rua, Didi falou: - Minha nossa; é cada saia justa que aparece. Essa louca precisa é de um psiquiatra! Marido Oscar; sei bem quem é, e do que deve gostar! - passou adiante do velho prédio do hotel, abanando a cabeça para expulsar antigas lembranças quando viu o gatinho do ateliê na calçada.

- Olá bonitinho! – se abaixou e ele aproximou; era um filhote ainda. Didi o apanhou nas mãos e falou com doçura: - Está com fome, neném? Hum,... Tão fofinho! Quer ir pra minha casa? Meu garoto vai te adorar! – e seguiu á um estacionamento para buscar seu carro.

 

FIM

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