TINOCO
Caía uma chuva insistente em Juiz de Fora naquela madrugada enquanto um morador de rua tentava resguardar o papelão que usaria de cama sob a marquise de um prédio aos arredores da Praça da Estação. De onde ele estava Tinoco conseguia ver a torre do relógio da antiga estação ferroviária, lembrando-se de outros tempos quando podia vê-la da janela de sua casa, na infância. Então abanava a cabeça, desgostoso, enquanto se ajeitava no papelão apalpando a garrafa de aguardente escondida num embornal, e resmungando: - Filhos das putas; destruíram tudo!
De súbito escutou passos de chinelo de dedo no chão molhado e viu uma silhueta se aproximando: - E aí tio,... Tem um trocado aí pra eu comprar um prato de comida?
Ele olhou, e era um jovem de cabeça raspada, ensopado e com braços cruzados apertados ao tronco magro. Então respondeu: - Comprar prato de comida á essa hora? Á onde rapaz?
- Tem ou não tem trocado porra?
- Pode parar, olha o respeito! Mas não tenho dinheiro, e mesmo se tivesse, não dava pra um moleque abusado que nem tu!
- Foi mal, tio,... To com fome! - e sentou ao seu lado.
Tinoco mexeu no embornal: - Tem um pão aqui!
- Me dá, me dá! – esticou o braço tomando-lhe o pão e dando dentadas famintas. Acabou engasgando e tossindo.
- Calma aí, rapaz! – falou Tinoco dando-lhe tapas nas costas e sentindo seus ossos sob a pele.
O jovem só esperou cessar o engasgo para meter o pão inteiro na boca, mastigar e engolir. Depois se encolheu agarrando-se num abraço trêmulo ás suas pernas. Sua camisa tinha mangas curtas. Tinoco observou e perguntou: - Você tá sentido frio?
- Não!... É porque to molhado.
- Como é seu nome:
- É Alexandre.
Riso: - Tenho um neto com esse nome.
O rapaz olhou-o: - Tem algum troço pra beber aí?
Tinoco resmungou: - Não tenho água comigo.
Alexandre virou a cabeça e viu um furo na calha. Aproximou sua boca para beber e foi impedido: – Não faz isso, essa água tá suja de bosta de pombo da marquise! Tá bem. Eu tenho um trem de beber aqui! – passou a garrafa de cachaça á Alexandre, que a agarrou, tirou a tampa e colocou a boca no gargalo, ingerindo generosos goles. – Ei, pera aí! – custou á tomá-la: - Ô caralho,... Bebeu quase tudo!
Alexandre respondeu limpando a boca com as costas da mão: - Se não era pra beber, pra que me deu então?
- Malcriado!... – enfiou a garrafa quase vazia no embornal e perguntou: - Pelo menos parou de sentir frio?
-... Eu não to com frio! – se encolheu e ficou uns instantes quieto até sentir ânsia de vômito, inclinando o corpo para o lado numa vigorosa golfada. Tinoco se levantou rápido, buscando seu papelão enquanto Alexandre vomitava. Depois o rapaz cambaleou e deitou de braços abertos no chão molhado sob a chuva. – Não faz isso! – falou Tinoco segurando seus braços magros, puxando-o para outro lugar sob a marquise, seco e longe do vômito; e com algum esforço conseguiu colocá-lo deitado no papelão. Embora fosse muito magro, Alexandre era grande.
Depois de um tempo, o rapaz se sentou, e tornou a se encolher agarrando as pernas com seus braços longos e ossudos.
- Tá melhor?
- To...
- Ainda tá com fome? Vomitou tudo!
- Não,... Eu quero água.
Tinoco pegou a garrafa de cachaça, despejou o restinho de bebida e a pôs sob a goteira que caía de um toldo. – Espera encher um pouco, aí você bebe. – Alexandre continuava encolhido agarrando as pernas com cada vez mais força e olhando para os lados.
- O que você tem? – perguntou Tinoco
- Nada... – respondeu desviando o olhar.
- Tá na fissura?
- Que porra é essa?
- Tá noiado? – ele não respondeu e Tinoco insistiu: - O que é? Maconha, coca?... Já sei, é crack!
Dando de ombros: - Olhaí,... Eu paro a hora que eu quiser!
- E tu não quer parar hoje?
- Ih!... É mais um pra vir encher meu saco?
- Quem mais enche teu saco querendo que você pare? – ele não respondeu e Tinoco insistiu: - Eu já vi você por aqui, rapaz; dormindo debaixo da marquise da papelaria lá na praça. Mas não estava de chinelo de dedo e nem em mangas de camisa. Tava de casaco com capuz e até tênis Nike! – riso: - Trocou tudo com o traficante, e ele te deu quantas pedrinhas; cinco, seis, ou só duas?
- Não interessa!
- Você estava aonde antes de vir pra cá?... Responde; porra!
Alexandre olhou para baixo ao responder: - Numa clinica que meu pai me pôs.
- Fugiu da clínica?
- É!... Eu falei pro meu pai que ia parar de usar, mas ele não acreditou e me internou naquele lugar!
- Por que você não voltou para casa?
- Pra quê?... Ninguém me quer lá. – olhou Tinoco firme. – Tu também tá aqui na rua, com bafo de cachaça e fedendo! Não tem casa não, ou é mendigo?
- Mendigo é a puta que pariu! Tenho casa própria!
- Rá, rá, rá! Então por que não tá lá?
Tinoco franziu a testa e respondeu: - Por que minha casa é o inferno!
- Por quê? – riso. – O capeta mora lá?
- Mora, e foi minha mulher que enfiou ele lá dentro. É meu cunhado e vou te contar: se cunhado fosse coisa boa não começava com “cu”!... Filho da puta explorador. Começou a dizer que eu não estou bom da cabeça, que estou velho e quer me interditar pra poder roubar meu dinheiro!
- Se a casa é tua, põe ele pra fora!
- Pensa que não tentei? – Tinoco cerrou o punho agitando-o no ar: - O canalha colocou minha família contra mim!... Até meu neto que tem seu nome. Aí eu passei a vir pra cá, porque aí não vão poder me roubar! – olhou em volta. – Aqui, antes de ter esse prédio, - apontou para trás: - tinha um monte de casas, e esta rua chamava Rua Raul Soares!
Alexandre olhou em volta. – É?... Essas casas ficavam aqui, no lugar do “bateau mouche”?
- Isso mesmo rapaz. Minha casa era aqui mesmo onde a gente está. A gente morava na frente e atrás era uma pensão, e da janela do meu quarto e dos meus irmãos, a gente podia ver a torre do prédio da estação! – apontou para frente e acima: - Eu dormia olhando o relógio e escutando o barulho do trem. Era tão bom a gente aqui! – falava alisando o chão: - Um dia veio um povo prefeitura dizendo que iam construir a Avenida Brasil, e puseram a gente pra fora. Depois derrubaram tudo,... Destruíram tudo que era da gente.
Alexandre continuava encolhido sem prestar muita atenção ao que Tinoco disse, mas perguntou: - Por que esse prédio aqui chama bateau mouche?
- É por que quando ele foi construído, um barco com esse nome afundou no Rio de Janeiro, na passagem do ano, e matou muita gente afogada. Como esse prédio parece um barco, colocaram esse apelido nele.
- Ah, tá... – falou Alexandre ainda encolhido enquanto Tinoco buscava a garrafa. – Agora ela tá cheia de água; pode beber. – passou a garrafa ao rapaz e depois falou: - Aqui eu me sinto mais em casa do que na minha casa. – abaixou a cabeça pressionando os olhos com as mãos. – Quando penso nisso, me dá muita tristeza; aí eu bebo!... Mas a cachaça acabou. – levantou-se: - Vou procurar um boteco aberto pra comprar outra.
Alexandre olhou-o: - Mas não falou que não tem dinheiro?
- Eu tenho,...
Ele o cortou: - Pera aí! – e se levantou meio cambaleante largando a garrafa no chão: - Falou também que vem pra cá, pra não deixar a tua família te roubar!... Então tem dinheiro!
Assustado, Tinoco se afastou: - Não tenho,... Vou pedir pra alguém me dar cachaça!
Alexandre avançou: - Velho mentiroso! Dá aí, anda!
- Ah,... A gente não pode dar mole pra cracudo!... Me larga, socorro! - tentou fugir com a mão no bolso, mas o rapaz segurou-o, deu-lhe uma chave de braço imobilizando-o contra a parede e meteu a mão no bolso da sua calça, até rasgando-o, apanhando o dinheiro. - Não,... É a minha aposenta... – mas não pôde terminar a frase porque foi empurrado, pisou na garrafa que rolava no chão e caiu batendo a cabeça na quina de uma jardineira, tombando ao chão com sangue escorrendo pela nuca.
Alexandre nem olhou para trás, sumindo na noite chuvosa deixando cair alguns papéis no chão encharcado.
Nem havia clareado o dia quando o encontraram estirado sobre uma poça de sangue aguado pela chuva. Policiais acharam sua carteira de identidade na sarjeta com o nome: Antonio dos Santos.
Os homens do IML vieram para recolher o corpo e fecharam seus olhos levando a última imagem que as retinas devem ter captado: a torre do relógio da antiga estação ferroviária.
FIM
Triste. Empolgante.
ResponderExcluirMuito bom! Fortíssimo!
ResponderExcluirMuito triste, né Ramon :-( Há muitos nessa situação, infelizmente. Belo conto, parabéns!
ResponderExcluirE a lei da rua. Obrigado
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