Júnior
Zeca, o faxineiro, conversava com o recepcionista na portaria do hotel: - Puta que pariu. Que calor héim?
- Boa lembrança Zeca; precisamos consertar o ventilador de teto do quarto 501; semana que vem já é o Miss Gay, e aí o hotel enche! – respondeu Tobias, o recepcionista.
Então um jovem trajando preto dos pés a cabeça e com cabelo escorrido cuja franja cobria seu olho direito entrou: - Oi seu Tobias.
- Oi Júnior.
- Eu vou subir tá. O brother tá me esperando.
- Ok, pode ir!
O rapaz entrou no elevador e Zeca falou: - Que rapazinho esquisito, parece uma assombração!
Tobias riu: - Ele é emo.
- O quê? Amo?
- Não! Emo!
- Queísso?
- É uma tribo!
- Ele é índio?
- Não, ô panguá! Tribo é o jeito de chamar jovens que andam vestidos do mesmo jeito; gostam das mesmas músicas e se reúnem pra curtir. Emo vem de emotivo, por isso andam parecendo que vão chorar. – riso: - Escutam umas musicas que dão a maior deprê,... Como chama mesmo a banda que eles curtem? Hummm,... Evanescence! – riu de novo: - A cantora é branca que nem papel, mas até que é gostosina! – apontou para cima: - Tem outro maluco aí da mesma tribo hospedado aqui!
- Aquele branquelo de cabelo preto comprido?
- Esse mesmo Zeca!
- Peraí Tobias: não é o do quarto 501?
- É! Por quê?
- É que ele foi embora hoje de manhazinha, antes de você chegar!
Cláudia vinha pela Rua Marechal Deodoro rumo ao seu apartamento acima de uma galeria, conferindo mensagens no celular quando avistou uma aglomeração de pessoas à esquina com a Avenida Francisco Bernardino á Praça da Estação. Havia caminhão do corpo de bombeiros, polícia e ambulância do SAMU e ela se preocupou que pudesse ser incêndio no hotel. Resolveu conferir.
Havia muita gente e todos olhavam para cima. – O que está acontecendo? – perguntou Cláudia á um homem que respondeu: - Tem um camarada na sacada do quinto andar do hotel querendo pular!
- Um suicida? Que horror! – começou a remexer na bolsa em busca de seus óculos quando uma amiga chegou: - Ah Claudinha, que bom que você veio!
- Não estou achando os óculos.
- Você precisa ser forte amiga!
- Ah, achei! – colocou-os e olhou para cima. – Por que preciso ser forte?
- Porque o suicida que está querendo pular é o seu filho!
Então Cláudia viu Júnior em pé na beirada da sacada e se assustou. – Ah meu Deus!... O que deu nesse menino? – e saiu correndo á portaria do hotel sendo detida por dois policiais no cordão de isolamento e protestou: - Me larguem, o rapaz que está lá é meu filho!
Tobias veio falando: - É a dona Cláudia, mãe do Júnior! – um policial liberou: - Podem deixá-la entrar. - ela seguiu ao o elevador na companhia de Tobias e outros policiais. Um psicólogo os acompanhava e perguntou á Cláudia se Júnior apresentava alguma neuropatia. – Neuro o quê? – perguntou aflita.
- Algum distúrbio mental, ou faz uso de medicamentos?
- Não! – respondeu.
- Seu filho é usuário de entorpecentes?
- Não! O Júnior não é maconheiro!
Num canto do elevador Tobias fez um muxoxo como se dissesse: “tem mãe que é cega”.
O corredor do quinto andar estava cheio de gente, hóspedes, bombeiros, policiais, empregados do hotel que olharam Cláudia num misto de piedade e curiosidade. O quarto 501 estava isolado e ficava na quina do prédio. A camareira explicou que o rapaz aproveitou que a porta estava aberta para entrar, colocá-la para fora e trancar a porta por dentro; então ela avisou a ocorrência no instante que transeuntes alertavam á portaria que havia alguém em pé no parapeito da sacada ameaçando se jogar. Tobias foi questionado por ter permitido que Júnior subisse sem ter comunicado ao hóspede da chegada de um visitante, porque isto era irregular. Então ele alegou que o rapaz subiu escondido. Num outro canto, Zeca o contradizia afirmando que o recepcionista havia autorizado á subida de Júnior. Uma das camareiras abanou a cabeça pensando: “patifes!”.
Cláudia entrou no quarto, viu seu filho em pé na sacada e gritou. – Júnior!
Ele quase desequilibrou ao olhar para trás, mas como era alto conseguiu alcançar a borda do teto, e ameaçou: - Não chega perto senão eu pulo!
O psicólogo e um bombeiro seguraram-na á porta dizendo: - Não chegue muito perto senhora! - ela obedeceu e falou: - Júnior, pelo amor de Deus, desce daí!
Ele respondeu: - Por que, mãe?
- Você pode cair daí meu filho!
- E daí?... Qual o problema nisso?
- Você pode se machucar ou morrer!
Ele riu: - E a senhora não quer isto, não é mãe? Por quê?
- Ora, você é meu filho, eu não quero que você morra!... Pelo amor de Deus, desce daí, vamos conversar!
- Então agora a dona Cláudia quer conversar? Que engraçado; a senhora nunca quis conversa, nunca me perguntou se eu estava feliz ou pelo menos satisfeito!
Tobias olhou a camareira com o canto do olho e sussurrou: - Esse moleque é um maluco!
Ela respondeu: - Coitada da dona Cláudia: filho único, separada, dá um duro danado na loja, e ainda tem que pelejar com isto!
- Ah se fosse meu filho! – falou o recepcionista.
Júnior! – falou Cláudia: - desce daí,... Vamos conversar então!
- O tempo das conversas já passou! Na verdade, esse tempo nunca existiu, né mãe? Eu fui criado que nem um pet: era só dar casa, comida, fazer um afaguinho na cabeça e já tava bom!
- Eu nunca deixei de te dar atenção, que absurdo!
- Mentira, e a senhora sabe disso! Sou o esquisito da família; pensa que não sei disso? Pensa que não sei que tios e primos falam de mim pelas costas, até me chamando de viado?
- São uns idiotas Júnior, você mesmo fala isto!
- Falo pro vento, porque a senhora não escuta e até concorda com eles!
- Eu não faço isto!
- Faz sim!... Diz que eu sou assim mesmo e tem que tem que ter paciência! Claro, quem tem filho esquisito tem que ter paciência e aguentar a carga!
- Não dá pra argumentar com eles, você sabe!
- Então a dona Cláudia vai na onda deles e eu viro o doido que inventa histórias e vive no mundo da lua!
- Eu nunca disse isto!
- Nunca mãe?... Tem certeza?
- Tenho!... Eu te amo, você é meu filho querido!
- Oh sim! Fui muito querido, esperado, mas frustrei todo mundo, tanto que papai foi embora porque não queria ter filho viado e maluco! - ela ficou calada e ele prosseguiu: - De que tamanho a senhora pensa que é nosso apartamento? Eu ouvi tudo do quarto, quando papai queria me internar numa clinica psiquiátrica a conselho dos parentes.
Ela interrompeu: - Sim e verdade!... Mas você deve ter visto que botei todo mundo pra fora porque não concordei! Lembra Júnior?
- Sim, e lembro que papai ameaçou ir embora se a senhora não aceitasse me colocar no hospício!
- Exato! Então eu mostrei a porta da rua pro Januário também! Isso não foi prova de amor suficiente pra você Júnior?
- Muito amor! Eu vi esse amor depois na mudança da senhora comigo, me olhando com se dissesse: “tudo culpa sua que seu pai foi embora!”.
- Eu nunca fiz isto!
- Ah! - bateu a mão na testa: - Esqueci que o maluco sou eu, não é? O esquisito depressivo,...
- Júnior,... Aqui não é hora nem lugar para discutir isto!
- Porque não aqui?... Tem uma boa plateia pra dona Cláudia fazer seu número de mãe dedicada que sacrificou o casamento por causa do filho esquisitão!
Nisto veio um bombeiro e falou algo ao ouvido do comandante, que respondeu sussurrando. – Podem fazer! – enquanto Cláudia respondia: - Eu não estou atrás de plateia alguma,... Só não quero que você se machuque ou...
De repente um bombeiro que estava no beiral do andar de cima saltou preso á uma corda de rapel descrevendo um movimento pendular e agarrou Júnior pelo tronco numa “tesoura voadora” derrubando-o para dentro da sacada, e logo outros bombeiros o imobilizaram. Claudia também caiu e foi amparada enquanto via homens colocando-o numa maca, atando seus braços e tornozelos.
– Para onde vão levar meu filho? – perguntou Cláudia assustada.
- Para o hospital. – respondeu um paramédico.
Ele se debatia e gritou chorando: - Não me leva pro hospício mãe!... Eu tomo jeito, eu juro!
- Não filho,... Eu não vou deixar! Eu vou junto!
Passaram pela calçada com uma salva de palmas aos bombeiros pela ação rápida, registrada pela imprensa, e entraram na ambulância que seguiu de sirene aberta pela avenida.
Na portaria do hotel Tobias abanava a cabeça em zombaria: - Que frescuragem! Fosse meu filho eu botava no trampo brabo para aprender a ser homem!
Zé estava do lado e concordou: - É mesmo!
A ocorrência foi manchete no noticiário noturno, até á nível nacional. Encontraram o homem que estava hospedado no quarto 501, se chamava Élio, e se apresentou como músico de uma banda. Disse que era amigo de Júnior apenas no Facebook e Instagram e o atendeu como á qualquer fã da banda.
Dias depois Júnior voltou para sua casa.
Passou por vários exames, inclusive de tóxicos, mas estava limpo. O psiquiatra o diagnosticou como depressivo e sugeriu acompanhamento sem necessidade de internação.
Júnior estava no seu quarto, na cama. Precisava ficar imóvel porque a ação do bombeiro resultou em fraturas nas costelas, e olhava á janela com expressão perdida quando Cláudia entrou: - E aí filho; ainda está doendo?
- Não. Só as ataduras incomodam.
- É por poucos dias.
- Sim.
Seu notebook estava sobre a cama, e ela perguntou: - Muitas mensagens de amigos?
- Algumas. São sou de muitos amigos.
A conversa parecia atada á uma rede de constrangimentos até Cláudia decidir rompê-la: - Júnior; precisamos conversar sério.
- Sim, eu sei. Pode perguntar que eu respondo.
Ela abanou a cabeça: - Desse jeito vai parecer um interrogatório. Lá no hotel você disse que nunca dei chance á um diálogo entre nós,...
Interrompendo-a: - Eu falei muita coisa que não queria. Mas eu não quero mais ser o esquisito da família e nem fazer a senhora e papai passarem por esse tipo de vergonha. – buscou uma tesoura na mesinha. – Me ajude a cortar o cabelo mãe!
- Porque quer cortar seu cabelo agora? Daqui uns dias você poderá ir a uma barbaria.
- Quero acabar com isso logo!
Ela pegou a tesoura de sua mão e disse: - Mas você gosta do seu cabelo grande. Reclamava que demorou a crescer.
- Mas não quero mais ficar com cara de doido!... Corta logo mãe!
- Júnior!... Eu precisei ver meu filho único na beira do suicídio para entender muita coisa.
- Do que a senhora está falando mãe?
- Espere um momento; eu quero lhe mostrar algo! – Cláudia saiu do quarto e retornou com uma fotografia na mão. – Veja isto, Júnior.
Era a foto antiga de um casal. O homem tinha cabelos longos e era um tipo bem peculiar. A garota tinha cabelos encaracolados e fartos; era magra e usava blusinha de alças. Olhando mais um pouco ele reconheceu seus traços: - Mãe?... É a senhora?
- Sim. Eu era assim aos dezesseis anos.
- E quem é esse cara?
- Era meu namorado. Chamava-se Edgar e tinha trinta anos. – sentou-as á cama com cuidado. – Era o escândalo da família que a filha do doutor Costa namorasse um sujeito quatorze anos mais velho! E também que a Claudinha tinha virado a Dinha que fazia bijuterias para vender no Parque Halfeld,... – riso: - E até aí na Praça da Estação! Ia a shows de rock com roupas de brechó. Era desobediente; boca suja e,... Piranha! Era disso que me chamavam nas minhas costas. - Júnior olhava a foto com estranheza enquanto ela prosseguia: - Eu não era mais virgem, mas não era piranha! Seu avô não sabia lidar com uma filha que pensava diferente, e sua avó, que Deus a tenha, se omitia na saudade da infância de sua filhinha. – olhou bem o filho: - Entendeu? Eu era a doida da família!
- Porque a senhora nunca me mostrou esta foto e nem falou nada?
Ela deu de ombros: - Talvez por vergonha deste passado. Um dia, eu viajei com Edgar. Fomos á Porto de Galinhas num festival de rock, arte, dança e teatro.
- Vovô deixou?
- Jamais deixaria; então eu fugi! Ah,... Foi um fim de semana mágico; Edgar era filósofo. Maravilhoso! Só que quando voltamos, seu avô tinha feito queixa á policia, acusando Edgar de corrupção de menores e rapto! Ele foi preso, e eu fui internada numa clínica psiquiátrica! – Júnior olhava-a espantado: - É querido. Sua mãe foi internada num hospício como portadora de comportamentos antissociais!
- E o Edgar?
- Foi condenado. Mas como era primário, conseguiu ficar livre. Depois sumiu e nunca mais quis me ver. Não o culpo e fiquei profundamente assustada e envergonhada por tê-lo feito passar por aquilo. Fiquei interna por três meses e saí decidida a tornar-me o que esperavam de mim. Enterrei a Dinha e voltei a ser a Claudinha, estudiosa e diligente. Cortei o cabelo e joguei as roupas de brechó no lixo! Mais tarde conheci seu pai, me apaixonei e nos casamos. – riso: - Mentira; eu o tinha conhecido Januário na clínica também.
- Papai também estava internado na clinica psiquiátrica? Por quê?
- Razões semelhantes: era um adolescente rebelde que fumava maconha e queria virar um pop star da música; ele era baterista!
- Meu pai? Não acredito!
- Mas é verdade. Éramos os dois malucos das nossas famílias classe-média, motivos de vergonha e comentários até nos tornarmos exatamente o que repudiávamos: dois caretas perfeitamente integrados á ordem da tradicional família mineira! Eu troquei as miçangas e contas pela Administração, e seu pai as baquetas pela Contabilidade; e achávamos que estava tudo certo até vir você. Nosso filhinho do coração como o complemento perfeito á família perfeita. – riso: - Só que não!
- Eu estraguei tudo, né?
- Sim meu querido; diferente desde criança. Preferia leituras á bola de futebol; o cinema ao vídeo game; e o livre pensamento ao invés de acompanhar a manada. – riso: - O que poderia sair da união de dois malucos, senão mais um maluco? Diziam. Todo nosso empenho em sermos normais foi frustrado por você, meu filho!
- Eu não queria isto,... Perdão!
- Não! Eu é que nunca me perdoarei por não ter resistido! O medo me venceu. E não guarde ressentimentos por seu pai ter pensado em te colocar numa clinica psiquiátrica. Foi desespero ante ao que não conseguiu mensurar.
- Ele abandonou a senhora por causa disso.
- Não meu filho. O nosso casamento já estava ruim; foi só a gota d’água. Olhe Júnior; se algum dia nós tentamos lhe passar imagens da rainha do lar e do pai herói, esqueça-ás porque são mentiras; mate-ás! Somo gente, e como diz a canção do Renato Russo: “somos crianças como você”, e erramos pra caramba! – após breve silêncio, ela prosseguiu. – Se você quer cortar seu cabelo por vontade própria, eu o faço. Mas se é para se tornar mais um careta na família Costa, não o faça! – afagou-o: - Seu cabelo estranho que lhe cai no rosto é símbolo da sua resistência; do seu ser! Um dia eu permiti que cortassem minhas madeixas, pensando que junto cortaria as minhas vontades. Mas eu lhe asseguro filho: elas permanecem na raiz e doem á cada lembrança do que foi perdido!
- Ah,... Depois eu vou á barbearia, só para tirar um pouco. – sorriu: - Tá meio sem corte, né?
- Do jeito que você quiser filho.
- Se dói, por que a senhora não deixa seu cabelo crescer de novo?
- Está grisalho! Vou ficar parecendo uma bruxa!
- E daí?
- Hum,... Quem sabe? Olhe Júnior; Januário está na sala agora. Quer te ver!
- Porque papai não entrou?
- Por vergonha. Não de você, mas dele mesmo. Suas raízes devem estar doendo! Posso chamá-lo?
- Sim Mãe,... Ou melhor: Dinha! – e riu.
- Olha aqui moleque; se for pra fazer gozação, não vou curtir! – os dois riram e ela saiu rumo á sala.
- Pode ir falar com seu filho. Mas,... Pega leve!
Ele levantou, seguiu ao quarto e fechou a porta. Mas foi possível ouvi-los chorar num abraço emocionado.
Claudinha seguiu ao banheiro para enxugar uma lágrima e olhou-se no espelho. Passou suas mãos nos cabelos curtos e disse: - É!... Pode voltar Dinha,... Estou com saudades!
FIM
Gosto muito do jeito que escreve sobre situações que nos afetam de alguma forma, Ramon. Realmente, não temos coragem de resistir ao que a sociedade nos impõe. Parabéns!
ResponderExcluirCada vez melhor meu amigo! Parabéns!
ResponderExcluirMuito bom
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