Rosa
2020.
Elcio acabava de apagar o cigarro pela metade antes de atirá-lo ao lixo. Estava na cantina do fórum aguardando a chamada para uma audiência em plena pandemia da covid19. Era advogado e sua cliente uma professora demitida de um importante colégio após acusação de incitação á desordem por ter falado sobre levantes e revoltas na história do Brasil, relacionando-os á atualidade. Na sua defesa tratava-se de um exercício dialético sem qualquer apologia subversiva.
Então escutou passos de salto alto ecoando no corredor; era Amanda, a advogada que defendia a posição do colégio face á colocação de cunho político na apresentação do tema por parte da professora, que teria sido alertada ao caráter neutro do colégio á qualquer questão levada em classe. Assim, justificavam sua demissão pela reincidência.
1982.
Amanda chegou perto de Elcio na sala de aula do cursinho pré-vestibular noturno que frequentavam á Rua Halfeld. – Vamos? O comício já deve ter começado!
- Não vai dar merda a gente matar a aula para ir?
- Ah, todo mundo vai! Pô; é um negócio importante, cara. A eleição tá aí e a gente precisa participar da política do nosso país!
- Ih, você está falando igual nossa candidata, a Sandra! Mas tá bem, eu vou. Só não podemos voltar tarde, senão o cursinho fecha e nosso material vai ficar preso aqui.
- Sim, eu também não posso chegar tarde em casa, senão a tia me mata! Vamos?
2020.
- Olá Elcio, como vai?
- Vou bem Amanda. E você?
- Estou bem, apesar da pandemia.
Ele atendeu ao telefone: - Um instante! – alguém no outro lado explicando que estava com problemas para chegar ao fórum: - Certo, realmente está difícil. Mas tente não se atrasar; ok? – desliga.
Amanda tirou os óculos, reclamando: - Estas máscaras embaçam as lentes!
Elcio a olhava.
1982.
Amanda puxava Elcio pela Rua Marechal Deodoro rumo á Praça da Estação ao comício que reunia partidos de esquerda. Um professor do cursinho era candidato á vereador e tinha apoio da maior parte dos alunos, que inclusive estavam matando aula para vê-lo. Os dois seguiam o fluxo de pessoas com bandeiras, gritando palavras de ordem.
- Quanta gente Amanda!
- É muito legal, cara!... Papai fala dos comícios que ele ia, mas eu não imaginava que era assim!
- Meu pai também fala disso!
- Seu pai é meganha, Élcio!
Ele parou: - Tá querendo dizer o quê com isso?
- Ah,... Seu pai é da policia militar; não deve curtir esse negócio de comício!
Irritado: - Olha só; eu é que não curto essa piadinhas sobre meu pai! Ele é da polícia, mas nunca fez parte da repressão!
- Desculpa Elcio! – aproximou abraçando-o: - Eu sei que não! Pô; conheço seu pai, e tá na cara que é gente fina! – olhou-o: - Desculpa?
- Tudo bem; eu é que fico grilado com isso! Vamos andando que não quero perder a fala do professor Johnny!
2020.
- Seu cliente já veio? – perguntou Elcio.
- Sim. Quando começar a audiência eu o chamo.
- É o diretor do colégio?
- Não. Ele não pode vir por causa da covid e mandou representante.
-Hum. – assentiu Elcio. – Fiquei sabendo do falecimento do seu pai. Meus sentimentos Amanda.
- Obrigada. Vi sua mensagem no Facebook. – abanou a cabeça: - Pobre papai. Nunca esperou ter um fim de vida tão vazio! – suspiro: - Depois que perdemos nossa fazenda ele se acabou.
1982.
O palanque ficou posicionado de costas ao prédio da estação ferroviária, liberando o trafego na avenida enquanto pessoas iam chegando carregando faixas e bandeiras.
- Nossa; quanta gente! – exclamou Elcio. – Olha, tem até televisão fazendo reportagem!
Amanda se escondeu atrás dele: - Onde, onde?
- Ali perto do hotel! – riso: - Tá escondendo de quê Amanda?
- Se eu aparecer na televisão aqui, to fudida! Minha tia vai ligar pro meu pai no Mato Grosso no ato; aí vai ser a maior bronca!
- Por quê?
- Ah,... Papai não aprova muito minha participação nessas coisas de esquerda por causa da questão de reforma agrária que a gente defende. Eu falo pra ele não estamos referindo a nossa propriedade que é desse tamaninho e tá longe de ser latifúndio improdutivo. Mas ele, e também meus irmãos não entendem, aí dá briga! Por isso prefiro evitar, entende?
- Então vamos para o outro lado! – falou rindo puxando-a pela mão. – Que engraçado!
- O quê é engraçado?
- É que meu pai, que vocês chamam de meganha, sabe que eu estou aqui num comício de esquerda, e até apoiou. Só pediu para não comentar perto dos amigos dele.
- Tá vendo como a gente tem que ficar se escondendo do mesmo jeito?
- Não to escondendo de nada Amanda!
- É mesmo Elcio? Então corre lá na reportagem e pede para dar uma entrevista, se mostrando aqui no meio dos “comunistas”!
Ele parou: - Duvida que eu faça?
Amanda ficou quieta, e viu o professor Johnny subindo ao palanque; seria o primeiro a discursar. – Olha, vai começar!
2020.
- Vocês perderam a fazenda? Como foi isto?
- Nossa propriedade foi desapropriada, junto outras tantas, para a criação de uma reserva indígena. Você não ficou sabendo? – ele abanou a cabeça. Ela riu irônica e prosseguiu: - Na década de setenta, papai vendeu o sítio que tínhamos no Sul de Minas, e fomos atrás de um projeto de colonização do Centro-Oeste do governo. Era tudo difícil; nem luz tinha. Chegamos a passar fome cercados de plantações de soja, mas perseveramos na busca do sonho e meu pai conseguiu vencer. Ele se tornou referência como pequeno produtor no agro negócio, sabia disto?
- Sim, isto eu fiquei sabendo. Foi até reportagem do Globo Rural.
- Então você viu a história apenas até a parte boa!... Um dia, papai foi comunicado que teria três meses para desocupar a fazenda. Toda a região foi decretada reserva indígena, e os invasores teriam este prazo para desocupar tudo, deixando todas as melhorias para trás! – soltando o ar num desabafo: - Ouviu bem? “invasores”. É isto que papai era! Nem tinha como contestar na justiça porque era decreto presidencial. Papai saiu quase com a roupa do corpo; abatido, humilhado e endividado, porque para o banco, dívida é dívida! – encarou Elcio: - Fomos levados para lá nas promessas de um governo; e anos depois nós fomos expulsos por outro governo. Entende? Nós não vivemos no amparo do Estado de direito; mas no direito ao amparo concedido pelo Estado, que varia de acordo com a ideologia dos mandatários! No velório de papai eu fui hostilizada pela família porque era a favor da demarcação das terras indígenas. Diziam que ajudei a matar papai! – continuou olhando-o: - Como vê; talvez eu tenha escolhido o lado errado.
1982
-... Por que o direito á terra não pode ser apenas de uns poucos exploradores em latifúndios gigantescos! O camponês é escravo na sua própria terra, sem direito a nada; a única saída é uma ampla reforma agrária, necessária e urgente! Abaixo os latifúndios, viva a reforma agrária!
Todos aplaudiam ao discurso do professor Johnny e repetiam em coro: “Viva a reforma agrária”!
Elcio repetiu e aplaudiu, mas não deixou de observar: - Pô, a fala do professor tá parecendo até aquelas aulas dele que a gente quase dorme! – olhou em torno: - Acho que a galera tá aplaudindo de pena!
- Deixa de ser chato Elcio! O jeito dele falar é assim mesmo.
- Você quer dizer: É o que temos por hoje?
Ela riu: - É,... Mas chamar trabalhador rural no Brasil de camponês parece coisa de chinês; ele podia ter ensaiado mais né? Mas tá apoiado!
- Apoiado. Eu queria ver é se fosse reforma agrária pros lados das terras do seu pai, se tu ia curtir!
- Não encuca pô! A terrinha do papai não é latifúndio, e ele rala pra caramba junto com meus irmãos! – deu de ombros: - Fazem de tudo para eu poder estudar e passar na faculdade.
- Eles querem que você faça vestibular de agronomia em Viçosa né?
- É,... Mas não é isto que eu quero. Prefiro serviço social, sabe? Essa coisa de trabalhar com o povo, é isto que eu curto!
- Meu pai quer que eu siga carreira militar. Não me obriga, mas toda hora fala!
- E você curte isso Elcio?
- Não sei Amanda,... Ás vezes eu acho que podia ser uma boa.
Ela riu e falou: - Não to acreditando que ia te ver com o cabelinho raspado assim dos lados! – acariciou seu rosto: - Até que ia ficar um reco bonitinho!
Os dois aproximaram, mas foram interrompidos por um tumulto ao lado. Os policiais foram hostilizados com vaias e frases: “abaixo a repressão, abaixo a repressão!”.
2020.
Elcio devolveu o olhar, provocativo: - Então você acha que a demarcação das terras indígenas não é o lado certo?
- Não torça minhas palavras Elcio! Fui das primeiras a levantar essa bandeira no Mato Grosso; mas achar certo que pessoas sejam escorraçadas de uma vida inteira de trabalho, sem direito a nada e ainda tachadas de invasoras ao sabor das circunstâncias? Não é justo! Ou você acha isto certo?
- É claro que não acho certo! Então, já que tocamos no assunto de certo ou errado de acordo com determinadas circunstâncias; há uma coisa que não entendo Amanda!
- O que é?
- Você diz que seu pai foi vítima de uma mudança nas circunstâncias ideológicas, mas agora defende um colégio que demite uma professora de muitos anos, que sempre teve o direito de expressar suas opiniões em classe! Isto também não foi uma mudança de posição ao sabor das circunstâncias ideológicas do colégio? Foi justo?
Ela o cortou: - Não precisa me relatar o caso porque eu li o processo! Ela foi denunciada á direção do colégio por pais de alunos que não quiseram que seus filhos fossem influenciados por opiniões radicais de esquerda!
- Hei! Não eram opiniões radicais!
- Mas eles assim entenderam! – retrucou Amanda. - Aí eu te pergunto: esses pais não teriam direito á opinião face á educação dos seus filhos? Até onde eu entendi, a direção da escola aconselhou á professora que tivesse moderação ao explanar suas ideias em classe e ela ignorou a recomendação. Ou seja; ela não foi pega de surpresa, e sabia que poderia receber retaliações!
- Este é exatamente o princípio da repressão dissimulada, que finge tolerar e aceitar opiniões antagônicas, mas age na covardia! – respondeu Elcio. Ela ia partir á tréplica, mas chegaram pessoas á cantina, e eles se contiveram.
1982.
Amanda quis se juntar ao grupo dos que vaiavam e insultavam os policiais, mas Elcio avisou: - A TV está filmando tudo! – ela o acompanhou e depois olhou para os lados assustada.
- A onde está a reportagem?
Ele riu: - lugar nenhum boba! Falei pra te tirar de lá!
- Ah, bandido! – e riu também.
2020.
As pessoas se retiraram e Amanda falou: - Vamos maneirar. O que não vão pensar vendo os dois advogados que daqui a pouco estarão numa audiência, batendo boca na cantina?
- Talvez não pensem nada! – suspirou Elcio: - A verdade é que ando tão cansado de pensar. O caso mesmo desta professora: no fundo eu acho que ela devia ter tido mais cuidado na hora de emitir opiniões num lugar onde elas não eram bem vindas. Olhe em volta? Lutamos tanto para ter o direito á opinião e agora estamos sufocados por elas, porque descobrimos que não têm cor, sabor ou cheiro, mas podem ser adoçadas, salgadas ou apimentadas ao gosto do freguês! Seu pai foi um pioneiro num momento, e virou invasor no outro. A professora cumpria seu papel didático antes, e depois virou subversiva! – fez uma pausa: - Meu pai foi um exemplo num momento,... E uma mentira no outro.
- Do que está falando Elcio?
- Lembra que vocês diziam que meu pai era meganha e tinham até medo de falar coisas na minha frente? Eu o defendia. Mas,... - pausa: - Mas era verdade; eu descobri que ele fez parte da repressão nos anos setenta. Era meu pai que investigava as pessoas em busca de indícios de subversão, e encaminhava as denúncias á policia política!... – passou a mão no rosto: - Quantos não foram em cana por causa dele!
- Mas, você dizia que ele não reprimia suas opiniões, apesar de serem de esquerda!
Ele não me reprimia, mas morria de medo das consequências das minhas posições; por isto queria que eu seguisse carreira militar, porque acreditava que dentro do quartel, eu estaria seguro.
- Oh,... E seu pai sabe que você tem conhecimento deste fato?
- Não!... E nunca vai saber. É meu pai, e eu o amo! Por isto eu digo que estou cheio de ter opiniões, por que elas se voltam contra nós,... Ou pior: podem se tornar banais.
Então veio o auxiliar do juiz avisar que poderiam se encaminhar ao gabinete do para a audiência. A professora estava chegando e o representante do colégio também.
1982.
Então subiu ao palanque a candidata ao governo do estado de Minas Gerais que todos queriam ouvir.
Amanda e Elcio seguiram o mais perto possível, e foi emocionante ouvi-la dizer de forma jocosa: “O governo só quer saber de pôr na bunda do povo!”. Todos foram ao delírio, não numa gargalhada fugaz, mas numa catarse transgressora ao ver uma mulher falando “bunda” ao microfone, como se aquela palavra africana fosse um grito capaz de esfarelar a ditadura!
Amanda se encostou ao peito de Elcio, que a abraçou.
2020.
Horas depois Amanda seguia pelo corredor do fórum, falando ao diretor do colégio ao telefone: - Foi a melhor coisa a fazer, acredite! Tudo que a instituição não precisa agora, é que esse caso se estenda! Assim, o acordo que conseguimos foi a melhor saída para todos. – no outro lado da linha uma voz fazia réplica, e ela respondia: - Eu sei, mas ás vezes, perder é a melhor saída! Dá a sensação de triunfo ao vencedor, ao mesmo tempo em que confere dignidade ao perdedor que aceita a derrota! – riso: - Se vocês querem contestar; tudo bem, mas procurem outro advogado. Obrigada! – desligou resmungando: - Imbecis!
Na saída do fórum, a professora agradecia á Elcio exaltando a justiça. Ele sorria ao observar Amanda chegando ao foyer.
1982
Na Praça da Estação, Amanda e Elcio ficavam cada vez mais inebriados pelas palavras de Sandra.
- Elcio,... Você está prestando atenção no que estamos assistindo agora?
- Sim,... Estamos fazendo história, né Amanda?
E se olharam.
2020
Amanda se aproximou de Elcio, que a olhou. Ela sorriu: - Parabéns pela vitória doutor Elcio!
- Pare com isso; por que você perdeu?
- Oh que absurdo; perdi porque você foi melhor!
- Não se faça de boba! Eu a conheço o bastante para sacar que você perdeu a ação de propósito! Minha argumentação era fraca, e nem precisaria meia lauda para me pôr a nocaute! O que foi aquilo; pena de mim?
- Não seja tolo e entenda: você ganhou!...
1982
Na praça todos prestaram atenção: -... “Eles poderão destruir uma rosa; poderão destruir todas as rosas; mas nem assim eles conseguirão deter a chegada da primavera!”. - Sandra terminou de falar e recebeu uma longa ovação que ecoou por toda a Praça da Estação.
Abraçados, Elcio e Amanda se olharam, e se beijaram.
2020
Elcio e Amanda ainda se olhavam, e apertaram as mãos.
- Você ganhou, por nocaute, doutor Elcio, acredite! Acho que é preciso cuidado no momento de escolher qual o lado certo! Não é?
- Concordo! Então; obrigado, doutora Amanda!
Ela pôs a máscara, limpou as mãos com álcool gel, e saiu.
Elcio ficou um tempo no foyer do fórum, ainda se lembrando daquela noite perdida em algum lugar de 1982, quando dois jovens tinham certeza de qual era o lado certo.
FIM.
Ramon Brandão, que conto oportuno,verdadeiro, delicioso de se ler! Só aplausos!!!
ResponderExcluirObrigado.
ExcluirO que é certo para um pode ser errado para o outro. Depende do ponto de vista, não é mesmo? Muito bom o conto, que nos leva a refletir nesse momento que estamos passando. Parabéns 👏👏👏
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