quinta-feira, 29 de outubro de 2020

CONTOS DA PRAÇA DA ESTAÇÃO #12

 

ATAULFO.

Noite chuvosa na Praça da Estação num tempo qualquer no passado quando o frio da cidade de Juiz de Fora parecia trazer mil demônios soprando ares gelados sob as vestes. encarangando o corpo todo.

O relógio da torre marcava três horas da madrugada e um morador de rua solitário cruzou a praça. Era moreno, magro, barbudo, carregava um embornal atado a um cabo de vassoura, usava um gorro de lã, calçava chinelos de dedo e usava uma camisa de malha curta mostrando a barriga entre a barra e o cós das calças sujas, que nem o zíper de um velho agasalho fechado até o pescoço lhe trazia algum calor.

Ele bebeu um trago de cachaça num corote para esquentar enquanto procurava lugar para dormir sem ser sob as marquises, onde um vento polar cortava como navalha, e seguiu ao desvio morto dos trilhos do trem, perto da estação, onde haveria vagões abandonados. Logo os avistou: eram vagões de carga com portas abertas, mas tão imundos que não serviriam sequer para suínos pernoitarem; porém, no meio deles havia um de passageiros com jeito de ser muito antigo que poderia ser um bom lugar para passar a noite. Ele se aproximou devagar, temeroso de haver guardas. Estava tudo deserto, então e chegou á porta do vagão segurando o cabo de vassoura como patética arma, caso houvesse alguém lá dentro que se mostrasse pouco amistoso.

Estava muito escuro e ele entrou sentindo os bancos do antigo vagão com as mãos calejadas. Na penumbra conseguiu enxergar um pouco e andou até o fim do vagão onde havia um pequeno reservado com um vaso sanitário. Ele aproveitou para urinar sem muita pontaria na escuridão. Depois retornou ao meio do vagão, olhou em torno e largou o embornal num dos bancos. Pegou uns papelões que encontrou num canto, cobrindo os assentos de madeira num arremedo de colchão e um cobertor no embornal. Depois deitou tentando aconchegar sua estatura ao comprimento exíguo do banco para dormir. Ainda apanhou um jornal velho e fez uma bucha para travesseiro.

Estava começando a adormecer quando despertou ouvindo um ruído; mas não deu importância e tornou a fechar seus olhos. O ruído voltou: parecia um lápis sendo apontado com estilete. Ele levantou com o cabo de vassoura nas mãos e seguiu a porta, pois topar com alguém trazendo um estilete não seria boa coisa. Chegou a sair do vagão, mas não havia ninguém e o ruído desapareceu. Então deu de ombros, imaginando ser algum bicho noturno, voltou á sua cama de papelão, deitou e fechou seus olhos de novo.

Em instantes ouviu algo que lhe pareceu páginas de um caderno sendo viradas. Ele levantou sua a cabeça e olhou em torno: havia uma folhagem tremulando ao vento numa das janelas. Não foi nada, e ele fechou os olhos, cobrindo-os com o gorro.

Mas o sossego durou pouco, pois novamente ecoou um som estranho no vagão parecendo o trecho de uma musica de Ataulfo Alves: “... Que saudades da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá”... Que me ensinou o bê-á-bá...”– como num disco com defeito o refrão se repetia. Intrigado, ele se levantou com raiva e chegou á janela, onde avistou apenas os outros vagões abandonados nos dos trilhos desertos, e a música desapareceu. – Qual é o filho da puta que tá me zoando? – resmungou enquanto voltou sua cabeça para dentro do vagão e ouviu um novo ruído parecendo giz riscando num quadro negro. 

Confuso, ele olhou adiante e viu algo assustador. Palavras luminosas eram escritas no fundo do vagão no que agora parecia ser um quadro negro.  Eu sempre devo prestar atenção na aula”.

- Mas que porra é esta... ? Nem teve tempo de terminar porque subitamente ele teve seu pulso puxado com força, tendo sua mão presa no tampo de uma mesa com a palma para cima enquanto o ambiente assumiu um tom preto e branco com luzes oblíquas iluminando rostos de uma professora com cabelo preso num coque e três alunos: dois garotos e uma garota de tranças.  Ele se assustou, e a professora falou fitando-o: - Aluno relapso! Mijou fora do vaso, falou palavrões e ainda dormiu na aula? – mostrou uma palmatória: - Então merece um castigo! – e começou a bater com toda a força na mão do morador de rua que gritava de dor e medo enquanto os alunos contam as palmadas: - “Um, dois, três, quatro, cinco,...” – então se ouviu a música de Ataulfo Alves no disco riscado repetindo o refrão: ... Que saudades da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá..., Que me ensinou o bê-á-bá..., Que me ensinou o bê-á-bá...,”;   enquanto a professora ria ás gargalhadas ao lhe bater.

Desesperado, ele conseguiu se livrar e saiu correndo do vagão em pânico e aos tropeços ao som da música e da risada histérica da professora: “Que me ensinou o bê-á-bá..., Que me ensinou o bê-á-bá...”...

O morador de rua fugiu em desabalada correria deixando embornal, cachaça e cobertor para trás enquanto prosseguia a música: -... “Eu era feliz, e não sabia... Eu era feliz, e não sabia... Eu era feliz, e não sabia...”...

 

Na manhã seguinte, empregados da MRS preparavam o vagão para a remoção ao pátio do bairro Industrial.

- Que trem antigo! – observou um deles. – Era o quê?

- Leia aí! – apontou á um letreiro enferrujado: “Vagão- Escola”, e falou: - Legal né? Era um trem colégio, ou coisa que o valha!

- Que bacana! – respondeu: - Por que foi abandonado?

- Sei lá! – coçou a cabeça sob o boné: - Tudo que é bom eles destroem; parece que querem ver a gente cada vez mais burros! – e entraram para uma espiada: - Puta que pariu, que imundice! – e começaram a jogar coisas para fora, inclusive o embornal junto aos despojos de muitos moradores de rua que tentaram usá-lo como abrigo. Por fim uma folha de jornal antigo amarrotado onde ainda era possível se ler a manchete em letras garrafais:

“... Crime pavoroso no vagão-escola: professora enlouquecida mata três alunos a golpes de compasso, e se mata. – detalhes na pagina 03”.

 

FIM.     

 

Obs: O titulo da canção de Ataulfo Alves citada é “Meus Tempos de Criança”.

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