CONTINUAÇÃO
Glamour, feminismo, subversões e transgressões na era de ouro do cinema americano (ensaio).
Montgomery Clift, Marilyn Monroe e Clark Gable no filme “Os Desajustados” de John Huston lançado em 1961.
Como foram demonstrados antes, os modelos femininos importados dos folhetins chegaram ao cinema onde criaram novos arquétipos da mulher sensual – chamadas mulheres fatais – que encantaram gerações de espectadores, Contudo, a sociedade seguiria o turno da emancipação feminina, não só no trabalho, mas na reformulação seu papel dentro desta mesma sociedade. Como a indústria cinematográfica norte-americana se moldaria á esse novo modelo?
Não que inexistissem filmes de Hollywood com mulheres trabalhadoras. Governantas e empregadas domésticas, cozinheiras eram sempre interpretadas por atrizes que compunham o chamado supporting cast, ou elenco de apoio. Geralmente constituíam-se de papéis secundários, ás vezes quase uma figuração mais destacada. Existiram filmes onde a personagem principal exercia alguma profissão, porém, quase sempre aquelas consideradas próprias para mulheres como professora, enfermeira e assistente social. Porém eram histórias de caráter edificante onde os conflitos advinham de alguma situação particular e não de reivindicações de classe. Isto poderia ser observado no filme “Imitação da Vida” (Imitation of Life) de 1934, onde a viúva Bea Pullman (Claudette Colbert) tem Dalila Johnson (a atriz negra Louise Beavers) como empregada doméstica que compartilha sua receita de família de panqueca com Bea. Em plena depressão econômica, as duas decidem começar um negócio no calçadão de Atlantic City e juntas obtém grande sucesso e fortuna, mas e também encontram dificuldades familiares e de identidade racial. Vê-se o corolário da importância do trabalho no êxito, ao lado do panorama da depressão da década que 1930 e seus conflitos raciais. A produção concorreu aos Oscar de melhor filme. Mas não são personagens glamourosas, e sim mais próximas á realidade o que pode sugerir que Hollywood não estaria tão indiferente á possíveis mudanças nos seus modelos.
Contudo, há um filme de grande sucesso em que uma mulher trabalhadora é personagem principal: trata-se de “... E o vento levou” (... Gone With The Wind) de 1939 onde a personagem Escarlett O’Hara, interpretada por Vivien Leigh, tem que trabalhar duro para recuperar o prestígio e a fortuna da família perdidas durante a Guerra de Secessão americana (1861 – 1865). Escarlett era uma “menina má”, incorreta, que mente, trapaceia e casa-se por interesse, mas consegue reerguer sua mítica propriedade, a fazenda Tara, a custa da sua liderança na condução dos negócios, ou seja, com trabalho e, de forma subjacente, sugerindo um novo arquétipo: a mulher empreendedora numa ótica capitalista. Será?
Contudo a subversão ou incorreção das personagens “fatais” interpretados pelas atrizes de Hollywood não estaria associado ao mundo do trabalho e, possivelmente, nem mesmo ao acesso ao poder institucional porque suas ambições pertenciam ao âmbito particular e não coletivo. Seriam arquétipos da mulher arrivista que queria ascender socialmente, mesmo tendo que lançar mão das armas da sedução e da trapaça nos seus objetivos. Assim elas subverteriam somente algumas regras da sociedade patriarcal sem, no entanto, abalar suas estruturas. Aqui podemos encontrar duas vertentes: a mulher submissa a um homem poderoso que não consegue romper com esta prisão velada (isto ocorre na produção “Gilda”), e as personagens que a desejavam sua própria inserção á ordem patriarcal na condição de esposa com acesso á fortuna do marido; ou seja, não queriam o direito ao trabalho, ao contrário, desejavam desfrutar do poder de não precisar trabalhar, com seus casacos de peles, anéis de diamantes e viagens à Paris quando bem conviesse – ícones de luxo e glamour. Isso aparece de forma evidente em três célebres filmes da década de 1950: “Como Agarrar um Milionário” (How to Merry a Milionaire) de 1953; “Os Homens Preferem as Loiras” (Gentlemen Prefer Blondies) de 1954 e “Os Homens se Casam Com as Morenas” (Gentlemen Marry Brunettes) de 1955. Esses filmes foram estrelados pelas atrizes Marilyn Monroe e Jane Russel e foram produções em tom de comédia que obtiveram enorme sucesso de público porque a maldade ficcional é sempre atraente e instigante.
Ao seu turno isto se constituiria num exemplo comportamental execrável para as feministas das primeiras décadas do século XX, que veriam nessas personagens nada mais que personificações da mulher-objeto que ingenuamente pensaria estar manipulando a ordem social patriarcal ao seu favor, mas na verdade estaria sendo modelada por esta mesma ordem, permanecendo ainda submetida a ela. E ainda: enquanto as feministas tinham que divulgar seus ideais através de mídias alternativas, como panfletos mimeografados, o arquétipo da mulher-objeto preconizado por Hollywood contaria com uma poderosa mídia de alcance mundial.
Entretanto, se voltarmos às atrizes que interpretavam esses papéis, é preciso observar que embora pudessem ter personalidades fortes e até transgressoras, eram mulheres realmente trabalhadoras. A rotina dos sets de filmagem com longas esperas para se filmar não raro apenas uma ou duas cenas, as sessões de maquiagem, os repetitivos ensaios de números musicais de canto e dança, ou mesmo as negociações de contratos com os estúdios, se constituíam numa rotina de trabalho duro que permaneceria oculto por trás de uma indispensável cortina de glamour sob a pena de se quebrar o encanto. E ainda: as atrizes de Hollywood correriam os riscos de tornarem-se estereótipos das próprias personagens que interpretavam, perdendo assim suas identidades. De fato, pois a atriz Rita Hayworth, quando falava dos seus casamentos dizia em tom irônico: “os homens se casam com Gilda[1], mas acordam mesmo é ao meu lado!” E ainda, é mesmo provável que a retirada de Greta Garbo rumo ao anonimato voluntário tenha ocorrido por conta disso.
Todo esse mundo de glamour entraria em xeque ao final dos anos 1950. Ainda segundo Ariès, por volta da metade do século XX a sociabilidade pública desmorona, desaparecendo a função “socializante” e social das cidades. Ele se referia á sociedades caracterizadas como centros de produção industrial já desenvolvido, como era o caso dos Estados Unidos. Foi uma crise que poderíamos considerar estrutural, porque incidiria no cerne da sociedade com abrangência na economia, no consumo e na cultura. O cinema, considerado um produto cultural, também foi pego de surpresa por uma nova ordem que se fortalecia. Hollywood não estaria preparada para a decadência dos seus paradigmas. Sua capacidade de criar arquétipos e estereótipos, perfeitamente controláveis pelos departamentos de publicidade dos estúdios de cinema, parecia ter encontrado seus limites. Os próprios astros não estariam preparados para o próprio envelhecimento, tornando-se pálidos reflexos do que haviam sido. No caso das “mulheres fatais” que encantavam o público com suas tramas e maldades desde os anos 1930, a decadência parecia ainda mais cruel, pois acabavam parecendo caricaturas onde a sensualidade que outrora hipnotizava a plateia se diluía na afetação, chegando ao ridículo.
Marilyn Monroe protagonizou um filme que parecia materializar esta situação; tratava-se de “Os desajustados” (The Misfits) do diretor John Huston, lançado em 1961. Sua personagem integrava um grupo de pessoas errantes que pareciam querer resgatar seu espaço numa nova ordem, que sequer conheciam. A personagem Roslyn Tabler (Marilyn Monroe) era uma ex stripper recém-separada que saía da relação aparentemente “com uma mão na frente e outra atrás”, apenas com um automóvel Cadillac. Vê-se uma possível referência aos modelos arquetípicos dos anos 1950; o carrão de luxo “rabo de peixe”[2] e a loira que teria buscado segurança num casamento que não deu certo. O filme ainda contava com o personagem Gay Legrand interpretado pelo ator Clark Gable, um dos maiores representantes da era de ouro do cinema dos anos 1930, na pele um personagem tão errante e perdido como os outros. Um filme triste e pesado, mas muito elogiado pela crítica da época. Curiosamente foi o último filme de Gable, que faleceu em novembro de 1960, logo após as filmagens. Foi também o penúltimo filme de Marilyn, que faleceu em agosto de 1962.
Poderíamos ainda apontar outros fatores para o declínio de Hollywood. Após a Segunda Guerra Mundial, no limiar dos anos 1950 a indústria norte-americana iniciaria um período de expansão que exigia mais contratações de operários para as fábricas. Muitas mulheres passariam a integrar esse contingente de trabalhadores, o que, de certa forma poderia fortalecer a posição das feministas na conquista de espaços na sociedade americana através da criação de organizações de classe, incluindo aí o combate aos estereótipos femininos preconizados por Hollywood.
Haveriam também personalidades femininas despontado no cenário geopolítico mundial, onde poderíamos destacar a atuação de Golda Meir ( Kiev, 1898 – Jerusalém, 1978) na criação do estado de Israel em 1948, ocupando o Ministério do Exterior de 1956 a 1966. Famosa pela determinação e firmeza na defesa das posições israelenses no Oriente Médio, pode ter servido de inspiração para muitas mulheres nos anos 1950, principalmente nos Estados Unidos por conta da forte influência judaica na sociedade americana. Vale ainda destacar a atuação da ativista feminista e escritora Betty Friedan, (Illinois, 1921 – Washington, 2006), autora do importante livro “A Mística Feminina” (The Feminine Mystifique) de 1963, tida como figura fundamental na reformulação do papel da mulher na sociedade.
Ainda no final dos anos 1940 surge na França a filosofia do Existencialismo, cujo “papa” era o filósofo Jean Paul Sartre (Paris, 1905 – 1980) preconizando que a condição humana não dependeria da natureza, mas sim da situação histórica onde o homem seria um “ser no mundo condenado a liberdade”, procurando desvendar suas angústias, a solidão e o sentimento de revolta. O Existencialismo exerceu enorme influência nos jovens que no decorrer das décadas de 1950 e 60 constituiriam boa parte do público do cinema. Com esta formação, dificilmente se deixariam seduzir pelos estereótipos femininos hollywoodianos. Há também que se destacar a influência do movimento “beatnik” no cenário cultural americano a partir de 1948; eles subscreviam um estilo de vida antimaterialista com forte questionamento ao american way of life. Eles se denominavam a “geração perdida”, desencantada e rebelde.
Por outro lado, e um pouco por conta disso, o cinema europeu também teria maior presença nas salas de cinema americanas no decorrer da década de 1950. Atrizes como as italianas Sophia Loren e Anna Magnani, além das francesas Brigitte Bardot e Julliette Gréco (musa do Existencialismo) dentre outras, traziam para as telas americanas a sofisticação do “neo realismo” italiano e da novelle vague francesa, movimentos fortemente influenciados pelo Existencialismo. Belas e sedutoras interpretando mulheres que também poderiam ser malvadas e arrivistas, porém com um importante diferencial: eram questionadoras das estruturas que sustentavam a ordem patriarcal e da própria condição feminina nesta ordem.
Pode-se considerar ainda que a expansão da Televisão nos Estados Unidos na década de 1950 também tenha contribuído para o esvaziamento das salas de projeção. Consta que após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) os dirigentes do show business americano se deram conta que o público talvez estivesse mais interessado em ficar em casa do que enfrentar filas de cinema depois de anos enfrentando filas para comprar alimentos e combustíveis, ás vezes no mercado negro. Assim, arregimentaram pessoas ligadas ao rádio, além de atores de pouca fama, para experimentarem uma nova forma de diversão; a Televisão. Considera-se que a primeira estrela da TV americana foi o apresentador Milton Berle (Nova York, 1908 – Los Angeles, 2002) que ficaria conhecido por Mr.Television, chegando a ser responsável pela venda de mais de dez milhões de televisores pelo país. Eram programas de variedades com números musicais, entrevistas, e concursos de calouros. Noutra vertente despontavam os seriados, também herança do cinema, onde cada capítulo contava uma história com os mesmos personagens. Logo em 1951 surge um seriado de TV com enorme sucesso de público; I love Lucy, com a atriz Lucille Ball e seu marido Desi Arnaz (na vida real e na ficção). Era uma dona de casa típica americana casada com um cubano e sua vida cotidiana pontuada de problemas domésticos, tudo em tom de comédia. Outro seriado de sucesso na mesma época foi “Burns and Allen show”, com os atores George Burns e Gracie Allen, também casados na vida real, que seguia a mesma linha de comédia. Não obstante o tom leve e familiar das tramas, poderíamos supor que essas mulheres também poderiam ser consideradas questionadoras da ordem patriarcal familiar, pois eram caricaturas das donas de casa devotas ao lar. Novos arquétipos?
Assim após este breve resumo nós poderíamos concluir que este era parte do enredo onde o cinema de Hollywood teria que atuar a partir da década de 1960. Feminismo, crítica ao consumismo e aos modelos familiares americanos, sexo, drogas, problemas urbanos, relações de trabalho e demais paradigmas modernos teriam que ser abordados nos filmes.
A era das grandes Divas havia terminado!
FIM
[1] Gilda é a personagem principal do filme homônimo de 1946 dirigido por Charles Vidor estrelado por Rita Hayworth cujo slogan era “nunca houve uma mulher como Gilda”, conforme aparecia nos cartazes á época. A história girava em torno de um triângulo amoroso entre um dono de cassino, sua bela esposa e seu melhor amigo. (cf) DICIONÁRIO dos melhores filmes, Nova Cultural, São Paulo, 1998, p. 203.
[2] “Rabo de peixe” é uma designação genérica brasileira para os automóveis norte americanos produzidos entre 1955 e 1961 caracterizados pelas aletas elevadas nos pára lamas traseiros. Acabariam se tornando sinônimos de ostentação de mau gosto nos anos 1960. (N. do autor)