terça-feira, 5 de janeiro de 2021

FELIZ 2121.

 

 SEGUNDO CAPÍTULO.

 

 

A partir daquele dia Júlio entendeu que a única coisa a fazer seria esperar terminar o ano de 2121 para que o duende verde aparecesse no vicejador, e assim pudesse desejar que tudo voltasse ao que era antes, com zeros!  Mas o duende só apareceria se Júlio estivesse infeliz com a realização do seu desejo. Ele deu de ombros imaginando que isto seria muito fácil, pois aquele mundo sem zeros era extremamente confuso e desagradável para ele.

Emanuel tentava explicar estendendo uma toalha sobre a mesa: - Observe este tecido estampado de folhagens! Veja como desenho se apresenta: as flores e as ramas são harmoniosas e tu consegues entender onde está cada elemento. Este é o teu mundo! – então pegou a toalha amasso-a e tornou a estendê-la sem esticá-la: - Observe que as dobras esconderam algumas partes: - apontou: - A flor vermelha que deveria estar aqui, agora está oculta pela dobra; e aqui: - apontou outro lugar: - A flor amarela se confundiu com a rama verde. Se tu olhares todo o pano amassado, verás que o desenho que tu conheces, está aqui, só que embaralhado! Então tu não consegues mais o compreender; este é o mundo que temos á cá!

- Isto quer dizer que quando desejei um mundo sem o numero zero, e que o ano de 2020 nunca tivesse acontecido, eu embaralhei a história?

- Tu embaralhaste a história que tu conhecias! – apontou o tecido. – Porque para mim, isto aqui é a história que eu conheço! – riso: - É preciso cuidado com o que pedes ao leprechaun, porque ele entende tudo ao pé da letra!

- Leprechaun? É o nome dele?

- Sim! É um duende vindo da Irlanda que concede desejos a quem tocar no seu pote de ouro!

- Então existe um país chamado Irlanda neste mundo!

- Sim! – sorriu Emanuel: - Em verdade é uma província que faz parte do Reino da Bretanha, que é uma ilha bestial e repleta de castelos à cada sítio que se olhe!

- Bretanha?... Não existe Inglaterra?

Emanuel deu de ombros: - Neste mundo a cá, este sítio não tem este nome!  Mas é um Império muito poderoso comandado por uma rainha muito amada por seu povo!

- E ela se chama Elizabeth?

- Não! A rainha da Bretanha se chama Mary Stuart. Todas as rainhas de lá tem este nome!

Confuso: - Mas,... Mary Stuart foi uma rainha escocesa!

- Sim, exatamente! O reino da Bretanha é escocês! – riso: - Os homens lá andam de saiote plissado com estampa xadrez! – deu de ombros: - Deve ser agradável no verão, porque duvido que usem calçolas por baixo da saia!

Júlio coçou a cabeça: aquela remontagem da história era totalmente estranha. A simples ausência de números com zeros não era apenas uma denominação numérica. Emanuel explicou: - Não é que valores vazios, como o zero do teu mundo, não existam aqui; só que não o representamos! Para que escrever “um milhão” com o número “um” seguido de seis bolinhas? Ao dizermos um milhão, ou dois milhões, todos compreendem o que se escreve por extenso! – riso. – Esta coisa de bolinhas, ou zeros, enfileirados para falar em valores, só complica a vida!

Júlio considerou aquela lógica um tanto simplória, mas o fato é que funcionava. Contudo, se levado ao calendário era um fator que alterava totalmente os rumos do planeta: A China era um império comandado por um monarca chamado Pu Yi. – Mas este não foi o último imperador da China antes da revolução de Mao Tsé Tung? – perguntou Júlio.

- Mao,... O quê? Nunca ouvi falar deste gajo! – fez um muxoxo: - Mas o império da China é gigante! Produzem tudo que nós usamos: de vicejadores á sapatos. – olhou os seus: - Se bem que o pé esquerdo e o direito parecem tão iguais, que se o trocarmos, nossos dedos não notarão a diferença!

- Então a China não é comunista? – perguntou Júlio espantado.

- Comunista? Que diabos vem á ser isto?

- Comunismo é uma ideologia que apareceu com a revolução Russa, em 1917!

- Ora, pois! O teu mundo é cheio de revoluções, ó pá! Quem inventou isto de comunismo?

- Não foi inventado! Surgiu a partir das ideias de um filósofo chamado Karl Marx!

- Ah sim! – levantou as mãos. – Este gajo está a produzir textos que estão a escandalizar a Alemanha! – riso: - Fala do trabalho e uma coisa chamada “mais valia”! Os jovens o adoram!

- Espere aí Emanuel; como assim “ele está a produzir”?... Ele viveu no século XIX, e está morto!

- Bem,... Ele está velhinho e até se assemelha ao Papai Natal com sua barba branca; mas está vivo! Hum,... Até que ele fala numas coisas assim,... De tudo passar a pertencer a todos; muita gente não gosta dele. O Czar da Rússia Stalin III o odeia!

- O quê?... Czar? A Rússia é um Império?

- E dos mais absolutistas! – chegou perto de Júlio: - O bisavô dele, Stalin I, conseguiu se achegar ao velho Czar Nicolau e conquistou o amor da princesa Anastácia. Casaram-se! Depois o Czar Nicolau faleceu em virtude de uma moléstia fatal; dizem que foi envenenado! – deu de ombros: - Então começou a dinastia dos Stalin.

- Mas,... Porque Stalin III não gosta de Marx?... Ele não é seguidor da ideologia marxista?

Emanuel olhou-o de lado: - Este teu mundo é realmente muito esquisito, ó Júlio! Como ele pode gostar de Marx, se os seus seguidores planejam uma insurreição para tirá-lo do poder? Querem criar uma coisa que se chama soviet, ou coisa que o valha! – piscou o olho: - Stalin III o odeia tanto, que enviou dois assassinos disfarçados de amigos, um homem e uma mulher que tentaram matá-lo á marteladas! – riso: - Só que o velho Marx os nocauteou com golpes de boxe e os pôs fora de combate!

- O quê? Karl Marx é pugilista?

- Sim, e chegou a ganhar medalha de ouro nas olimpíadas de 1948, na Alemanha! – sorriu jocoso: - Tudo blefe para disfarçar tua real intenção: conquistar a simpatia do ditador alemão Goebels para depois o trair. E conseguiu! – Júlio olhava-o espantado enquanto prosseguia: - Puta que pariu; este Goebels foi um genocida que matou milhões de pessoas: ciganos, fronhas, pretos e especialmente judeus, que os perseguia com uma fúria de demônio!... Coisa terrível esta ditadura que levou a uma guerra mundial de vinte anos! Até a cá, à Portugal, sua tirania alcançou!

- E o que aconteceu depois? – perguntou Júlio cada vez mais incrédulo.

- Vários países se envolveram numa guerra para destituí-lo. – abanou a cabeça: - Muitos morreram, mas conseguiram derrotá-lo. Depois de vários dias de ataque, ele cometeu suicídio no prédio da chancelaria em Berlin! O curioso, é que Stalin II se uniu a Marx e Bieber para derrotá-lo, e hoje são inimigos mortais! Ah, como a história dá voltas! Depois disto, os judeus que sobreviveram criaram um país para eles!

- Sim. É Israel!

- Exatamente! E fica ao leste do continente da America do Norte!

- Hânnnn? Como pode ser isto? O que existe lá são os Estados Unidos da América!

Emanuel riu: - O que estás a dizer, ó pá?  Isto parece nome de arrecadação de secos e molhados! – terminou de rir e explicou: - Á leste está Israel, e á Oeste a Colômbia do Norte! Eles não achavam certo que o continente descoberto por Cristóvão Colombo fosse chamado de América em referência á um navegante italiano sem eira nem beira, e assim batizaram a parte de cima do continente de Colômbia do Norte, e a parte de baixo de Colômbia do Sul, que faz fronteira ao leste com Zuid-Holland! – novo riso: - Bretães e holandeses puseram os espanhóis para correr do continente e ficaram com tudo. Mas são sítios muito atrasados!

Júlio abanava a cabeça ao pensar tanta coisa. Até se deter num nome: - Bieber?... Quem é?

- Ah sim: Justin Bieber é o premiê da Alemanha! Ah, é um gajo com uma inteligência bestial; um intelectual! Foi músico quando jovem, e acho que tenho um antigo roda-músicas dele por aqui! – olhou sua estante enquanto Júlio se levantou e seguiu a diante de um espelho: aquele rosto mais jovem, com menos de quarenta anos, não era o dele, e tampouco aquela história mundial completamente absurda.

- Ah, encontrei uma revista com a foto de Karl Marx quando ainda era pugilista; veja que gajo mais parrudo ele era!

Emanuel mostrou a revista á Júlio, que não sabia que reação ter diante daquela figura, mas comentou baixinho: - Ah meu deus,... Parece um papai Noel ruivo com o corpo do Arnold Shwarzenegger!

- Como disse?... Esnega, o quê?

- Nada não Emanuel. Só mais uma pergunta. Você sabe quem foi Hitler?

- Hum, penso eu que foi um pintor austríaco já falecido á muitos anos. Os quadros dele até que valem alguma coisa! Por quê?

- Porque eu que não quero ficar neste teu mundo onde nada entendo,... E não estou a querer entender!

Emanuel assentiu: - É bom mesmo que tu não gostes de nada que tiver á cá, senão o leprechaun não aparecerá para ti.

- Só mais uma coisa: você pediu ao duende que lhe enviasse á um paraíso tropical, e ele te enviou ao Brasil, que parece ser o do meu mundo. Ora,... Então meu mundo existe em outra dimensão!

- Sim, é verdade! Teu mundo corre paralelo á este. Interessante, eu não tinha pensado nisso.

- No meu mundo houve um cientista chamado Einstein que falou disto na teoria da relatividade. O tempo corre paralelo em todas as épocas e dimensões, e se encontrássemos uma maneira de cruzar a dobra do tempo, conseguiríamos passar de uma dimensão temporal á outra.

- É muito inteligente este gajo chamado Einstein! – Falou e recolheu a toalha, e enquanto a dobrava para guardar, falou: - Mas eu preciso dizer-te que poderás ficar a minha casa como hóspede, caso contrário acabarás se tornando um mendigo nas ruas de Lisboa. Só que tu terás que trabalhar porque não há como eu te sustentar! – guardou a toalha: - tenho bancas de vender periódicos e revistas; você poderá trabalhar na banca que fica á estação de comboios do Cais do Sodré. Amanhã cedo te levarei lá para conhecer o trajeto. Terás que levantar cedo!

- Não há problema!... Obrigado por tudo senhor Emanuel.

- Não há de quê! – fechou a gaveta onde guardou cuidadosamente a toalha. – Minha esposa adorava esta toalha!

- Vocês tiveram filhos?

Deu de ombros: - Não! – riu. – Mas não foi por falta de tentativas! – e saiu.

Júlio olhou aquele quarto tão simples que ocuparia por um ano. E suspirou.

 

Ainda estava escuro quando chegaram á Estação de Cais do Sodré no Centro de Lisboa. Primeira lição: trens são chamados comboios, e jornais são periódicos. O dinheiro ainda era denominado Escudo, mas sem nenhum valor com zeros havendo muitas moedinhas á contar.

Júlio prestava atenção, mas não era difícil porque no seu mundo, havia trabalhado como vendedor. Emanuel explicou os horários e despediu-se rumo á Estação do Rossio onde possuía outra banca.

Certas coisas são iguais em qualquer mundo, portanto a regra de atender bem a clientela, por mais extravagante que lhe parecesse suas roupas, era regra. Uma mulher trajada como se estivesse na França do século XVIII foi sua primeira freguesa; depois um homem que parecia ter vindo direto de uma discoteca da década de 1970. A moda era se vestir da maneira que lhe convinha; veio até um bretão com um saiote plissado mais rodado que um guarda-chuva aberto! As notícias dos periódicos falavam de lugares e pessoas totalmente desconhecidos, mas Júlio achava prudente não se envolver em nada daquela realidade para não perder o foco do que desejava: voltar ao seu mundo!  

 

Certa tarde ele estava a beira do cais antes de voltar a casa de Emanuel; era um lugar bonito.

Então apareceu um homem irritado: - Ah,... Então é aqui que tu estás; seu sacripanta!

Julio olhou-o: - Hei, auto lá! Quem é o senhor?

- Tu estás á fazer galhofa de fingir que não me reconheces novamente? Meto-lhe a mão aqui mesmo! – tentou agredi-lo com uma bofetada, mas Júlio se esquivou: era o homem que o encontrou no seu apartamento. – Está bem, lembrei-me!... Mas se tentar me bater eu revido!

O homem se afastou: - Continuas o mesmo irresponsável que arrastou meu nome na lama com bebedeiras e uso de entorpecentes, e continuas a fazer! A Dona Maria do Rossio já falou tudo ao povo do Belém. Que vergonha eu estou a passar! Ah, que sorte teve tua mãe que partiu antes de ver o traste que tu viraste!

- Olhe aqui senhor,... Acredite ou não, eu não sei do que falas!... Aconteceu uma coisa extraordinária e sobrenatural que me trouxe aqui; deixe-me explicar,...

- Cale tua boca Júlio! – abanou a cabeça: - Tudo que me dizeres serão alucinações de um gajo que chegou a roubar coisas de casa para vender e comprar essas porcarias, mas isto se acabou! – apontou o dedo: - Tu já és um gajo de quase quarenta e um anos, e já está a passar da hora de viver tua vida do jeito que quiseres! – olhou-o: - De hoje em diante tu não tens mais pai e nem família, e se tu tentares chegar perto do sítio onde nós vivemos, dou-lhe uma surra! – e se virou pisando duro até sumir no meio do povo.

Júlio nem sabia o que pensar. Aquele homem era seu pai naquele mundo, que não lhe pertencia. Então, não havia porque sentir raiva, mágoa ou mesmo arrependimento! Mas não teve como sair do cais sem ser acossado por estes sentimentos.

 

A noite ele relatou o episódio a Emanuel, que abanou a cabeça ao dizer: – Deves agradecer a Pedro Alvarez Cabral por ter conseguido chegar ao Brasil num outro,... Eu nem sei como chamar... Sítio? Mas pense numa coisa: se teus antepassados não tivessem rumado ao novo mundo, tu serias filho deste homem que tentou lhe bater! Já imaginou a enrascada que tu estarias metido?

- Tu pensas que seria assim? – olhou-o: - Este homem então teria um filho que também não o agradaria! Estou cada vez mais assustado com tudo isto.

Emanuel riu: - Teu amigo cientista explicou direitinho. É para lamentar não possuirmos um Einstein neste meu mundo!

Júlio falou: - Eu era o quinto de nove filhos; e os filhos do meio costumam ser meio apagados. Eu não tinha o brilho do mais velho, e nem a graça do mais novo. Mas eu amava meu pai!

- Isto é bom. Tu falaste que também tem filhos!

- Sim. Eu tenho três filhos. – abanou de leve a cabeça: - Não vivo mais com minha esposa, e agora estou com medo de não conseguir voltar ao meu mundo e nunca mais vê-los. Nem sei se eu existirei para eles; ou se serão filhos de outro homem! Não,... Eu não quero isto!

- Então, Júlio: pegue-se a isto para não perderes de vista o que precisas fazer! Foi bom falarmos nisto. – andou e se colocou diante a ele: - Tu não podes de forma alguma se apegar s nada deste mundo, entendeste? Nada! Nem á mim. Tu não podes ter-me como amigo.

Júlio olhava-o: - O que queres dizer com isto Emanuel?

- Que não é bom que continues a viver na minha casa!

Ele se levantou aflito: - Vais me pôr na rua? Por que...?

Contando-o: - Deixe-me terminar! Se tu ficares a minha casa, poderemos estabelecer laços de amizade que não serão bons para tu! Então eu lhe arranjei uma morada no bairro do Chelas; um quarto no apartamento de uma mulher que aluga seus quartos. – olhou-o: - Hoje tu ainda dormes aqui; mas amanhã te levarei lá. Não é longe, mas precisará de condução para chegar ao cais.

- Tu pensas mesmo que isto é necessário?

- Preste atenção: Eu passei um ano no inferno enfiado á um sanatório para loucos no Brasil, e isto me deu forças para desejar retornar a este mundo á cá com todas as forças que consegui. Tu vais precisar acreditar que isto que vives á cá seja um pedacinho do purgatório! Entendeste?

Júlio assentiu: - Sim, tu estás certo, eu entendi. Este bairro, Chelas, é muito ruim?

- Tu verás! – sorriu jocoso: - Tua senhoria, a senhora Mafalda tem um costume bastante comum por á cá, mas, ao que me lembre, não muito comum no Brasil. Agora trate de se deitar, que o dia de amanhã será puxado!

 

 

Continua...

4 comentários:

  1. Adoro o seu jeito criativo de escrever, Ramón! Isso nos prende à história. Vou para o final rsrsrs. Curiosa com o desfecho, se ele conseguiu voltar ou não.

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