Um conto de Cris Perantoni. Ilustração Ramón Brandão.
Tia Filó, uma senhora nos seus 80 e poucos anos, nunca se casou. Não tinha a beleza de suas irmãs, mas era independente, “pra frente” desde mocinha e não quis se prender a nenhum relacionamento. Imagina naquela época, numa cidade pequena. Era comentário na certa quando uma mulher queria fazer algo diferente do tradicional. Normalmente, as meninas já cresciam tendo que saber cozinhar, lavar, passar e casar cedo, para servir ao marido e à família. Mas Tia Filó não. Aos 20 e poucos anos, foi para São Paulo, morar em casa de parentes e tentar uma vida nova. Como sabia costurar, conseguiu um emprego como costureira numa confecção em ascensão. Tinha uma vida simples, mas, mesmo assim, enviava um dinheirinho todo mês para seus familiares no interior, pois passavam aperto. Quatorze irmãos, não era fácil.
Depois de um bom tempo no trabalho, alugou um quartinho numa vila próxima, saindo da casa dos seus tios. Fez amizades, tinha lá seus amantes, nada muito sério. Havia um pretendente querendo se casar. Era louco por ela. Mas nem assim, dobrou a Tia Filó. Ela preferia a liberdade. Nas férias, ia para a sua cidade natal. Seus irmãos e irmãs foram se casando e tendo filhos. Tia Filó era muito materialista, muito ligada a dinheiro, talvez devido às dificuldades que já tinha passado. Lembro-me muito bem dela perguntando às suas sobrinhas: “Já arrumou namorado? Ele tem dinheiro?”, fazendo gestos com os dedos, como se contasse notas. Era irritante.
Na medida em que envelhecia, ficava cada vez mais ranzinza e obcecada pelas coisas materiais. Quando seus pais faleceram, comprou briga com seus irmãos, fazendo questão até de utensílios pequenos da residência onde crescera. Àquela altura, já tinha construído uma boa casa num bairro mais afastado de São Paulo. De vez em quando, recebia visitas de parentes e se sentia realizada, mostrando a conquista para todos que iam lá. Além disso, não deixava de guardar alguma quantia na poupança. Poderia ter aproveitado mais para viajar, conhecer outras cidades, mas não se permitia tal coisa. Tinha que guardar, não sei para quê. Será que achava que ia levar para o túmulo?!
Enfim, os anos se passaram. Já não era mais a mesma, pois a idade nos força a reduzir o ritmo. Mesmo aposentada, continuou a costurar em casa e complementava a renda, é lógico.
Tinha uma sobrinha do interior, a Gislaine, interesseira como ela só, que começou a visitá-la com mais frequência, alegando querer arrumar um trabalho em São Paulo, assim como ela fez. Começou a conquistar a confiança de Tia Filó, fazendo-se de “boazinha”. Ajudava nos serviços da casa, ia ao supermercado para ela. Um dia, ofereceu-se para acompanhá-la ao banco. Claro, Gislaine já estava tramando algo. Com jeitinho, perguntava sobre como a casa tinha sido construída, se a documentação estava em dia, elogiava as suas conquistas, etc. Tia Filó caiu na conversa de Gislaine. Achava-se tão esperta e nem percebeu as artimanhas da sobrinha. Até iam à igreja juntas, tomavam o café da tarde na varanda, dando boas risadas. Gislaine ouvia atenciosamente os casos e as aventuras da tia que, a cada dia, confiava mais nela.
- Gislaine, e o namorado?
- Ah, tia. Não ligo para essas coisas. Sou como a senhora. Quero achar um bom emprego e cuidar da minha vida e do meu futuro.
- Mas se arrumar alguém, não se esqueça. Tem que ter uma boa condição financeira.
E riam mais uma vez.
Numa ocasião, Tia Filó não estava se sentindo muito bem. Era dia de pagamento e Gislaine ofereceu para receber por ela. Dizia: “Pode confiar, tia. Vou lá e volto correndo”. Tia Filó passou o cartão do banco e a senha, mal sabia ela onde estava se metendo. E foi assim nos próximos meses. Gislaine não tinha conseguido o tal emprego e nem tinha saído da casa da tia, que já tinha se acostumado com a sua companhia.
Num determinado mês, Gislaine foi receber o pagamento e voltou com um papel, alegando que o banco precisava da assinatura dela para fazer “prova de vida”. Uma mentira, pois sabemos que isso é feito na agência onde se tem a conta. Tia Filó, que já não enxergava direito mais e já confiava cegamente em Gislaine, assinou o tal papel. Que ironia do destino! Era tão ligada a seus bens, criticava seus parentes por não guardarem dinheiro e não terem nada na vida estaria sendo passada para trás pela própria sobrinha. Na verdade, o papel era uma procuração dando totais direitos à Gislaine para administrar os seus pertences.
Mas Gislaine não estava sozinha nessa história. Tinha um namorado, que era advogado, de porta de cadeia, como dizem. Os dois estavam tramando tirar tudo da tia. Ele a ajudou a passar a escritura da casa para o seu nome. Além disso, limparam a poupança.
Um dia, Gislaine deu uma desculpa, dizendo que precisava resolver uma situação na sua cidade. E Tia Filó nem desconfiava de nada. Ainda disse: “Tá bem. Volta logo pra me fazer companhia”. A sobrinha levou todas as suas coisas e nunca mais voltou, nem para uma visita. Quanta crueldade!
Gislaine e o namorado acertaram os detalhes para tomarem posse da casa. Comemoram o golpe, sem dó nem piedade. Rindo, ela comentou: “Aquela chata merece. Nunca me deu nada.”
Tia Filó sempre se sentava na varanda, lembrando-se de Gislaine e de como estava demorando-se para voltar. Uns quarenta dias depois, a campainha tocou. Era um oficial de justiça a lhe entregar um mandado de reintegração de posse. Ela ficou perplexa, principalmente quando ficou sabendo a autora da ação. Tinha trinta dias para sair da casa que construíra com tanto sacrifício. Não conseguia entender direito como tal situação aconteceu. Ficou muito decepcionada e arrasada com tamanho golpe, pensando em como foi tola e como confiou em Gislaine. Por já ser muito idosa, os seus problemas de saúde só se agravaram com a punhalada que levou da sobrinha. Não esperava. Entrou em depressão e teve que contar com a ajuda de uma irmã que ainda era viva e mais nova. Mudou-se para a casa dela. Viu-se novamente na cidade onde tinha nascido e sem nada, dependendo da ajuda dos outros. Só lhe restava a pequena aposentadoria que recebia. Triste fim.
Fica a lição, que só vem reforçar para todos nós que não devemos nos apegar demais aos bens materiais. Há outros valores mais importantes nesta vida, como o amor, a família, os amigos, com quem devemos contar. Devemos sempre fazer o bem, praticar a caridade e a solidariedade, pois, um dia, somos cobrados pelas nossas atitudes.
FIM?
NÃO! ESTA HISTÓRIA AINDA NÃO ACABOU!
CONTINUA...
Não havia lido essa parte da história. Agora que li, amei o que a Tia Filó fez com a sobrinha.
ResponderExcluirVingança tarda, mas não falha!