Era um veículo marca Volkswagen Kombi Standard 1984, cor branca, que fazia parte de um lote comprado pelo Estado para servir de ambulância. Foi equipada com sirene, maca e demais itens. Nada mais comum.
Á princípio a Kombi foi enviada á Secretaria de Saúde da cidade mineira de Barbacena, atendendo á região do Campo das Vertentes e também á hospitais particulares, e logo ganhou fama de carro confiável que não quebrava nunca! Á qualquer urgência, a Kombi era imediatamente colocada á postos, buscando pacientes nas localidades mais remotas, sem temer atoleiros, tempestades ou estradas esburacadas de terra, além de atender feridos em acidentes rodoviários.
Depois de quase vinte anos de uso no vai e vem da poeira dos caminhos, a velha Kombi, que continuava valente, foi enviada para a localidade de Santa Rosa de Minas, pois a prefeitura do lugarejo solicitou que uma ambulância ficasse á disposição permanentemente. Como não havia licitação para compra de veículos novos á vista, enviaram a velha ‘1984 porque ainda estaria em boas condições de uso. Assim, a prefeitura providenciou uma reforma para adequá-la. Não seria mais apenas ambulância, mas uma espécie de “carro faz de tudo”. - Quem conhece a rotina das cidades pequenas bem sabe da sua utilidade!
Foram mais dez anos de uso, inclusive levando e buscando pacientes na capital, além de transportar equipamentos e materiais diversos, retirando-se seus bancos traseiros.
Porém o tempo, este condutor cruel da vida, foi deixando suas marcas no vetusto veículo, que passou a apresentar defeitos comuns aos velhos carros: alto consumo de combustível, trocas de óleo mais frequentes; ferrugem e pequenos enguiços que iam se tornando á miúde.
Um dia, finalmente a prefeitura recebeu um van zero quilômetro que atenderia a demanda da localidade. – sempre uma luta para consegui-los!
A velha Kombi ainda serviu de veículo de transporte escolar no município de Santa Rosa por um tempo até fundir seu motor. Verificou-se que uma nova reforma num veículo com mais de trinta nos de uso não valeria a pena, e o melhor a fazer seria vendê-la. Contudo, por se tratar de veículo de propriedade do Estado, só poderia ser vendida num leilão público. Alguns moradores de Santa Rosa até se animaram em tentar arrematá-la, mas o laudo de um perito deu a sentença capital: seria leiloada como sucata!
Assim a velha guerreira foi levada a um terreno ao lado do campo de futebol até que a levassem ao depósito em Barbacena onde seria leiloada.
Ao lado do campo havia uma pequena habitação para o vigia, chamado Vaninho, que acordou cedo e foi fazer sua ronda matinal. Quando olhou a velha Kombi ainda envolta num resto de cerração, viu que suas portas laterais estavam totalmente abertas. – Ah, sô! – exclamou e foi se aproximando. Mas antes apanhou um pedaço de pau, pois poderia ter alguém no seu interior. Ressabiado ele meteu a cabeça na cabine que estava vazia. Vaninho ainda buscou por vestígios de algum sexo proibido; mas estava tudo limpo! Então tornou a fechar as portas, esquecendo-se do caso.
Na manhã seguinte, novamente a Kombi amanheceu com suas portas laterais escancaradas. Vaninho chegou perto, observou seu interior, e tornou a fechar as portas, certificando-se que ficariam trancadas.
Não adiantou, pois o amanhecer do dia seguinte encontrou-a com as portas abertas. Ele coçou a cabeça por baixo do boné; trancou as portas e tentou abri-las á força, sem conseguir. Imaginou que alguém pudesse tê-las arrombado, mas não havia vestígios. Então comunicou o fato á Totonho, uma espécie de encarregado de tudo na prefeitura, que foi verificar. Como era um homem forte ele tentou abrir as portas á força, e conseguiu. – Tá vendo Vaninho? Tá é tudo bambo de velho!
- É, mas ocê fez uma barulhada medonha para abrir; e eu num escutei nada de noite!
Totonho deu de ombros: - Ocê é que já devia tá virado de lado na cama, no décimo sono! – e saiu, deixando-o sem resposta.
Na noite seguinte Vaninho decidiu vigiar a Kombi para ver o que estaria acontecendo; assim colocou uma cadeira, dessas de praia, na frente da sua habitação, se enrolou numa manta por causa do frio, e aguardou. Mas o calor da manta no sereno da madrugada tornou a cadeira muito aconchegante, e ele acabou adormecendo.
De súbito, um ruído e a impressão que alguém passou correndo, o despertou. Imediatamente lançou seu olhar no vulto branco que a Kombi fazia sob a lua e suas duas portas laterais estavam abertas. Ele levantou da cadeira com um porrete na mão e falou; - Qual o fio da puta tá fazendo isso? Aparece! – foi chegando perto, e estava tudo quieto e a Kombi vazia. Olhou em volta e notou que a porta do vestiário do campo estava aberta. – Outra?... Ô budega! – resmungou enquanto seguia ao vestiário com porrete em punho. Havia alguém lá dentro; Vaninho buscou a lanterna e iluminou.
- Ái! Tira essa luz dos meus óio, ô estrupício!
- Dudu? – perguntou Vaninho. – É ocê?
- Sou eu mesmo!... – espichou o pescoço: - Cê viu, cê viu?
- Vi o quê?
- As porta da Kombi abrindo sozinha, sem ninguém abrir!
- O que ocê tá falando Dudu?
- As porta da Kombi!... Abriro sozinha, eu vi!... Isso é coisa do cão!
Era de manhã cedinho quando Dudu explicava o acontecido á Totonho, Vaninho e Zé Carlos, o tenente da policia locado em Santa Rosa.
- Eu tava indo pra casa, e me deu vontade de mijar; aí eu fui na moitinha perto da Kombi. Quando eu tava lá, eu vi uma porta da Kombi abrir!... Fiquei meio de lado, espiando, aí a outra porta abriu também, e num saiu ninguém de dentro, e nem tinha ninguém perto! Aí doutor, me correu um arrupio no lombo, e eu meti o pé! Fui esconder na casinha do campo!
- Escondeu por quê? – perguntou Zé: - Alguém te ameaçou ou te perseguiu?
- Não doutor!... Num tinha ninguém lá não!
- Então ocê correu por quê? – perguntou Totonho.
Dudu arregalou os olhos e respondeu: - Por que num era coisa desse mundo não! Aquela Kombi carregou muita gente pro hospital e muitos num chegaro lá vivo não! Ó, quer ver? – ele contava nos dedos: - A Dona Emilinha e a mãe dela, a Dona Emilia; o ‘’seu” Ibrahim, que bateu as botas na portinha do hospital, mas ainda dentro da Kombi; aquele garoto que o cavalo jogou no chão; o filho,...
Totonho o interrompeu: - Peraí Dudu; ocê tá falando do quê?
- Que essa gente toda que morreu na Kombi; os espírito deles ainda tão lá, achando que tavam vivo indo pro hospital! Mas agora que o carro tá parado, e não vai andar mais, eles tão vendo que tão morto, e tão saindo um de cada vez!
Os três se entreolharam e Totonho riu: - Ah Dudu! Quantas cachaças que ocê já tinha tomado?
- Eu num tava bêbado!... Quer dizer,... Só um tiquinho! Mas eu vi o que aconteceu. E quer saber de outra? – apontou seu relógio de pulso: - Tava no cu da madrugada: três horas!
- E daí? – perguntou Zé.
- É porque três horas da madrugada é a hora do cão! É quando o capeta acorda os espíritos pra eles saberem que morreram! Por causa disso é que eles tão saindo da Kombi, a onde achavam que tavam vivos! Mas agora que tão sabendo que tão morto, vão saindo um de cada vez, devagarzinho, sem fazer barulho pro capeta não perceber!...
Totonho riu: - Que papo de “cerca Lourenço”!
- Né não! – retrucou: - É porque num foi ocê que viu!
Aproximou: - E ocê viu os espírito, por acaso?
- Tá doido? Eu lá quero ver isto? – olhou os três. – Ocês num tão acreditado né? Tô vendo!
- Não é isto Dudu! – ponderou Zé: - É que ás vezes no escuro da noite poderia ter alguém escondido dentro da Kombi; você se assustou e correu antes de ver!
- Hum!... Não tinha ninguém lá não! – deu de ombros: - Eu sabia que ocês num iam acreditar; devia ter ficado quieto! Eu posso ir embora?
- Sim; pode Dudu!
Ele levantou e saiu pela porta da delegacia. Mas antes parou e falou: - E pela quantidade de gente que passou desta pra melhor lá dentro, deve ter ainda uma multidão de alma penada esperando a vez de sair!
- Só mais uma coisa Dudu: Não conte isto para ninguém! Ok?
Deu de ombros de novo: - Nem precisava falar doutor: dessas coisa de alma penada, eu quero é distância! – e saiu.
Totonho riu e falou: - Esse Dudu é uma figura; devia tá é mamado na cachaçada!
- Mas ele estava muito assustado! – retrucou Vaninho.
Zé colocou sua mão no queixo ao dizer: - Realmente, eu não acredito em histórias de fantasmas, e sim em casos de gente viva que pode estar escondendo droga dentro da Kombi para alguém buscar. Sabemos bem que o que não falta em Santa Rosa é maconheiro! – pensou um pouco: - Ficaria muito fácil alguém passar perto do veículo quando Vaninho não está lá, atirar algo pela janela da porta dianteira, que está quebrada, para alguém pegar de noite uma vez que as portas laterais do veículo são fáceis de abrir até enfiando canivete na fechadura, sem fazer barulho.
- O que o doutor está pensando em fazer?
- Vamos ficar escondidos atrás do bambuzal de tocaia esta noite, Totonho! Nem vamos mexer na Kombi para acharem que está tudo bem!
Os dois concordaram.
Era uma noite enluarada, e o trio aguardava alguma movimentação suspeita perto da velha Kombi branca. Zé trouxe uma lanterna potente e sua arma para dar o flagrante. O bambuzal era próximo para permitir uma abordagem rápida, e distante o bastante para escondê-los.
As horas se arrastavam lentamente e o silêncio era quebrado apenas por algum automóvel ou motocicleta que passava na estrada sem parar, seguindo seus rumos.
- E se o Dudu contou pra alguém? – questionou Totonho: - Aquele lá tem uma língua de trapo dos diabos!
- Ele não faria isto! – respondeu Vaninho: - Ele borra de medo de assombração.
E prosseguiram na vigília. O tenente olhou seu relógio: - Três horas da manhã. Talvez Totonho tenha razão; se Dudu falou disso pra alguém, certamente atrapalhou a nossa tocaia. – abanou a cabeça: - Que merda.
Então Vaninho apontou: - Espia! – os dois olharam; a porta direita da Kombi começava a abrir.
Zé ordenou: - Jogue a luz da lanterna pra lá, enquanto eu e Totonho fazemos a abordagem!
O potente foco da lanterna iluminou a Kombi branca que praticamente brilhou no escuro.
- Quem tá aí! – gritou Zé com a arma apontada para o carro: - Mão na cabeça ô vagabundo! – Totonho também apontava uma pistola, e disse: - Não tem ninguém, doutor!
Então, sob a luz da lanterna, a porta esquerda começou a se mover sozinha, até ficarem ambas totalmente abertas.
O tenente sentiu um arrepio pelo corpo, e gritou. – Vamos embora, vamos embora daqui! – e saíram correndo. Vaninho os acompanhou numa desabalada correria pela estrada.
Não se falou nada sobre isto!
Dois dias depois o guincho levou a Kombi branca ao local onde se realizaria o leilão. Foi arrematada e levada a um ferro velho, onde foi totalmente desmanchada. Depois suas partes seguiram ao forno da siderúrgica para reaproveitamento do ferro e do aço.
Meses depois:
- Sandy!
- O que foi dona Helena?
- Você esqueceu a porta da geladeira aberta? Não pode!
- Mas eu fechei Dona Helena!
- Olha só Sandy; geladeira é nova, fecha só com um toquinho. Mas tem pôr uma forcinha! – empurrou a porta, fechando-a. – Viu?
- Sim senhora. Eu posso ir embora?
- Ah sim, pode, Até amanhã querida!
Então Helena se virou, e a porta da geladeira estava aberta novamente.
...
FIM
Muito bom! Adorei! Parabéns!
ResponderExcluirQue medo dessa kombi! 👏👏👏
ResponderExcluirKombi assustadora... e ainda deixando vestígios por aí...
ResponderExcluirDepois de muitos anos de uso, os vestígios ficam! E são assustadores!
ResponderExcluirAdorei o final!!!
ResponderExcluirDeu medo aqui rsrsrs
Nunca mais ando de kombi rsrs
ResponderExcluirO engraçado é que depois da publicação do conto, ofereceram-me uma kombi.... branca!
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