“Estava este redator a sair se Brasília com destino ao Rio, quando parou em um posto de abastecimentos um veiculo que vinha de Curitiba. Trazia uma família em mudança: sete adultos, um cachorro, uma gaiola de passarinhos, três crianças e sete malas. O carro era uma verdadeira festa. Tinha sido uma viagem sem problemas, sem nada quebrado e com pouco consumo de combustível. Era uma Kombi.
De outra feita, tomamos carona no carro de um amigo que ia para Copacabana. Era ele na direção, o redator da MP (Revista Mecânica Popular) e mais dez outros caronas adultos. Era uma Kombi.
O mecânico de nossa televisão parou a nossa porta com um furgão colorido muito atraente, com nome da firma pintado em letras enormes de um lado e do outro, e até no teto. Era um grande anúncio ambulante no furgão, no qual já iam três televisões e duas eletrolas. Era uma Kombi.”. (1)
Em 1973, Dionísio era um jovem empresário construindo o sonho da sua fabriqueta de bolsas, até que precisou adquirir um veículo adequado ao trabalho. Tinha decidido optar por um carro novo, pois já andava pelejando com uma camionete do tempo do onça apelidada de maestro, por que a cada quilômetro, dava um “conserto”.
Então ele seguiu aos estabelecimentos Ciampi, em Juiz de Fora, em busca da qualidade da afamada Kombi, e viu numa Standard num tom amarelo claro, o veículo ideal. Suas pernas até tremiam de emoção ao volante da possante quando seguia á um pintor que escreveria o nome da sua firma nas laterais: Tebas Bolsas Ltda., como que imprimindo ao veículo, a distinção da orgulhosa assinatura!
A possante foi acolhida pela família Tebas com o cuidado dispensado ás joias! Foi o único carro da família por um tempo, dividido entre o lazer e ás coisas domésticas, ao trabalho de entrega de mercadorias da fabriqueta. Foi nela que Dionísio levou sua esposa á maternidade para trazer ao mundo mais alguns rebentos; e sempre a levou de volta á casa com os bebês a ninar. Foi também na possante que o filho mais velho aprendeu a guiar.
Passaram-se doze anos; a garagem ganhou companhia de outros carros, mas a empresa com aquela Kombi um tanto velhusca pegava mal. Mesmo que os caminhos ainda fossem um pouco estreitos, era preciso demonstrar que os negócios iam bem! Então, como diz o antigo ditado “não basta á mulher de César ser honesta; ela tem que parecer honesta”, mesmo a contragosto. Dionísio seguiu novamente á concessionária, e deu a Possante como entrada numa nova Kombi Clipper zero quilômetro. O que fazer se no jogo das aparências, não pode haver espaço á apegos sem proveitos?
A Clipper foi tão eficiente como a antecessora, mas não teve vida muito longa com a família Tebas. Um dia; um favor familiar sem ter como negar colocou sua direção nas mãos de um cunhado – sempre eles! – que acabou num acidente, destruindo-a. Citando a famosa lei de Murphy, “onde se há como dar errado, vai dar”; o veículo estava na condução de terceiros no momento do sinistro, isentando a seguradora de pagar o prêmio da apólice. Isto estava bem claro na cláusula nove! Em resumo: quem a dirigia não era quem devia. E lá se foi a Clipper ao ferro velho!
Para complicar, Dionísio havia adquirido maquinário para a produção da firma, não sendo possível á aquisição de um utilitário novo naquele momento. Então ele recorreu ao setor de usados da concessionária, e qual não foi sua surpresa a encontrar sua velha possante á venda! Trazia uma faixa lateral cor de laranja escrito “escolar” indicando sua atividade nos três anos que estivera em outras mãos. Depois de rápida verificação na sua mecânica, que se mostrou impecável, Dionísio fechou o negócio. Foi apenas o tempo de uma pequena pintura na cor original, seu novo batismo: Tebas Bolsas Ltda., para possante voltar á ativa.
Algum tempo depois, os negócios ganharam fôlego com mais pedidos e aumento da produção. Apesar de aguentar bem o trabalho duro, a velha possante não dava conta de tantas entregas. Precisavam de um veículo maior! Dionísio então adquiriu um caminhão Mercedes-Benz 608, o famoso “Mercedinho”. Porém, por se tratar de uma aquisição de grande monta, tiveram que se desfazer da possante para fechar o valor da entrada. – Firma pequena, é preciso fazer sacrifícios! – consolava-se Dionísio.
Mais alguns anos, com negócios indo de vento em popa. Um cliente estava devendo á firma, e não possuía condições da pagar a dívida, então ofereceu a Dionísio algumas máquinas e um veículo que usava como carro de passeio: uma Kombi! Quando foi vê-la, quase não acreditou: era a velha possante com pintura bicolor. Amarela com sua capota branca. Mesmo tendo valor defasado em relação a divida, Dionísio aceitou como parte do pagamento, e mais uma vez a possante vinha morar na garagem da família Tebas!
E lado a lado o Mercedinho e a possante, como dois colegas a dividirem tarefas e a garagem. Dionísio olhava-os pensando: - Parecem dois namorados!
Mas a virada do século XXI não foi alvissareira á família Tebas. A concorrência tornara-se acirrada com produtos vindos da China, que se não ostentavam as mesmas qualidades, ganhavam no preço final do produto; coisa que uma firma familiar como a Tebas Bolsas não tinha como competir. Dionísio resistiu o quanto pôde. Viu clientes antigos preferindo os artigos do extremo oriente, e deixando de fazer pedidos. Até mesmo uma grande empresa da cidade, á qual forneciam braçadeiras de aparelhos de aferição de pressão arterial, transferira sua linha de produção para outro estado, fazendo-os perder seu melhor cliente. A firma começou a acumular dívidas que Dionísio não conseguia quitar. Então entrou em concordata para não ir á falência, e decidiu desfazer-se do negócio.
Que duro golpe foi ver tudo ser vendido de porteira fechada, ou seja, instalações com todo o patrimônio da firma: máquinas móveis de escritórios, estoques, o Mercedinho e até mesmo a possante já sem serventia. O velho empresário cerrou a porta de sua fábrica e viu a desilusão do seu sonho na garagem vazia. Restava-lhe o consolo de manter seu nome limpo, e a certeza do dever cumprido, com filhos criados e vivendo suas vidas.
O descanso seria merecido!
Anos depois, deitado na rede, o velho Dionísio lembrava-se saudosamente da velha possante amarela que o ajudou a fazer sua fortuna, mas a usura da vida fez descartar. Dando de ombros, ele concluía: - Era apenas um carro! – e voltava á leitura do seu jornal.
Mas a vida ás vezes cede espaço ás ultimas chances.
Foi num desses jornais que Dionísio viu o anúncio de uma Kombi Standard 1973 “corujinha” – apelido dos modelos antigos cujos faróis lembram os olhos da ave de frente. Era amarela, mas não trazia maiores explicações além do contato.
Naquela mesma tarde, Dionísio foi conferir num posto de gasolina á beira da BR-040, onde o veículo poderia ser visto, e lá estava.
Aproximou-se. Era ela, a placa não deixava dúvidas, mas era tão difícil ver naquele veículo judiado pelo uso, algo que lembrasse sua possante, quando o vendedor se aproximou já elogiando o estado do carro: - Ela nunca bateu doutor! Só teve um dono, e eu!
Dionísio examinava a Kombi, que ao girar a chave o motor pegou de imediato, mas parecia-lhe tão velha; tão longe da sua lembrança. O homem mostrou-lhe os documentos da Kombi: - Só um pouquinho atrasados! - como frisava.
Talvez a lembrança fosse mais doce do que tivera sido a realidade. Ou talvez o próprio Dionísio tenha se assustado ao ver sua velha possante com as rugas do tempo impressas na lataria. E isto lhe lembrou das suas próprias rugas!
- E então doutor? Um garoto falou que vai ver ela mais de tarde!
-Eu fico com ela! – respondeu Dionísio. - Como você prefere: cartão, dinheiro? – e olhou a Kombi de lado enquanto pensava:
- Eu sabia que ia voltar! Vamos pra casa.
(1) SALLES, Mauro. O teste da Kombi Volkswagen: grande por dentro e pequena por fora. Revista Mecânica Popular, Rio de Janeiro, ano 02, volume 07, pag. 98 – 106, maio de 1961. (Edição em Português da Popular Mechanics Magazine)
ANUNCIO. O Lince, revista semanal ilustrada, Juiz de Fora, ano 59, n. 1440, contra capa, abril 1970.
FIM
Dionísio levouuu
ResponderExcluirÉ uma história de amor!!
ResponderExcluir