VIGÁRIO LINEU
Josélio olhava com espanto aquela figura. Não era repulsa, mas curiosidade.
Embora compartilhasse da mesma sensação de estranhamento, Mathias o ouvia mais preocupado em buscar informações sobre o caso.
-... Então, senhor Mathias, peço-lhe para relevar algumas colocações exageradas de minha tia sobre a relação da nossa família com o Jacob. Tia Hebe ainda não se conformou com a bancarrota e fica procurando culpados! – riso: - Os Marazzi pareciam crer que possuíam uma cornucópia dourada no porão jorrando dinheiro ininterruptamente; só que isto não existia!
Mathias se ajeitou na cadeira, e respondeu: - Bem, senhor Michael, então a senhora Hebe mantinha boas relações com o senhor Jacob?
Ele sorriu ao responder. – Podem chamar-me Miss Michael. É como os amigos me conhecem. Quanto á pergunta: ela vive sozinha naquele casarão. Inquilinos não são necessariamente seus amigos; são inquilinos! O senhor deve saber do que estou falando. – o detetive assentiu e Miss Michael prosseguiu: - Tia Hebe se sentia segura em saber que Jacob estava ali ao seu lado, e tinha certeza que seria solicito se precisasse de ajuda.
- A senhora Hebe contraiu novo empréstimo como o senhor Jacob. Sabia disto Miss Michael?
- Sim, ela me falou. Nada vultoso; apenas um trocado para pequenas obras na parte dos fundos do casarão.
- A senhora Hebe também disse que a família Marazzi conheceu o senhor Jacob em 1939 quando ele veio da Europa.
- Sim senhor! Na verdade, eu conheci Jacob na minha viagem de retorno ao Brasil. Na juventude eu vivi na Europa ainda usufruindo o restinho da fortuna dos Marazzi. Acho que eu também acreditava na tal cornucópia! - riso. - Conhecemo-nos no navio e ficamos amigos. Ele disse estava saindo da Europa por causa da perseguição aos judeus. Ele era cristão, mas de ascendência judaica, e isto o deixava inseguro em Londres. Temia ser detido!
- Mas a prisão de judeus em campos de concentração não estava restrita á Alemanha nazista? – perguntou Josélio.
- Sim. Mas a onda de intolerância já estava transpondo as fronteiras europeias como um incêndio que devora uma casa e deixa as demais impregnadas no fedor da fumaça, e era exatamente isto que ocorria fora da Alemanha! Judeus já não eram bem vistos e ele temia que os nazistas vencessem uma eventual guerra. E ainda havia o fato dele ser homossexual, e isto eu posso lhe dizer de cátedra o quanto nos torna vulneráveis! – abanou a cabeça e prosseguiu: - Ele ouvia muito falar do Brasil e estava vindo justamente conhecer o país com vistas á se estabelecer por aqui. E lhe digo senhor Mathias, ele adorou assim que pisou no porto no Rio de janeiro, e logo quis conhecer a nossa cidade aqui em Minas. Viemos e ele ficou amigo da família! Depois viajamos pelo país; ele queria conhecer a Bahia que via nos filmes de Carmem Miranda! – gargalhou. – Nos divertimos muito!
- Mas e a esposa dele? – perguntou Josélio.
- Quem? – estranhou Michael.
Mathias explicou: - Ele não era casado, e sua esposa não tinha ficado em Londres?
- Oh meu deus! – riu novamente: - Foi titia Hebe que disse isto, não foi? Sim, é verdade que Jacob era, por assim dizer, casado, não com uma mulher, mas com um homem chamado John! – os detetives se entreolharam, e Michael prosseguiu: - Não conheci John pessoalmente, mas Jacob falava maravilhas dele. Havia uma foto dos dois: John parecia um lord inglês, elegante de chapéu coco!
- Hum,... Ele não veio junto porque Jacob queria estar estabelecido antes de trazê-lo?
- Não foi exatamente assim senhor Mathias. Ocorreu que John tinha coisas á resolver em Londres. Propriedades a serem negociadas e encerrar as atividades da loja de penhores que possuíam juntos. – risinho: - Lá também Jacob emprestava dinheiro á crédito!
- Então a história que sua,... Quero, dizer, que seu companheiro morreu nos bombardeios sobre Londres é verdadeira? – Perguntou Mathias.
- Oh este episódio foi dramático! Estávamos juntos em agosto de 1940 quando ouvimos pela Rádio Nacional notícias dos bombardeios nazistas no Surrey Commercial Docks ao Sul de Londres, onde se situava a loja e moradia dos dois. Jacob entrou no mais absoluto desespero! Queria entrar no seu carro e seguir ao Rio de Janeiro para embarcar á Inglaterra de qualquer maneira, e o fez; só que foi inútil. Não havia como viajar em meio á uma guerra! – abanou a cabeça: - Foram anos de muita angústia sem informações seguras. Amigos diziam que todo o quarteirão tinha sido devastado no bombardeio e havia corpos mutilados por todos os lados, cuja identificação era praticamente impossível! Jacob teve que esperar o final da guerra na Europa para retornar á Londres somente em 1945!
- Ele conseguiu descobrir o que aconteceu? – perguntou Josélio.
- Conseguiu apenas a lista de desaparecidos nos bombardeios, onde constava o nome de John Curtiss Taylor como morto sem chances de identificação!
Mathias se espantou pela coincidência de sobrenomes com o pároco do telegrama, e perguntou: - Não havia nenhum parente de Jacob ou John em Londres que pudesse esclarecer o que aconteceu?
- Infelizmente os poucos parentes de Jacob não mantinham relações com ele, e sumiram de Londres. Havia o pai de John, mas Jacob não falava muito no sogro que não aprovava o relacionamento homossexual do filho, e queria vê-los longe para evitar os constrangimentos que o caso trazia entre os membros da congregação; ele era padre anglicano! Assim, quando os dois resolveram sair da Inglaterra, o sogro deve ter até soltado foguetes! Ah,... Mas não deu tempo; a guerra chegou primeiro.
- Mas o senhor Jacob conseguiu,... – Josélio ia se referir ao telegrama, mas Mathias o cortou e remendou a pergunta: - Ele conseguiu encontrar o pai de John?
- Não! – deu de ombros: - Jacob não gostava de falar nisto, mas pude perceber que devia ser um padreco preconceituoso! – suspirou: - Pobre Jacob: sua recuperação foi difícil não só pela perda do seu amor como do patrimônio em Londres. Ele teve que começar de novo naquilo que sabia fazer: lidar com dinheiro!
- Como assim, patrimônio? John não lhe enviou nada antes de morrer?
- Acho que não deu tempo de fazer isto senhor Mathias.
- Hum, soubemos que o Jacob estava planejando voltar á viver em Londres; isto é verdade Miss Michael?
- Oh!... Quem lhe disse isto?
- Isto foi relatado por Alfredo, o dono da farmácia vizinha á peleria! – respondeu Mathias. – Inclusive, ele estaria negociando a compra da Loja do senhor Jacob.
Michael olhou para o lado com expressão de dúvida, e falou: - Bem,... Jacob nunca expressou desejo de voltar a viver em Londres,... Pelo menos para mim! Ah, senhor Mathias... Nos últimos anos estivemos afastados. Poucas pessoas aqui sabiam da sua homossexualidade, e assim, para se resguardar de fofocas ele se afastou de mim. O meu jeito, como se diz, dá muita bandeira né?
- Isto lhe deixou mágoas, Miss Michael?
- Não senhor! Cidadãos respeitáveis devem manter o decoro indispensável ao convívio com os normais; é a regra para serem socialmente aceitos! – ocorreu uma pausa: - Eu estou relatando tudo isto apenas para deixar claro que minha tia Hebe jamais atentaria contra a vida de Jacob. Então eu gostaria de solicitar aos senhores que no caso de precisarem falar com minha tia Hebe, o fizessem com discrição. Titia vive do aluguel dos quartos do casarão; e receio que seus inquilinos possam ficar incomodados com a presença da polícia. É possível senhor?
- Sim Miss Michael. Ninguém aqui quer criar problemas aos outros; apenas precisamos elucidar um assassinato. Mas se for preciso falar com a senhora Hebe, nós tentaremos ser discretos.
- Eu ficaria grato! No fundo, ela gostava dele e está sofrendo pela sua morte desta maneira violenta. Bem,... Eu estou dispensado, posso ir embora?
- Apenas mais uma questão: sobre o jovem Charles que trabalhava para o senhor Jacob. Por acaso, eles mantêm algum relacionamento íntimo? – perguntou Mathias.
- Oh céus, mais uma fofoca da tia Hebe! Senhores: acreditem ou não, desde que perdeu seu companheiro, que era seu verdadeiro amor, Jacob jamais manteve relacionamentos com quem quer que fosse. Teve casinhos sem importância, e é exatamente o que Charles devia ter sido!
- Você acha que Charles poderia tê-lo assassinado? – perguntou direto.
- Charles é um jovem com fama de valentão, que sabe atirar! Ah,... Não vou fazer rodeios: ele não passa de um michê interesseiro e metido a esperto!
- Então ele seria capaz de assassiná-lo para roubar, por exemplo? – insistiu Josélio.
- Eu não duvido! – respondeu certeiro.
- Você sabe onde ele mora?
- Sim senhor! Na Avenida Getúlio Vargas há um cortiço perto da Rua São João. É lá que ele mora, só não sei o numero do quarto. Isto é tudo que sei! Eu poderia me retirar agora?
- Sim Miss Michael. Mas talvez seja necessário um depoimento oficial, está ok?
- Ele sorriu: - É claro, senhores. Com licença, e tenham uma boa tarde. – Miss Michael saiu do gabinete ainda sob os olhares de policiais e pessoas que estavam no corredor.
Josélio espiava e falou: - Caramba doutor; que figura!
- Pois eu acho corajosa sua atitude de viver do jeito que bem entender. Já o tinha visto na rua e confesso que me enganou direitinho. Eu jurava que era uma distinta senhora! – pôs a mão no queixo: - Que estranho: aquele telegrama dá a entender que o reverendo Lineu teria Jacob como um filho! Mas não aprovava a relação dos dois no passado?
- Á vezes mudou de opinião, né doutor!
- Sim,... Como religioso talvez ao tenham perdoado.
- Quem perdoa é Deus! – riu. – O doutor não estranhou que Miss Michael venha aqui apenas para limpar a barra da tia, que parece nem gostar dele?
- Ah Josélio: família é um troço complicado! – fez um muxoxo. – Mas vamos deixar isto para lá! Chame homens e uma patrulha para averiguarmos o cortiço da Getúlio Vargas. Se Charles estiver lá, provavelmente armado, poderemos ter problemas!
- Será que foi ele que matou o agiota?
Enquanto ajeitava seu coldre com a arma Mathias respondeu: - Vamos pensar nos motivos: um jovem que fazia programas com homens conhece um agiota rico que passa á tê-lo como um casinho, como disse Miss Michael, e parecia ser bem generoso a ponto de lhe dar um Fusca zero quilômetro! – verificou a munição na arma: - Então, qual motivo teria para matar seu protetor?
- Ambição! Ás vezes achava pouco e queria mais. – respondeu Josélio também examinando sua arma. – Quem sabe esse Charles também não é chegado numa maconha, héim doutor? Isso deixa os caras sem noção!
- Sim! Vamos logo tirar isto a limpo! – e saíram.
Na viatura á caminho do cortiço Josélio ainda comentava falas de Miss Michael: - Que coisa héim? O agiota então ficou no aperto aqui no Brasil, e começou a emprestar dinheiro para formar capital. Agiotagem então é um negócio da China!
- Nem tenha dúvidas! – respondeu Mathias: - O esquema é feito para dar lucro. As pessoas os procuram quase sempre por necessidade extrema, e conseguem dinheiro emprestado dando algo de valor como garantia: joias, veículos, obras de arte e imóveis, assinando promissórias que são resgatadas á cada pagamento, como se fossem parcelas de um financiamento com juros bem salgados. Até aí, nada de estranho porque os bancos costumam fazer assim nas hipotecas, por exemplo. Ocorre que no esquema do senhor Jacob, as parcelas só podem ser quitadas no dia do pagamento! Se caírem num fim de semana ou feriado, é no dia útil anterior. Se o devedor não conseguir pagar neste dia, o agiota não os aceita nos dias posteriores, só no mês seguinte e junto á parcela daquele mês, com os juros de ambas. Isto vai juntando juros em cima de juros de tal forma que o devedor acaba perdendo o bem dado em garantia para quitar a dívida! É assim que agiotas vão juntando patrimônio.
- Que filha da putice, héim doutor?
- Sim, mas é legal do ponto de vista jurídico porque não há regras para regulamentar esta atividade; então eles aproveitam! Mas fiquei incucado com uma coisa que Miss Michael disse: que o senhor Jacob não pôde trazer seu dinheiro para o Brasil! Até onde sei, haveria bancos ingleses atuando no Brasil antes da Segunda Guerra, e assim uma transferência de valores via transação bancária resolveria!
- É verdade doutor! E quando começaram os bombardeios em Londres, Jacob estaria aqui há mais de uma ano; deu até para viajar á Bahia com Miss Michael! Então por que não deu tempo do namorado dele mandar logo a grana pro Brasil antes de fugir da Europa?
- De fato, de fato! Ah,... Tem muita coisa mal explicada nesta história! – avistou o cortiço: - Estamos chegando.
Logo estacionaram suas viaturas á Avenida Getúlio Vargas, onde ficava a entrada do cortiço que compunha uma edificação térrea muito antiga com diversas lojas de comércio popular e bares, cuja parte interna abrigava uma vila de casas modestas, repartidas depois em quartos. Mathias, Josélio e alguns policiais já foram se organizando, dois ficariam á entrada do cortiço.
Josélio apontou um carro parado: - Olhe ali doutor; um Fusca vermelho ainda sem placas!
Mathias olhou e seguiram ao cortiço sob os olhares de transeuntes e frequentadores que mesclavam curiosidade e receio. Havia uma espécie de síndica que gerenciava o lugar, velha conhecida da polícia, que já foi se defendendo: - Eu não sei de nada doutor!
- Ainda não falei do que se trata dona Amália! – respondeu Mathias. – Mas vamos deixar de embromação e me diga á onde mora um jovem chamado Charles nesta espelunca?
- Não conheço ninguém com esse nome aqui!
- Ah, que pena, então vamos ter que vasculhar cada habitação para encontrá-lo! – olhou os policiais: - Chamem os outros lá fora: operação pente fino aqui! – blefou, pois o efetivo era pequeno.
- Tá bem tá bem! Isso tem haver com a morte do judeu não é? Ó; eu não quero encrenca pro meu lado!
- É só falar qual é a moradia do Charles que a senhora até ganha medalha por bom comportamento! – encarou-a Josélio.
- Engraçadinho rhum! Venham comigo! – e seguiram por becos onde portas e janelas eram fechadas com força até chegarem á uma moradia bem ao fundo. – É aqui doutor!
- Como é o nome completo dele, a senhora sabe?
- É Charles de Sousa!
Mathias mexeu na maçaneta, e estava trancada. Então começou á bater á porta: - Senhor Charles de Sousa, aqui é a polícia. Abra a porta para conversarmos! – apenas silêncio. – Por favor, abra a porta?
Josélio observou pela bandeira envidraçada acima da porta: – A luz está acesa lá dentro!
Mathias tentou chama-lo mais vezes, ordenando que abrisse a porta já com a mão no coldre. Josélio tentava espiar por uma janela basculante, mas havia um cobertor tapando-a servindo de cortina.
Então Mathias disse: - Vamos arrombar a porta!
Não foi difícil romper o umbral um tanto carcomido de cupins e a porta foi aberta. Mathias, Josélio e os dois policiais que os acompanhavam entraram de armas em punho, atentos e apontando para todos os lados. Era uma espécie de quitinete, separada do quarto por um arco, onde se via pia armário e um frigobar com aparência de novo, além de um pequeno fogão também novo. No quarto havia aparelho de TV e um toca-discos. – Olhe ali doutor, em cima da cama! – apontou Josélio: havia uma valise com dinheiro e joias junto á uma arma. Mathias aproximou e falou: - É um revólver Colt calibre 32!
Um policial apontou. – Tem luz acesa atrás daquela porta!
Mathias ordenou que ficasse á porta arrombada, e perguntou á Amália.
- O que tem ali?
- É o banheiro!
- Então saia daqui. Se tiver tiros, a senhora não querer levar um? – ela correu.
Então tornou á entrar e chegou perto da porta, ainda empunhando sua arma, e segurou a maçaneta, que estava destrancada.
Quando abriram a porta, o corpo de Charles estava pendurado por uma forca atada á báscula de uma janela rente ao teto.
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