quinta-feira, 28 de maio de 2020

O JUIZ QUE VEIO DE FORA.


CONTINUA – FINAL.


Hantau se sentou num jirau de bambu, fitou o infinito com seus olhos esverdeados e começou a falar sobre um tempo muito antigo, séculos atrás quando a família Kelkaj Jaroj vivia na região do Ródope, na Bulgária, sendo vassalos de senhores feudais ávidos por impostos para manterem seu esplendor. Ele riu ao fazer um á parte.
- Exatamente como ocorre á estes pobres diabos que hoje vivem na gloriosa Capitania das Minas Geraes á sustentar um falso fausto!
Tossiu um pouco entre risadas e prosseguiu lembrando que era a época das Cruzadas quando cristãos partiram á Terra Santa, no Oriente, em busca das relíquias sagradas relatadas na Bíblia, e os Kelkaj Jaroj seguiram naquele intento. Ocorre que muitos não iam à procura do Santo Graal ou da Arca da Aliança, e sim atrás de qualquer coisa valiosa que pudessem pilhar. Os antepassados de Hantau tiveram informação de que haveria artefatos em ouro e pedrarias numa mesquita nas colinas de Golan num um lugar escondido entre escarpas e guardada por um sheik idoso e alguns discípulos que não tiveram força para defendê-la, sendo todos dizimados. Mesmo ferido, o sheik tentava proteger uma estreita porta de madeira, implorando numa língua que os Kelkaj não compreendiam. Foi inútil, pois eles o mataram e invadiram o recinto! Havia uma espécie de urna tampada e coberta por inúmeros pergaminhos e pedras com inscrições gravadas. Foi tudo atirado ao chão e a tampa da urna prontamente removida para revelar joias, moedas de ouro e uma garrafa de alabastro lacrada. Foi tudo roubado.
No caminho de volta os Kelkaj também foram pilhados, e retornaram á sua terra trazendo apenas moedas que conseguiram esconder e a garrafa de alabastro. Foi inútil porque o ouro foi tomado pelos senhores feudais, permanecendo apenas a garrafa lacrada, mas vazia, como lembrança daquela aventura.
Séculos depois os Kelkaj continuavam vassalos de senhores cada vez mais tiranos. Depois vieram os turcos que dominaram o país e como retaliação pela família ter participado das Cruzadas séculos antes, os Kelkaj foram mortos e o Jovem Hantau, de apenas dezesseis anos, se refugiou no porão da casa, encolhendo-se atrás de uma prateleira balançante que desabou. A garrafa caiu ao chão e rolou aos seus pés enquanto ele rogava pragas e prometia vingança aos senhores feudais e aos turcos com todo ódio do seu coração.
Então aconteceu algo inusitado: o lacre da garrafa se rompeu liberando um perfume forte numa nevoa azulada enquanto ecoou uma voz num dialeto estranho ao qual ele compreendia! - “Ouvi tua súplica por justiça, e estou aqui á tua disposição meu amo e senhor! Teu coração agora serás meu guia, e apenas deverás dizer: aos meus inimigos, á morte, e terás o mundo aos teus pés!”.
Sem qualquer hesitação Hantau respondeu com olhos molhados em lágrimas amargas: - Aos meus inimigos, á morte!
Após aquele dia os acontecimentos se desdobraram com uma celeridade espantosa. O jovem se tornou senhor quase da noite para o dia, passando a ser temido até pelos turcos! Quatro anos depois, casou-se com uma nobre de nome Elena Balgiev mesmo a contragosto do pai, que no ano seguinte, morreu de uma doença misteriosa. Outros membros da corte, seus inimigos, também faleceram doentes ou em suicídios. Hantau estava com trinta e dois anos quando foi denunciado á Inquisição por prática de bruxaria. Contudo, seus acusadores também tiveram morte misteriosa, aparentemente dizimando-se uns aos outros numa discussão. Ele descobriu que quem o denunciou foi sua própria esposa, enciumada pelas muitas amantes que Hantau colecionava. Ela acabou enlouquecendo e se enforcou na capela do castelo.
Neste momento Hantau fitou Bustamante com lágrimas tão amargas como naquele dia, mas carregadas de arrependimento ao dizer: - Nas tradições árabes mais antigas, gênios da garrafa não são nossos vassalos, mas maldições! Concedem-nos o mundo, mas se alimentam do nosso ódio e ambição!... Acabamos tornando-nos escravos de nós mesmos,... Nossos próprios demônios! – todos o temiam, é bem verdade, mas isto se converteu num infortúnio sufocante.
Então Hantau decidiu retornar á Terra Santa em busca de respostas, e após muito procurar por dois longos anos, encontrou um sábio que o ouviu e disse-lhe que para livrá-lo da maldição, teria que persuadir o gênio á voltar á garrafa, prometendo-o á um novo senhor ainda bebê porque a inocência infantil poderia ser ainda mais perversa e livre de escrúpulos do que qualquer mente adulta.  Contudo, isto seria apenas um ardil, porque no ato da promessa ao gênio, o progenitor desta criança deveria apenas simular todo ódio, ambição e desejo de vingança, porém, mantendo dissimulada a nobreza da sua verdadeira intenção.  Hantau poderia ser o progenitor daquela criança, mas conseguiria dissimular com tanta perspicácia?
Assim ele retornou ao Ródope e iniciou a busca por uma mulher que pudesse conceber esta criança. Então descobriu mais uma faceta da sua maldição, pois as mulheres se entregavam a ele sedentas por sexo cada vez mais, e aos primeiros sinais de concepção elas enlouqueciam, adoeciam ou cometiam suicídio. Sua vida naquele lugar se tornava insustentável ano após ano até aparecer uma nobre portuguesa em busca de casamento: Dona Catarina Maria da Gama. Ele imaginou que uma dama da alta nobreza da Península Ibérica, longe do Ródope, poderia ser a solução e partiu para Lisboa onde o desfile de tapetes vermelhos aos seus pés se repetiu. Porém, repetiram-se também os episódios de loucura, mortes e suicídios, inclusive de sua esposa.
Hantau abaixou a cabeça e falou. – O resto, o nobre magistrado já conhece: vim parar na colônia brasileira em busca de abrigo num sítio ainda mais distante do Ródope. Tentei chegar á Vila Rica esperando com isto escapar ao gênio protegido pelo cinturão de fé que a circunda,... – riu irônico ao fitá-lo. – Ingenuidade!... Os santos, anjos, ou que diabo seja que a circundam, certamente enxergaram o demônio que sou! Atentei contra minha vida não sei quantas vezes; mas adagas não penetram meu corpo; venenos apenas me entorpecem; fogo não me queima; ferimentos me atordoam e enfraquecem por algum tempo, mas logo me curo. E então, ó discípulo dos bruxos de Paris: podes me ajudar, ou a pendenga é grande demais para teus poderes de prestidigitador?
Bustamante respondeu: - Veremos! Vou voltar á fazenda. – olhou em volta apertando o nariz: - Limpe isto aqui,... Até porcos vivem com mais asseio! – e saiu.

Passaram-se alguns meses com ele exercendo a função de “juiz de fora” na mais absoluta normalidade e ouvindo os lamentos de Hantau, até que numa tarde chegou uma carruagem á fazenda trazendo uma mulher desacompanhada, o que causou alvoroço entre os habitantes. Bustamante foi recebê-la: era francesa e se chamava Eva Marie Sainte-Pezenne.
Ele lhe falou: - Para todos os efeitos, tu és minha esposa.
- De certa forma, eu serei!  Pelo que disseste na carta, não há como o búlgaro conceber esta criança por conta da maldição que enlouquece as mulheres. Pobre infeliz!  – falou com sotaque francês: - Tu já tens um plano?
 – Sim. Não será fácil! Informaram-me que tu és versada nas artes do ocultismo.
- Digas a palavra certa: sou uma bruxa!
Seguiram á sede da fazenda e naquela mesma noite fizeram sexo com objetivo de conceber. Eva Marie tinha desejo de ser mãe e ficaria com a criança depois, mas ambos tinham consciência do perigo de serem persuadidos pelo gênio e acabarem gerando exatamente o que ele queria: uma criança com mente absolutamente aberta á maldade e ao egoísmo.
Mais três meses até Eva Marie ter a confirmação da gravidez. Era o momento de iniciar o plano!
Hantau deveria evocar o gênio com a oferta da pureza inocente da mente infantil, contudo, concebida por outro homem tão ambicioso e sedento de vingança como ele. Os três partiram para um local no lado oposto do Rio Paraibuna, perto de uma montanha, e encontram uma clareira ideal para o ritual que deveria ser noturno. Hantau e Bustamante e acenderam tochas, e ele perguntou: - É preciso que tu tenhas certeza, porque quando o gênio te abandonar, tu perderás teu fascínio e voltarás a ser um homem comum!
– Eu joguei fora toda a minha vida trás desta quimera maldita. Quero viver o restante dela com alguma dignidade!
Tudo pronto e os três se colocaram em circulo. Hantau fechou os olhos e iniciou uma espécie de oração num dialeto que remetia ao longínquo Oriente Médio. Bustamante buscava por todos os ressentimentos que agregou na vida; insultos, violências, frustrações e rejeições. Mas seria preciso extrema força de caráter para não ceder àqueles sentimentos. Eva Marie faria o mesmo.
Logo um perfume forte tomou conta do ambiente junto a uma névoa azulada. Ouviu-se uma voz naquele dialeto misterioso, porém, compreendido por todos: - “Ouvi tua súplica por justiça, e estou aqui á tua disposição meu amo e senhor! Teu coração agora serás meu guia, e apenas deverás dizer: aos inimigos deste inocente, á morte, e ele terá o mundo aos teus pés!”.
Bustamante e Marie responderam: - Aos inimigos deste inocente, á morte!
Passaram-se alguns momentos angustiantes até Hantau falar. – O gênio quer confirmar se o que dizes é verdadeiro, preparem-te!
Então á névoa surgiu á conformação de uma máscara flutuante que se colocou face á face com Bustamante, que sentiu sua mente sendo vasculhada como uma gaveta. Ele evocou tudo que um dia lhe causou raiva, vergonha e ódio, e subitamente lembrou-se de um episódio esquecido na infância, ainda no colégio interno, quando foi abusado por colegas. – Isto não! – o ódio pareceu tomar conta de seu ser de forma autêntica, e se não o refreasse com as armas da dissimulação, estaria tudo perdido.
O suor lhe escorria quando finalmente tomou o comando da sua própria mente. O olhar perscrutador daqueles olhos invisíveis se foi; o plano deu certo.
Pegue a garrafa Eva Marie! – falou Hantau. Ela o fez e a névoa começou e entrar vagarosamente pelo gargalo da garrafa á luz flamejante das tochas. Era fascinante e assustador!
Ela a tapou e misteriosamente um lacre a selou. Bustamante pôs a mão na testa e falou: - Graças á Deus!... Por um instante, eu pensei que não conseguiríamos.
Emocionado, Hantau disse: – Mal posso crer que estou livre!... Agora sabes o que deves fazer: tu deves colocar esta maldita garrafa numa urna enterrada no solo mais profundo que tu conseguires escavar junto ás moedas de ouro e joias que te dei. Depois cubra tudo com muitos livros, pois apenas a sabedoria ou a justiça têm poder para mantê-lo preso!
Bustamante ergueu as mãos buscando a garrafa, mas Eva Marie se esquivou. – Não!... Fui acusada de bruxaria e prostituição até ser expulsa da minha aldeia, e agora que tenho a chance de fazê-los pagar por esta humilhação á troco de quê devo desistir?
Hantau respondeu: - Olhes para mim!... Trarei para sempre o remorso pelas vidas que ceifei, e são tantas que mal posso contá-las!...  Não amei e nem fui amado. Não tive um só minuto de paz e agora sou só um homem acabado e amargurado. É tarde demais para o amor e a felicidade, e toda a fortuna que amealhei servirá apenas para construir-me um mausoléu digno de um marajá!... Se for isto que tu queres para teu rebento; calo-me agora!
Eva Marie olhou-o, hesitou uns instantes e entregou a garrafa á Bustamante, dizendo: - Toma!... Eu quero ir embora deste fim de mundo o quanto antes!

Dias depois uma carruagem aguardava partida diante da fazenda do Juiz de Fora. Eva Marie já estava dentro
Hantau vinha limpo e de cabelos e barba cortados: - Tu estás vendo o que conquistei? Mesmo sabendo da minha partida, todos se trancaram em suas casas e devem estar a desejar que o diabo me carregue!
- O que tu pretendes fazer agora?
- Vou retornar á minha terra, no Ródope, e baterei ás portas do mosteiro mais austero que encontrar, rogando que me aceitem! Tenho uma fortuna para doar á santa e amada Igreja Católica, e creio ser uma boa chave capaz de abrir muitas portas! – antes de entrar, apertou as mãos de Bustamante: - Foi um prazer conhecê-lo, meritíssimo!... Muito obrigado! – e entrou na carruagem.
Eva Marie chegou á janela e perguntou: - O que fizeste com a garrafa?
Bustamante apenas sorriu ao falar: - Bon voyage, Eva Marie! – e fez um sinal ao cocheiro para que partisse. Depois seguiu ao interior da fazenda para uma audiência.

Luiz de Souza Fortes Bustamante e Sá faleceu em 1741, e acabou sendo reconhecido como o juiz que deu nome ao município mineiro de Juiz de Fora.
Toda referencia oficial á Hantau Kelkaj Jaroj desapareceu na poeira de arquivos roídos por traças e memórias imprecisas em velhos diários e cartas. É mesmo provável que nunca tenha existido de fato!
Quanto á garrafa do gênio, só se pode esperar e torcer que esteja bem enterrada sob o concreto nos alicerces de um arranha-céu, ou debaixo de camadas e camadas de asfalto em algum lugar da cidade.
... Vamos torcer que fique assim para sempre!

Fim

Lembrando que isto é uma licença poética sem qualquer fidelidade histórica!... Ou quase.



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