CONTINUA – FINAL.
Hantau se sentou num jirau de bambu, fitou
o infinito com seus olhos esverdeados e começou a falar sobre um tempo muito
antigo, séculos atrás quando a família Kelkaj Jaroj vivia na região do Ródope,
na Bulgária, sendo vassalos de senhores feudais ávidos por impostos para
manterem seu esplendor. Ele riu ao fazer um á parte.
- Exatamente como ocorre á estes pobres
diabos que hoje vivem na gloriosa Capitania das Minas Geraes á sustentar um
falso fausto!
Tossiu um pouco entre risadas e
prosseguiu lembrando que era a época das Cruzadas quando cristãos partiram á
Terra Santa, no Oriente, em busca das relíquias sagradas relatadas na Bíblia, e
os Kelkaj Jaroj seguiram naquele intento. Ocorre que muitos não iam à procura
do Santo Graal ou da Arca da Aliança, e sim atrás de qualquer coisa valiosa que
pudessem pilhar. Os antepassados de Hantau tiveram informação de que haveria
artefatos em ouro e pedrarias numa mesquita nas colinas de Golan num um lugar
escondido entre escarpas e guardada por um sheik idoso e alguns discípulos que
não tiveram força para defendê-la, sendo todos dizimados. Mesmo ferido, o sheik
tentava proteger uma estreita porta de madeira, implorando numa língua que os
Kelkaj não compreendiam. Foi inútil, pois eles o mataram e invadiram o recinto!
Havia uma espécie de urna tampada e coberta por inúmeros pergaminhos e pedras
com inscrições gravadas. Foi tudo atirado ao chão e a tampa da urna prontamente
removida para revelar joias, moedas de ouro e uma garrafa de alabastro lacrada.
Foi tudo roubado.
No caminho de volta os Kelkaj também
foram pilhados, e retornaram á sua terra trazendo apenas moedas que conseguiram
esconder e a garrafa de alabastro. Foi inútil porque o ouro foi tomado pelos
senhores feudais, permanecendo apenas a garrafa lacrada, mas vazia, como
lembrança daquela aventura.
Séculos depois os Kelkaj continuavam
vassalos de senhores cada vez mais tiranos. Depois vieram os turcos que
dominaram o país e como retaliação pela família ter participado das Cruzadas
séculos antes, os Kelkaj foram mortos e o Jovem Hantau, de apenas dezesseis
anos, se refugiou no porão da casa, encolhendo-se atrás de uma prateleira
balançante que desabou. A garrafa caiu ao chão e rolou aos seus pés enquanto
ele rogava pragas e prometia vingança aos senhores feudais e aos turcos com
todo ódio do seu coração.
Então aconteceu algo inusitado: o lacre
da garrafa se rompeu liberando um perfume forte numa nevoa azulada enquanto
ecoou uma voz num dialeto estranho ao qual ele compreendia! - “Ouvi tua súplica por justiça, e estou aqui
á tua disposição meu amo e senhor! Teu coração agora serás meu guia, e apenas
deverás dizer: aos meus inimigos, á morte, e terás o mundo aos teus pés!”.
Sem qualquer hesitação Hantau respondeu
com olhos molhados em lágrimas amargas: - Aos meus inimigos, á morte!
Após aquele dia os acontecimentos se
desdobraram com uma celeridade espantosa. O jovem se tornou senhor quase da
noite para o dia, passando a ser temido até pelos turcos! Quatro anos depois,
casou-se com uma nobre de nome Elena Balgiev mesmo a contragosto do pai, que no
ano seguinte, morreu de uma doença misteriosa. Outros membros da corte, seus
inimigos, também faleceram doentes ou em suicídios. Hantau estava com trinta e
dois anos quando foi denunciado á Inquisição por prática de bruxaria. Contudo,
seus acusadores também tiveram morte misteriosa, aparentemente dizimando-se uns
aos outros numa discussão. Ele descobriu que quem o denunciou foi sua própria
esposa, enciumada pelas muitas amantes que Hantau colecionava. Ela acabou
enlouquecendo e se enforcou na capela do castelo.
Neste momento Hantau fitou Bustamante
com lágrimas tão amargas como naquele dia, mas carregadas de arrependimento ao
dizer: - Nas tradições árabes mais antigas, gênios da garrafa não são nossos
vassalos, mas maldições! Concedem-nos o mundo, mas se alimentam do nosso ódio e
ambição!... Acabamos tornando-nos escravos de nós mesmos,... Nossos próprios
demônios! – todos o temiam, é bem verdade, mas isto se converteu num infortúnio
sufocante.
Então Hantau decidiu retornar á Terra
Santa em busca de respostas, e após muito procurar por dois longos anos,
encontrou um sábio que o ouviu e disse-lhe que para livrá-lo da maldição, teria
que persuadir o gênio á voltar á garrafa, prometendo-o á um novo senhor ainda
bebê porque a inocência infantil poderia ser ainda mais perversa e livre de
escrúpulos do que qualquer mente adulta.
Contudo, isto seria apenas um ardil, porque no ato da promessa ao gênio,
o progenitor desta criança deveria apenas simular todo ódio, ambição e desejo
de vingança, porém, mantendo dissimulada a nobreza da sua verdadeira
intenção. Hantau poderia ser o
progenitor daquela criança, mas conseguiria dissimular com tanta perspicácia?
Assim ele retornou ao Ródope e iniciou a
busca por uma mulher que pudesse conceber esta criança. Então descobriu mais
uma faceta da sua maldição, pois as mulheres se entregavam a ele sedentas por
sexo cada vez mais, e aos primeiros sinais de concepção elas enlouqueciam,
adoeciam ou cometiam suicídio. Sua vida naquele lugar se tornava insustentável
ano após ano até aparecer uma nobre portuguesa em busca de casamento: Dona
Catarina Maria da Gama. Ele imaginou que uma dama da alta nobreza da Península
Ibérica, longe do Ródope, poderia ser a solução e partiu para Lisboa onde o
desfile de tapetes vermelhos aos seus pés se repetiu. Porém, repetiram-se
também os episódios de loucura, mortes e suicídios, inclusive de sua esposa.
Hantau abaixou a cabeça e falou. – O
resto, o nobre magistrado já conhece: vim parar na colônia brasileira em busca
de abrigo num sítio ainda mais distante do Ródope. Tentei chegar á Vila Rica
esperando com isto escapar ao gênio protegido pelo cinturão de fé que a
circunda,... – riu irônico ao fitá-lo. – Ingenuidade!... Os santos, anjos, ou
que diabo seja que a circundam, certamente enxergaram o demônio que sou!
Atentei contra minha vida não sei quantas vezes; mas adagas não penetram meu
corpo; venenos apenas me entorpecem; fogo não me queima; ferimentos me atordoam
e enfraquecem por algum tempo, mas logo me curo. E então, ó discípulo dos
bruxos de Paris: podes me ajudar, ou a pendenga é grande demais para teus
poderes de prestidigitador?
Bustamante respondeu: - Veremos! Vou
voltar á fazenda. – olhou em volta apertando o nariz: - Limpe isto aqui,... Até
porcos vivem com mais asseio! – e saiu.
Passaram-se alguns meses com ele
exercendo a função de “juiz de fora” na mais absoluta normalidade e ouvindo os
lamentos de Hantau, até que numa tarde chegou uma carruagem á fazenda trazendo
uma mulher desacompanhada, o que causou alvoroço entre os habitantes.
Bustamante foi recebê-la: era francesa e se chamava Eva Marie Sainte-Pezenne.
Ele lhe falou: - Para todos os efeitos, tu
és minha esposa.
- De certa forma, eu serei! Pelo que disseste na carta, não há como o
búlgaro conceber esta criança por conta da maldição que enlouquece as mulheres.
Pobre infeliz! – falou com sotaque
francês: - Tu já tens um plano?
–
Sim. Não será fácil! Informaram-me que tu és versada nas artes do ocultismo.
- Digas a palavra certa: sou uma bruxa!
Seguiram á sede da fazenda e naquela
mesma noite fizeram sexo com objetivo de conceber. Eva Marie tinha desejo de
ser mãe e ficaria com a criança depois, mas ambos tinham consciência do perigo
de serem persuadidos pelo gênio e acabarem gerando exatamente o que ele queria:
uma criança com mente absolutamente aberta á maldade e ao egoísmo.
Mais três meses até Eva Marie ter a
confirmação da gravidez. Era o momento de iniciar o plano!
Hantau deveria evocar o gênio com a
oferta da pureza inocente da mente infantil, contudo, concebida por outro homem
tão ambicioso e sedento de vingança como ele. Os três partiram para um local no
lado oposto do Rio Paraibuna, perto de uma montanha, e encontram uma clareira
ideal para o ritual que deveria ser noturno. Hantau e Bustamante e acenderam
tochas, e ele perguntou: - É preciso que tu tenhas certeza, porque quando o
gênio te abandonar, tu perderás teu fascínio e voltarás a ser um homem comum!
– Eu joguei fora toda a minha vida trás
desta quimera maldita. Quero viver o restante dela com alguma dignidade!
Tudo pronto e os três se colocaram em
circulo. Hantau fechou os olhos e iniciou uma espécie de oração num dialeto que
remetia ao longínquo Oriente Médio. Bustamante buscava por todos os
ressentimentos que agregou na vida; insultos, violências, frustrações e
rejeições. Mas seria preciso extrema força de caráter para não ceder àqueles
sentimentos. Eva Marie faria o mesmo.
Logo um perfume forte tomou conta do
ambiente junto a uma névoa azulada. Ouviu-se uma voz naquele dialeto misterioso,
porém, compreendido por todos: - “Ouvi
tua súplica por justiça, e estou aqui á tua disposição meu amo e senhor! Teu
coração agora serás meu guia, e apenas deverás dizer: aos inimigos deste
inocente, á morte, e ele terá o mundo aos teus pés!”.
Bustamante e Marie responderam: - Aos
inimigos deste inocente, á morte!
Passaram-se alguns momentos angustiantes
até Hantau falar. – O gênio quer confirmar se o que dizes é verdadeiro,
preparem-te!
Então á névoa surgiu á conformação de
uma máscara flutuante que se colocou face á face com Bustamante, que sentiu sua
mente sendo vasculhada como uma gaveta. Ele evocou tudo que um dia lhe causou
raiva, vergonha e ódio, e subitamente lembrou-se de um episódio esquecido na
infância, ainda no colégio interno, quando foi abusado por colegas. – Isto não!
– o ódio pareceu tomar conta de seu ser de forma autêntica, e se não o
refreasse com as armas da dissimulação, estaria tudo perdido.
O suor lhe escorria quando finalmente
tomou o comando da sua própria mente. O olhar perscrutador daqueles olhos
invisíveis se foi; o plano deu certo.
Pegue a garrafa Eva Marie! – falou
Hantau. Ela o fez e a névoa começou e entrar vagarosamente pelo gargalo da
garrafa á luz flamejante das tochas. Era fascinante e assustador!
Ela a tapou e misteriosamente um lacre a
selou. Bustamante pôs a mão na testa e falou: - Graças á Deus!... Por um
instante, eu pensei que não conseguiríamos.
Emocionado, Hantau disse: – Mal posso
crer que estou livre!... Agora sabes o que deves fazer: tu deves colocar esta
maldita garrafa numa urna enterrada no solo mais profundo que tu conseguires
escavar junto ás moedas de ouro e joias que te dei. Depois cubra tudo com
muitos livros, pois apenas a sabedoria ou a justiça têm poder para mantê-lo preso!
Bustamante ergueu as mãos buscando a
garrafa, mas Eva Marie se esquivou. – Não!... Fui acusada de bruxaria e
prostituição até ser expulsa da minha aldeia, e agora que tenho a chance de fazê-los
pagar por esta humilhação á troco de quê devo desistir?
Hantau respondeu: - Olhes para mim!...
Trarei para sempre o remorso pelas vidas que ceifei, e são tantas que mal posso
contá-las!... Não amei e nem fui amado.
Não tive um só minuto de paz e agora sou só um homem acabado e amargurado. É
tarde demais para o amor e a felicidade, e toda a fortuna que amealhei servirá
apenas para construir-me um mausoléu digno de um marajá!... Se for isto que tu
queres para teu rebento; calo-me agora!
Eva Marie olhou-o, hesitou uns instantes
e entregou a garrafa á Bustamante, dizendo: - Toma!... Eu quero ir embora deste
fim de mundo o quanto antes!
Dias depois uma carruagem aguardava
partida diante da fazenda do Juiz de Fora. Eva Marie já estava dentro
Hantau vinha limpo e de cabelos e barba
cortados: - Tu estás vendo o que conquistei? Mesmo sabendo da minha partida,
todos se trancaram em suas casas e devem estar a desejar que o diabo me
carregue!
- O que tu pretendes fazer agora?
- Vou retornar á minha terra, no Ródope,
e baterei ás portas do mosteiro mais austero que encontrar, rogando que me
aceitem! Tenho uma fortuna para doar á santa e amada Igreja Católica, e creio
ser uma boa chave capaz de abrir muitas portas! – antes de entrar, apertou as
mãos de Bustamante: - Foi um prazer conhecê-lo, meritíssimo!... Muito obrigado!
– e entrou na carruagem.
Eva Marie chegou á janela e perguntou: -
O que fizeste com a garrafa?
Bustamante apenas sorriu ao falar: - Bon
voyage, Eva Marie! – e fez um sinal ao cocheiro para que partisse. Depois
seguiu ao interior da fazenda para uma audiência.
Luiz de Souza Fortes Bustamante e Sá
faleceu em 1741, e acabou sendo reconhecido como o juiz que deu nome ao
município mineiro de Juiz de Fora.
Toda referencia oficial á Hantau Kelkaj
Jaroj desapareceu na poeira de arquivos roídos por traças e memórias imprecisas
em velhos diários e cartas. É mesmo provável que nunca tenha existido de fato!
Quanto á garrafa do gênio, só se pode
esperar e torcer que esteja bem enterrada sob o concreto nos alicerces de um
arranha-céu, ou debaixo de camadas e camadas de asfalto em algum lugar da
cidade.
... Vamos torcer que fique assim para
sempre!
Fim
Lembrando
que isto é uma licença poética sem qualquer fidelidade histórica!... Ou quase.
Nenhum comentário:
Postar um comentário