quinta-feira, 14 de maio de 2020

O REGRESSO DO MAGO.



Era noite em Roma e a luz acesa naquele apartamento indicava que haveria atividade literária pela madrugada.
No tapete próximo á um cesto de lixo repousavam bolas de papel amassado com fragmentos de poemas abortados. O poeta apoiava a testa na mão como num exercício de adivinhação tentando antever os versos que lhe escapavam totalmente e espiava a escuridão do céu por trás de uma cortina de veludo: quem sabe as estrofes perdidas não estariam nas dobras daquele tecido?
Era inútil; sentia-se possuído por uma ansiedade sem razão quando ouviu uma voz etérea: - Sem sono Murilo?
- Sim. As palavras represadas parecem travar uma luta para se entenderem antes de saírem!
Riso: - Tanta coisa para dizer que está sem inspiração?
- Ora Ismael, por acaso você nunca teve momentos em que os pincéis não obedeciam ao seu comando?
- Sim, claro. Se bem que ás vezes parecia-me que meus pincéis me comandavam e eu é que os obedecia.
Alguém chegou á porta: - Murilo?
- Ah,... Sim Maria?
- Tu estás á falar sozinho?
- Oh, - riso. – Apenas confabulando com meus botões. Vai deitar?
- Sim, estou um pouco cansada. Tu não vens?
- Ainda não. Vou teimar mais um pouco com a pena!
- Está bem, mas não se demore! – aproximou-se lhe beijando a testa, e ainda deu uma última espiada antes de seguir ao quarto.
- Tua esposa vai acabar te colocando num sanatório de doidos de tanto te ver falando sozinho!
Murilo fechou a porta e respondeu: - Eu não estou falando ás paredes. Você está aqui Ismael!
- Eu estou mesmo? Se eu me colocar diante do espelho, aparecerá meu reflexo? Vamos ver:... Não apareceu nada! Então se não sou um vampiro serei o quê Murilo?
- Pare com isto!
- Responda-me! Tua esposa sente que tem mais alguém na casa, mas não vê! Este edifício tem mais de trezentos anos, assim a Dona Maria da Saudade pensa que aqui há fantasmas e não está errada por que é exatamente isto que eu sou!
- Por favor, Ismael; não se ponha como um clichê numa trama de terror barato!
- Você quer saber mesmo o que é ser um clichê de terror? É ser fantasma em Roma e ter que conviver com mais de dois mil anos de história! Você sabia que neste mesmo prédio tem um fantasma no porão? Uma mulher que pensa estarmos ainda nos tempos da Renascença, e a julgar pelo jeito que me olha devia ser uma cortesã!
- Você está de galhofas!
- Pergunta então para tua esposa, que morre de medo de descer ao porão! Os restos mortais da cortesã estão enterrados no subsolo e ela nem sabe que morreu. E ainda há os fantasmas ilustres como os Bórgia, que assombram o Vaticano; Nero, que anda pela Via Appia com uma tocha na mão, perseguido por Agripina, sua descabelada mãe; e ainda um mais recente: Mussolini que ainda pensa ser o Duce e faz discursos que ninguém escuta,... Quero dizer, ninguém do mundo dos vivos, porque eu os escuto e posso lhe garantir que são insuportáveis! De vez em quando ele ainda me arrasta á procura por Clareta, sua amante, mas esta foi mais esperta e já se foi. Em Paris é pior ainda, porque há uma legião de guilhotinados na Revolução Francesa em busca de suas cabeças que pensam que eu sei á onde elas estão!
- Pare com este falatório Ismael, não vê que estou angustiado? Mesmo tendo poemas inteiros á mente, eu não consigo colocá-los no papel!
- E eu com isto?
Murilo se aborreceu: - Ora essa! Estou colocando minha angústia para você, e recebo este desdém?
- Pois eu digo o mesmo. Acabei de lhe expressar minha própria aflição e você fez ouvidos moucos! Ah sim; é o grande poeta Murilo Mendes em crise de inspiração buscando o bom e velho Ismael Nery como interlocutor ideal: o hóspede perfeito que não suja a louça e nem a roupa de cama, e é só chamar que ele atende prontamente!
 – O que está acontecendo Ismael? Você nunca falou assim comigo.
- Eu falei sim, muitas e muitas vezes durante esses 27 anos. Falei desta existência errática seguindo por corredores repletos de histórias engastadas em cada degrau de escada, umbral de porta, jardim, campo ou qualquer lugar por onde vidas se passaram. Falei dos muitos fantasmas que encontro, todos os dias, presos á própria existência, melhor dizer inexistência sem ter a consciência que sua vida terrena acabou; a diferença é que eu sei que morri e aqui não é mais o meu lugar! – suspiro: - Mesmo depois de tanto tempo, você ainda não se conformou com a minha morte.  Recordo-me do escândalo que fez no meu velório, tanto que o Pedro Nava queria te dar um “gardenal” para te acalmar!
- Não foi tanto escândalo, o Nava exagerou. Eu estava expressando minha dor pela perda de um grande amigo! – ergueu as mãos. – Como se conformar diante de tamanha injustiça do destino? Você era jovem, apenas 33 anos, forte, atlético e certamente Ismael Nery viria a ser um dos maiores e mais talentosos pintores que o Brasil conheceria. E isto ainda seria pouco porque você ganharia o mundo!
- Sim, isto poderia acontecer, mas nunca saberemos.
- Eu sabia! – respondeu. – Eu via o teu futuro tão claro como um dia de sol!
- Mas que bela lembrança! – falou Ismael. – Foi numa noite de lua após um dia ensolarado que nós entramos para a confraria dos magos, em Paris, lembra quem nos levou? Picasso, que depois ficou meio enciumado porque o mestre Duchamp falou que você era o discípulo mais promissor entre os iniciantes!
- Realmente ele ficou meio bicudo comigo uns tempos e,... Mas,... Ora essa, para quê lembrar-se disto? Não faço mais parte de nenhuma confraria de bruxos, aliás, hoje sou católico apostólico, esqueceu?  
- Então porque você, que se diz tão circunspeto na sua fé católica, conversa com um fantasma desde o dia 6 de abril de 1934? Não me parece atitude de um católico apostólico!
- Uma coisa não tem nada com a outra, Ismael.  Sua morte só me fez ver o quanto era equivocada minha participação naqueles rituais pagãos!
- Porque, Murilo?
- Porque a magia nos enganou ao não te resguardar da morte! 
- Eu estava tuberculoso, e o que você esperava da magia, uma ressurreição?
- Se quer saber Ismael: sim! Eu esperava que a magia tivesse força suficiente para reverter a sua doença ou te curar!
- Mas como isto não ocorreu, porque magia não é milagre e eu bati as botas, você a renegou e se converteu ao catolicismo mais fervoroso possível, mas continua á se utilizar desta mesma magia para me prender á terra, transformando-me num fantasma refém do seu desejo em ter minha companhia!
- Você está dizendo que te seguro ao meu lado por egoísmo Ismael? Evidente que não!
- Por que me mantém aqui então? – Murilo ficou sem resposta e Ismael prosseguiu: - Eu sei a razão: é porque lá no fundo você continua a ser o mesmo aprendiz de mago que não acreditava na existência de algo além do que há na terra! Você era ateu, e assim continuou!
- Que absurdo! Eu acredito em Cristo e no Evangelho!
- Mas não acredita na vida eterna que a fé cristã prega! É por isto que me mantém preso á este mundo através da magia por que tem medo que eu desapareça para sempre. Não seria esta a contradição que vem lhe afligindo há anos?
Murilo abaixou a cabeça e perguntou: - Isto é verdade. Está tão evidente assim?
- Não. Você dissimula bem para o público e até na sua poesia, mas não consegue fingir para si mesmo e daqui á pouco isto vai contaminar sua própria arte; vai ouvindo!
- Ah Ismael; entenda porque te seguro aqui!... Sinto-me perdido e solitário!
- Por favor, Murilo, você é um poeta como poucos, e se ás vezes as palavras não vêm á pena com facilidade é porque não é assim que funciona. Ou pensas que para um pintor não é deste mesmo modo também? Não é um guia que nos incorpora como num ritual de espiritismo, somos nós mesmos diante do desafio da arte!
Ele riu irônico e disse: - Puxa vida, Ismael, você é um gênio, e disse-me algo que nunca imaginei na vida! – falava arremedando-o. - Então, o que o meu guia sugere?
- Apesar do deboche embutido neste “gênio”, eu sugiro que você pare com estas suscetibilidades tolas se acostume com a solidão inerente á produção artística por que você é bem maior do que isto. E pense seriamente em retornar á confraria! Lá terá apoio.
- Como vou fazer isto? Eu não posso ser católico ao meio dia, e mago á meia noite! Lembre-se que “não se pode servir á dois senhores”!
- Pois então se lembre de que “a casa do Senhor tem muitas moradas”, e não está escrito em nenhum lugar que você precise ocupar apenas uma delas. E lembre-se também que para brasileiros como nós, comungar-se á missa ás seis da manhã e depois ir á cartomante á seis da tarde é a coisa mais normal do mundo! – riso. - Acho que a dicotomia faz parte da nossa cultura.
- Sempre o galhofeiro, mas faz sentido. – após um silêncio perscrutador, Murilo perguntou: - Você quer mesmo ir embora, é sério?
- Sim! Eu estou muito cansado desta existência sem essência. E mais uma noite ouvindo os discursos do Mussolini, acho que vou virar um poltergeist!
- Um o quê?
- Espírito zombeteiro como se diz no Brasil! E então?
Ele tomou coragem e disse: - Está bem, querido amigo Ismael Nery: se é isto que você quer, eu ficarei com muita saudade, mas continuarás comigo para sempre na memória e no coração,... A partir deste momento você está livre!
Após uns minutos, Murilo olhou em torno e era tudo silêncio. – Ismael? – ainda chamou uma vez, sem resposta. Então ele chorou.
Maria ouviu e foi acudi-lo: - Ai meu Jesus, o que aconteceu, por que estás a chorar?
- Nada não,... Venha aqui e me abrace, sem perguntas.
Ela o abraçou enquanto ele chorava copiosamente.
A partida de Ismael foi um duro golpe para Murilo, mas suas palavras ajudaram-no a repensar sua fé. Nos dias e meses seguintes, a rotina da missa ganhava contornos mais místicos como se reencontrasse seu amigo no recinto sagrado do tempo.
Num desses retornos da missa, Murilo sentou-se adiante de sua escrivaninha e sua mão, parafraseando Ismael, pareceu tomar o comando das palavras que fluíram numa apaixonada torrente de versos.
 Era o meio da tarde e a ideia de uma nova obra começava a tomar corpo. Sentia-se exausto, mas feliz. No entanto, algo faltava. De olhos fechados Murilo se preparou para uma decisão, e então se levantou seguindo ao porão do apartamento em busca de mais um resgate. No recinto iluminado por uma lâmpada amarelada, chegou a sentir a presença da cortesã citada pelo amigo enquanto apanhava uma canastra escondida atrás de uma fileira de livros. Abriu-a com cerimônia, e lá estava seu antigo manto de mago embrulhado num papel de seda. Ao lado, o manto de seu amigo Ismael, ao qual Murilo tocou com saudade e gratidão.
Maria estava lendo uma revista quando Murilo se colocou á porta. Ela o olhou: - Escreveste muito?
Um tanto sem jeito, ele respondeu: - Sim!... Acredito que o jejum de versos acabou-se! Mas eu preciso,...
Ela o cortou: - Que maravilha que tua inspiração está de volta! E que estranho manto preto é este que trazes ao braço?
- Ah,... É apenas um velho ponche que vou mandar á lavanderia!
- Ótimo! Mas o que tu ias me falar e te interrompi?
Ele achou mais prudente prepará-la antes de revelar sua incursão na magia, pois ela poderia ficar assustada. E respondeu: – Eu ia dizer que preciso encontrar-me com meu editor em Paris amanhã de manhã, e quero viajar ainda hoje.
- Quer que eu o acompanhe?
- Não há necessidade, Maria, eu volto amanhã mesmo.
- Está bem, Vou ajudá-lo á fazer a mala. E se encontrar Picasso por lá, diga á aquele bruxo para vir nos visitar! – piscou um olho e seguiu na direção do quarto, deixando Murilo com a impressão que, de algum modo, ela já sabia de tudo! Mas pensaria nisto depois.

Já em Paris, perto da meia noite, Murilo seguia num táxi por uma rua chamada “Rue de Bagnolet”, e pensava: - Quem supõe que reuniões de magos acontecem em calabouços de castelos sombrios ou mosteiros milenares abandonados não sabe de nada, pois os encontros acontecem em lugares bem inusitados para despistar enxeridos!
O carro parou diante um prédio comercial onde se lia: “Société Des Anciens Établissements Malfille”. Nada menos que um concessionário dos automóveis franceses Simca.
Murilo seguiu pelo salão de exposição dos carros novos e depois pela oficina de reparos até chegar á uma porta de madeira. Ele bateu com um toque, que era uma senha, e a porta se abriu. Depois desceu uma escada chegando á um salão no subsolo, e lá estava Picasso, que veio lhe receber junto ao conterrâneo Jorge Amado. Entre outros artistas estavam, Neruda, Capote, Miró, Hitchcock, Pasolini, De Sica, Fellini e Giulietta, e as atrizes Gloria Swanson e Hedy Lamarr. 
Naquela noite apresentariam um novo membro à confraria: um jovem ator escocês chamado Sean Connery.  A sessão seria presidida pelo novo mestre, ou mestra, Simone de Beauvoir, que falou: - Amis, maintenant notre confrarie est complet. Nous pouvons faire la reunion![1]
Murilo sorriu, se sentindo em casa.

Fim

É uma licença poética com muita admiração.



[1] Amigos, agora nossa confraria está completa. Nós podemos iniciar a reunião!

3 comentários:

  1. Perfeito.Licença poética que nos coloca de corpo e alma a vivenciar cada passagem descrita e a ganhar conhecimento pelo rico conteúdo. Parabéns!

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  2. Muito bom, Ramon! Parabéns!👏👏👏

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