quinta-feira, 21 de maio de 2020

O JUIZ QUE VEIO DE FORA - Conto em dois capítulos.



Existiram lendas sobre o misterioso juiz que deu nome ao município de Juiz de Fora - MG. Chegou-se a supor que tal magistrado nunca teria existido porque nos tempos coloniais, juízes que vinham cuidar de litígios e demais questões jurídicas eram designados pela Coroa Portuguesa e tinham obrigatoriamente que vir de fora. Portanto, eram todos “juízes de fora”.
Contudo, haveria alguns relatos do Padre André João Antonil, um viajante historiador que percorreu a Zona da Mata mineira entre 1705 e 1708, que falam de um magistrado que possuiria presença tal que toda a região que hoje abrange a parte central da cidade, do sopé do Morro do Imperador ao antigo “Caminho Novo” (estrada aberta para escoar o ouro de Minas Gerais até o Rio de Janeiro em 1700) ficou conhecida como “Fazenda do Juiz de Fora”.
Haveria um texto apócrifo datado de 1706, que relata a chegada de uma carruagem trazendo um magistrado á uma fazenda ás margens do Caminho Novo apenas de passagem, pois seu objetivo seria chegar á Vila Rica, então capital da “Capitania das Minas Geraes” onde exerceria um cargo importantíssimo. O referido magistrado seria oriundo de terras no Leste da Europa e se chamava Hantau Kelkaj Jeroj. Relatos o descrevem como um homem com alto poder de persuasão; fascinante e arrebatador que chegou á nobreza portuguesa através do casamento com Dona Catarina Maria da Gama Mendonça e Silva Costa, mesmo a contragosto do seu pai, Duque da Beira Alta.  Em certo ponto o relato fala: (...) ”Alguns acreditavam ser aquele homem um discípulo do maligno, uma vez que todos os seus inimigos tombam doentes ou se jogam em abismos e rios” (...) “e quantas mulheres não se entregam á ele para depois caírem num estado de loucura tal que são deixava ás famílias outra saída senão trancafiá-las em conventos ou sanatórios.” (...) A saber: seu sogro cometeu suicídio saltando da torre de uma igreja, e sua esposa foi mandada á um convento na Serra da Estrela após correr nua pelas ruas de Lisboa proferindo blasfêmias. Na verdade o convento era um sanatório para nobres dementes onde Dona Catarina também cometeu suicídio se atirando á um poço! Prossegue o relato: (...) “Diante disto a Corte decidiu enviá-lo á colônia, no Além Mar, num degredo disfarçado.”.
Porém, ele foi impedido de chegar á Vila Rica (Ouro Preto) por “forças misteriosas”; uma espécie de “cinturão de fé” formado por diversas igrejas administradas por irmandades religiosas o teriam impedido de chegar á Vila Rica. Há um trecho onde se lê: “A carruagem não pode prosseguir, pois os cavalos se recusaram a andar, e por mais que tentasse seguir á pé, o próprio magistrado era impedido, caindo de joelhos sem forças e sem ar. Os escravos que o acompanhavam então decidiram retornar á fazenda ás margens do rio Paraibuna”.
Nos dias, semanas e meses que se seguiram, o magistrado teria tentado chegar á Vila Rica diversas vezes, buscando rotas alternativas. Consta que na última tentativa, passando por um logradouro de nome Santa Rosa, a carruagem rolou um precipício matando os escravos que a acompanhavam. Eis o trecho da narrativa: “foi um episódio medonho. Ao galgar a estradinha em aclive, os cavalos pareciam ter enlouquecido e empinaram sobre as patas traseiras para depois se projetarem ao abismo levando a carruagem juntamente com outros cavalos carregados com alforjes. Da comitiva de sete escravos, salvou-se apenas um e o magistrado. Este escravo o amparou até uma roça, para depois cair morto aos pés de um cruzeiro. O magistrado retornou á fazenda ás margens do Paraibuna onde se recuperou dos ferimentos. Quanto aos escravos e animais mortos, foram enterrados todos juntos em vala coletiva á beira da estrada”. Dizem que o local é assombrado até hoje!
A notícia deste episódio teria chegado ao Rio de Janeiro e á Lisboa causando apreensão, pois o magistrado não pôde assumir seu cargo, e nem o governador geral da colônia e tampouco o rei de Portugal pareciam dispostos á tê-lo novamente na Corte. Então se decidiu que: (...) “dada ás peculiaridades desta situação, o Conselho da Corte deliberou que o magistrado deverá permanecer na roçaria denominada Santo Antonio do Paraibuna exercendo a função de juiz de fora, porém em caráter permanente”.  Assim o logradouro passou a ostentar uma condição única na Capitania das Minas Geraes, pois possuía um “juiz de fora” permanente. Isto teria sido encarado pela população das cercanias como uma distinção e a fazenda passou a ser reconhecida como “Fazenda do Juiz de Fora”.
Tudo parecia ter se resolvido da maneira satisfatória não fosse á repetição dos episódios ocorridos em Lisboa, com desafetos do magistrado falecendo subitamente com doenças misteriosas e suicídios. Escravas e mulheres livres se entregavam á ele: (...) “de uma maneira voluntariosa e indecente” (...) Como frisa uma carta, para depois enlouquecerem e saltarem nas águas do Rio Paraibuna. Um trecho dos “Autos de Devassa” do século XVIII fala de um homem atormentado e recluso na fazenda, aparentemente ocupando o cargo de juiz apenas pró-forma, porque há relatos de juízes de fora atuando na região. Outro relato ainda mais inquietante afirma que em 1707, o magistrado teria se evadido, indo viver numa choupana num lugar conhecido por “Morro da Boiada” há cerca de vinte léguas da fazenda: um pequeno aglomerado de casas com uma capela onde permanecia também recluso. Alguns anos depois, possivelmente 1710, o magistrado retornou á fazenda onde se enclausurou novamente. Nunca mais se ouviu falar no Morro da Boiada, que se situaria próximo á um marco de sesmaria ao largo do Caminho Novo, mas não foram encontrados quaisquer vestígios deste marco e nem da real existência daquele povoado. O que existe é um relato vago nos “Autos” datado de 1711 sobre uma espécie de suicídio coletivo nas cercanias da “Fazenda do Juiz de Fora”, mas tudo extremamente impreciso.
Contudo, aquele ano de 1711 marcaria a chegada de outro magistrado ao logradouro de Santo Antônio do Paraibuna, enviado pela Coroa portuguesa para atuar no cargo de “juiz de fora”. Ele se chamava Luiz de Souza Fortes Bustamante e Sá, e se alojou á então “Fazenda do Juiz de Fora”. Á princípio, nada além de mais um juiz a desempenhar o cargo de uma maneira, digamos, interina, uma vez que Hantau Kelkaj Jeroj apenas o ocupava formalmente.
Contudo, Bustamante não chegou ao logradouro de Santo Antônio do Paraibuna apenas para exercer o cargo, mas para uma missão especial: resolver de uma vez por todas a questão do juiz recluso, pois as notícias de suicídios e mortes violentas sem explicação na região do “juiz de fora” estaria causando embaraços tanto á Corte como ao governo da capitania.
Haveria uma carta, guardada nos “Arquivos Ultramarinos” em Lisboa, insinuando que Bustamante seria um estudioso do ocultismo que chegou a ser acusado de práticas de bruxaria em Portugal pela Inquisição. Um pequeno anexo rascunhado á lápis num dos documentos dos “Autos da Devassa”, do mesmo ano de 1711, vai mais longe e o define como (...) “um Mago da Confraria de Paris” (...) sem especificar o que isto significaria.

É importante frisar que todos estes relatos não são reconhecidos como testemunho histórico confiável, e sua autenticidade são totalmente questionados.

Ele chegou á “Fazenda do Juiz de Fora” e foi imediatamente á procura por Hantau, indo encontrá-lo vivendo em um barracão de sapê e palha á uma légua da fazenda, guardado por dois cães ferozes. Bustamante passou pelos animais, que fugiram para a mata ao vê-lo. Era uma choupana imunda e fétida com restos de comida, dejetos e ratos, e ao ouvir barulho de gente entrando, Hantau perguntou: - Quem se atreve á entrar?
Bustamante entrou no cubículo sem janelas que servia de quarto e respondeu ao homem vestido de trapos e tendo longos cabelos e barba: - Meu nome é Luiz Bustamante e Sá.
- Ah sim, fui informado da vinda de mais um juizinho de fora! Não te falaram que não gosto que me importunem porque sou o demônio?
- Sim, falaram-me isto. Mas não temo o demônio dos livros santos, e sim aquele que habita nossa própria existência.
Hantau ficou surpreso: - O que tu queres dizer com isto?
- Que vim aqui para ajudá-lo a se livrar do que o atormenta.
Ele riu mostrando seus dentes estragados por trás da barba ensebada ao responder: - Com os diabos, que espécie de louco é este que a Coroa enviou agora?... Saia! Vá cuidar das pendengas jurídicas desses infelizes que vivem aqui e me deixe em paz!
Bustamante chegou perto e o encarou: - Eu o deixarei em paz assim que terminar minha missão. Não sou apenas um magistrado enviado á este lugar para cuidar de assuntos jurídicos. – se aproximou mais, fitando-o com seus olhos castanhos, quase vermelhos: - Sou discípulo da “Confraria de Paris”. Sabes o que é isto?
Assustado, Hantau se levantou e respondeu acuado num canto: - Então é isto? – riso: - Mandaram um bruxo para me matar? – abriu a camisa mostrando o peito: - Então o faça logo, ou desapareça da minha frente!
- Tu bem sabes que não é desta forma que te livrarás da maldição que atormenta a tua vida, senhor Hantau.
- Tu é que não tens ideia do tipo de maldição que estarás enfrentando! Pensas que nunca tentei me livrar deste fardo, ou mesmo que nunca atentei contra minha vida para assim obter a paz?... Por favor, meritíssimo juiz Bustamante: pense bem antes de vir oferecer-me aquilo que não tens!
Ele se afastou e respondeu: - Só saberei se possuo ou não os atributos para ajudá-lo se me contares a tua história! – Hantau olhou-o desconfiado quando concluiu: - Vamos; conte-me como isto começou?
- Então te prepara porque a história é longa!...

CONTINUA

2 comentários:

  1. Gostei. Sem temer então o demônio vamos aguardar o resultado.

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  2. Gostei. Sem temer então o demônio vamos aguardar o resultado.

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