sexta-feira, 19 de junho de 2020

O PRISIONEIRO. - CONTO.



- Eu vi mãe! – falava a garota. – Ele fica preso no porão da casa dela, eu vi por uma greta da janela!
- Minha filha, espiar a vida dos outros é uma coisa muito feia!
- Mas, mãe, eu não estou inventando, a dona Dolores tem um menino preso num quartinho no porão! – então chegou Alberto, pai da garota, que perguntou: - Como é que é Camila? Explique isto!
- Eu estava no quintal e ouvi um choro muito baixinho vindo da casa dela, então eu pulei o muro e ouvi ela dizendo: “Para com isso seu capeta!”. Aí eu espiei pela janela e vi a dona Dolores colocando um prato de comida por uma abertura e uma mão de criança apanhou!... Não to inventando pai!
- Alberto; a Dolores é meio estranha e dizem que é uma feiticeira!
- Eu sei que falam isto Marli. – olhou a filha: - Você jura que não está inventando Camila, isto é muito sério!
- Eu filmei com meu celular! – Alberto e Marli viram a cena da porta fechada com uma abertura em baixo de onde seguiu uma pequena mão colocando um prato vazio para fora. – espantado, ele falou: - Desde que ficou viúva, Dolores vem tendo um comportamento estranho e isolado, mas chegar a ponto de manter uma criança prisioneira no porão da casa, por quê? – Camila perguntou: - O que a gente vai fazer pai? – ele respondeu: - Vamos fazer uma denúncia!
A campainha tocou e Dolores atendeu; eram policiais e uma assistente social da Defensoria do Menor. – Senhora Dolores de Miranda Kiesner, nós viemos averiguar denúncia de cárcere privado de um menor. – indignada ela se defendeu: - Mas que absurdo! Essa gente não tem o que fazer e fica inventando coisas! – a assistente falou: - Por favor, senhora; não dificulte as coisas. Nós acabamos de ver que no porão da sua casa existe um cômodo com uma porta que tem uma abertura em baixo aonde vimos a mão de criança acenando por socorro! – sob os protestos de Dolores os policiais seguiram ao porão e ouviram um choro desesperado por trás de uma grossa porta de madeira maciça. Ao arrombarem descobriram um menino com feições indígenas encolhido num canto, e nu.
Dolores foi presa em flagrante e levada á delegacia de Conselheiro Lafayette; mas devido ao perigo de um linchamento, acharam melhor transferi-la para um presídio feminino em Belo Horizonte.
- Não é o que parece! – exaltava-se Dolores na sala de visitas aos presos: - Isto é um grande erro, vai acontecer tudo de novo!
O defensor público que a acompanhava perguntou: - Senhora; o que vai acontecer de novo?
- As tragédias e as mortes!... Meu deus do céu, ele não pode ficar solto, vocês não entendem, é um demônio que vai fazer de novo! – avançou para cima do defensor segurando-lhe pelo colarinho: - Vocês têm que prendê-lo novamente! – o homem se assustou: - Acalme-se senhora,... Assim eu não posso ajudá-la! – ela o agarrou mais ainda: - Não sou eu que preciso de ajuda, mas vai ser todo mundo se aquele demônio ficar solto! – entraram as carcereiras e a dominaram, levando-a de volta á cela. Ainda assustado o defensor ajeitava a gravata enquanto falava: - Como pensamos eu e o psiquiatra: ela nunca se recuperou do acidente que matou o marido. Vou solicitar sua transferência á uma clinica.
Dolores foi levada e tiveram que sedá-la para que se acalmasse.
Já na clínica, atada á uma cama ela lamentava: -... Isto é um erro,... Vocês não sabem de nada!
Dias depois no abrigo de menores da cidade de Santos Dumont o médico conferia o prontuário do menino: - Ele apresenta quadro de subnutrição. A mulher só lhe dava mingau de farinha de milho e água.
Uma enfermeira comentou: - Mas agora está se alimentando bem. É uma draga doutor: tudo que colocamos no prato ele come! Só não fala, mas gosta muito de ficar na janela.
O médico completou: - Estimo sua idade em dez anos. Não entendo o que se passava na cabeça daquela mulher ao manter esse garoto preso em condições tão desumanas! – a assistente fez o sinal da cruz ao dizer: - Dizem que ela é uma macumbeira que fazia uns rituais esquisitos em volta da casa fumando cachimbo!
- Não acredito em bruxas, mas em pessoas desequilibradas, que precisam de tratamento psiquiátrico! – o abrigo ficava próximo á rodovia BR-040 e foi possível ouvir o eco de um silvo estridente seguido por barulho de um acidente. – o médico reclamou: - Mais um! Quando é que vão duplicar esta estrada?
 No dia seguinte um automóvel entrava na rodovia BR 040 á altura de Lafayette. Era Marli e Camila: - Minha filha. Largue um pouco esse celular, que coisa! – ela respondeu: - Vou só enviar uma mensagem á Gina! – ligou a gravação de voz. – Estou ligando para,... – então ouviram um assobio agudo e intenso que fez Marli perder a direção e colidir violentamente numa árvore.
Na clínica, Dolores estava atada á uma camisa de força enquanto uma enfermeira á examinava. Parecia dopada e falou: - Moça,... Estou toda suja,... Eu queria tomar banho. – a enfermeira julgou que ela estivesse medicada e começou a desatar as fivelas da camisa. Quando se virou, Dolores apanhou uma cadeira e a golpeou.
Sete dias depois, Alberto estava no cemitério de Lafayette diante os túmulos de Marli e Camila. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar e tinha a barba por fazer. Trazia um jornal com notícia de um acidente com um van escolar na BR-040 que matou todos os ocupantes e alertava para o inexplicável aumento em 78% dos acidentes na via ás últimas semanas.
Então viu uma figura escondida atrás de um túmulo. Era Dolores, que estava com o um boné e o jaleco da enfermeira, e acariciava a foto de seu marido João no sepulcro quando foi segura fortemente pelo braço e teve sua boca tapada. Era Alberto que e a encarou: - Então é aqui que você veio se esconder!
 - Isso mesmo, vai me denunciar de novo? Eu sei que foi você!
 - Não tenho tempo para explicações; eu perdi o que mais amava na vida!... Ouça isto! – mostrou seu celular com uma mensagem de voz:... Minha filha; largue um pouco esse celular, que coisa! – Vou só enviar uma mensagem á Gina! Estou ligando para,... E se ouviu um assobio semelhante á turbina de um jato e o estrondo da batida. - Foi uma colega de Camila que me enviou. Você sabe o que está acontecendo, não é Dolores? - apanhou o jornal: - Isto começou depois que você foi presa, e lembro-me bem de que quando seu marido morreu e você afirmava terem ouvido um assobio estridente que fez João provocar o acidente!
- Sim, nós estávamos na estrada quando ouvirmos um assobio que quase arrebentou nossos ouvidos e fez João perder direção! O caminhão despencou no abismo e fui jogada para fora, e foi aí que vi um pássaro enorme pousando á beira da estrada, que se transformou naquele menino! No hospital, me convenceram que foi uma alucinação,...
 Ele a cortou: - Isso é loucura!
- Não Alberto; o pior é que não é! Lembra que logo depois ocorreu um aumento de acidentes sem explicação na BR040, como agora, que acabaram tão de repente como começaram?
- Sim!... O que você está querendo dizer?
- Que acabaram por que eu consegui capturar o monstrinho e o prendi no porão da minha casa. E estava tudo bem até sua filha ir xeretar no meu quintal e você me denunciar!
Ele a segurou pelo braço: - Minha filha e minha mulher estão mortas e se fui culpado por isto e pelas mortes que estão acontecendo agora, eu preciso saber!
Dolores abaixou a cabeça e falou: - Desculpe. Está bem; vou dizer o que sei. – ela contou que depois do acidente que matou João, ficou muito deprimida e seguiu á casa de parentes no Rio Grande do Sul, e lá encontrou Jacira, uma índia, que lhe falou sobre o Maty-Taperê, uma variação maléfica do Saci-Pererê, que se refugiava em aldeias abandonadas e se transformava num enorme pássaro que fazia com que viajantes se perdessem nas estradas com seu grito, que parecia um assobio. Dolores ficou impressionada e contou sua experiência á Jacira e perguntou o que deveria fazer para destruí-lo. A índia disse que era impossível, mas poderia capturá-lo usando um cachimbo de erva beladona como chamariz. E concluiu: - Ele volta á forma humana e se aproxima pedido o cachimbo. Depois de aprisionado, é preciso alimentá-lo e sempre lhe dar o cachimbo de beladona!
 Incrédulo, Alberto perguntou: - Que absurdo! Esta desgraça toda se deve á um Saci-Pererê?
– Sim! Sacis não são apenas duendes da floresta, brincalhões e fofos, também podem ser entidades maléficas como este, que nos séculos passados desorientava viajantes á pé ou em lombo de burro, mas agora desorienta motoristas que rodam á mais de cem por hora! Ele se acostumou com as rodovias e daqui a pouco pode se acostumar com cidades cheias de prédios abandonados onde poderá se esconder e depois com aeroportos! Dá pra imaginar o caos? E pouco me importa se você acha que sou uma louca, por que eu vou capturá-lo novamente!
- Como você vai fazer isto Dolores?
- Vou ao abrigo de menores e darei um jeito de atraí-lo com o cachimbo de beladona.
 – Não vai adiantar. Ele sumiu e pensam que você o sequestrou!
- Então vou tentar do jeito que fiz antes, dando voltas em torno da minha casa fumando o cachimbo e simulando uma caminhada. Ele vai sentir o cheiro e pousar.
- Você não vai poder fazer isto porque sua casa foi vandalizada e está vigiada!... Mas eu tenho uma ideia: vamos para a BR-040 no trecho que estão acontecendo maioria dos acidentes próximo á Lafayette. Esta coisa deve estar por lá!
- Você acredita em mim Alberto?
- Eu vou acreditar em qualquer coisa que ponha fim á isto! Vamos logo!
Os dois seguiam no carro de e a estrada estava vazia.
- Eu pensei que se capturava Saci com peneira nos rodamoinhos e o prendia numa garrafa.
- Nós estamos lidando com uma entidade maligna das tradições indígenas que difere da lenda iorubá da criança Saci negra, apenas travessa.
– Será que só existe este Maty-Taperê ou há outros?
– Vamos torcer para ser só este!... Pare o carro, eu vou caminhar a pé pela estrada para atraí-lo.
Dolores saiu acendendo o cachimbo e dando baforadas enquanto andava olhando para cima. Alberto a seguia devagar de carro.
Depois de trinta minutos de caminhada sob o sol, Dolores parou se perguntou: – Á onde estará este maldito?
Alberto parou o carro e saiu também olhando para o céu, quando avistaram uma Kombi vindo pela estrada ao mesmo instante que ecoou um zumbido como um avião a jato em decolagem, tão estridente que fez Alberto e Dolores taparem os ouvidos. Ele se agachou no chão, e era como se não soubesse mais onde estava enquanto ela andava desorientada na pista. A Kombi vinha em alta velocidade e atropelou Dolores, atirando-a ao matagal á beira da estrada, para depois seguir em direção á uma carreta no sentido contrário, também desorientada, e bateram violentamente. A carreta passou por Alberto a toda velocidade, quase batendo no seu carro, seguindo até colidir frontalmente com outro caminhão á muitos metros, causando uma explosão.
Em instantes o zumbido sumiu e Alberto se levantou. Avistou os veículos em chamas com suas cargas espalhadas na pista e a Kombi totalmente destruída junto ao corpo do motorista decapitado; era uma visão medonha! Então viu Dolores caída no mato e correu para acudi-la. Muito ferida ela falou. – Foi,... Foi muito pior que antes... Ele está muito forte.
- Vou levá-la ao hospital! – preparava-se para carregá-la, mas ela o impediu: - Não!... – saía sangue pela sua boca. – Você sabe o que tem que fazer,... Capture este monstro!... Acabe com isto,... – ela terminou de falar e morreu.
Ele ficou em pânico uns instantes. Olhou para o céu e não viu a ave; então procurou o cachimbo, achando-o no acostamento ainda aceso, e o colocou na boca se esforçando para produzir mais e mais fumaça. Andou pela estrada até avistar a silhueta do pássaro descrevendo círculos no seu voo no alto, para então começar a baixar e pousar no acostamento. Era imenso como uma condor, e estava apoiado numa só perna quando se iniciou sua transmutação na figura de uma criança indígena nua, que o fitava Alberto com olhos vermelhos e caminhou na sua direção. Ele tirou o cachimbo da boca e o ofereceu: - É isto que você quer?... Vem pegar! – o menino vinha com suas mãos para frente e Alberto o conduziu até seu carro. Abriu a porta traseira e entrou de costas. Quando o Maty-Taperê entrou e sentou no banco Alberto lhe entregou o cachimbo, saiu pela outra porta e rapidamente entrou na direção do carro ligando o motor e arrancando com toda a velocidade.
Uma semana depois Alberto acabava de preparar um prato de mingau de farinha de milho. Colocou-o numa bandeja junto á um copo d‘água e ao cachimbo de beladona. Havia um jornal na bancada da pia onde se lia: “Epidemia de acidentes da BR-040 terminou. Autoridades não encontram explicação.” Ele seguiu á um corredor, abriu uma porta e desceu alguns degraus chegando á garagem da casa. Havia uma porta de madeira com uma abertura em baixo. Alberto passou a bandeja com o mingau e a água e acendeu o cachimbo, mas antes de passá-lo ao Maty-Taperê, deu longas baforadas apenas pensando naquela rotina que o acompanharia até quando pudesse.
Enquanto isto na cidade de Juiz de Fora, num terraço, uma mulher olhava para o céu pensando ter ouvido um assobio.
Fim.

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