-
Eu vi mãe! – falava a garota. – Ele fica preso no porão da casa dela, eu vi por
uma greta da janela!
-
Minha filha, espiar a vida dos outros é uma coisa muito feia!
-
Mas, mãe, eu não estou inventando, a dona Dolores tem um menino preso num
quartinho no porão! – então chegou Alberto, pai da garota, que perguntou: -
Como é que é Camila? Explique isto!
-
Eu estava no quintal e ouvi um choro muito baixinho vindo da casa dela, então
eu pulei o muro e ouvi ela dizendo: “Para com isso seu capeta!”. Aí eu espiei
pela janela e vi a dona Dolores colocando um prato de comida por uma abertura e
uma mão de criança apanhou!... Não to inventando pai!
-
Alberto; a Dolores é meio estranha e dizem que é uma feiticeira!
-
Eu sei que falam isto Marli. – olhou a filha: - Você jura que não está
inventando Camila, isto é muito sério!
-
Eu filmei com meu celular! – Alberto e Marli viram a cena da porta fechada com
uma abertura em baixo de onde seguiu uma pequena mão colocando um prato vazio
para fora. – espantado, ele falou: - Desde que ficou viúva, Dolores vem tendo
um comportamento estranho e isolado, mas chegar a ponto de manter uma criança
prisioneira no porão da casa, por quê? – Camila perguntou: - O que a gente vai
fazer pai? – ele respondeu: - Vamos fazer uma denúncia!
A
campainha tocou e Dolores atendeu; eram policiais e uma assistente social da
Defensoria do Menor. – Senhora Dolores de Miranda Kiesner, nós viemos averiguar
denúncia de cárcere privado de um menor. – indignada ela se defendeu: - Mas que
absurdo! Essa gente não tem o que fazer e fica inventando coisas! – a
assistente falou: - Por favor, senhora; não dificulte as coisas. Nós acabamos
de ver que no porão da sua casa existe um cômodo com uma porta que tem uma
abertura em baixo aonde vimos a mão de criança acenando por socorro! – sob os
protestos de Dolores os policiais seguiram ao porão e ouviram um choro
desesperado por trás de uma grossa porta de madeira maciça. Ao arrombarem descobriram
um menino com feições indígenas encolhido num canto, e nu.
Dolores
foi presa em flagrante e levada á delegacia de Conselheiro Lafayette; mas
devido ao perigo de um linchamento, acharam melhor transferi-la para um
presídio feminino em Belo Horizonte.
-
Não é o que parece! – exaltava-se Dolores na sala de visitas aos presos: - Isto
é um grande erro, vai acontecer tudo de novo!
O
defensor público que a acompanhava perguntou: - Senhora; o que vai acontecer de
novo?
-
As tragédias e as mortes!... Meu deus do céu, ele não pode ficar solto, vocês
não entendem, é um demônio que vai fazer de novo! – avançou para cima do
defensor segurando-lhe pelo colarinho: - Vocês têm que prendê-lo novamente! – o
homem se assustou: - Acalme-se senhora,... Assim eu não posso ajudá-la! – ela o
agarrou mais ainda: - Não sou eu que preciso de ajuda, mas vai ser todo mundo
se aquele demônio ficar solto! – entraram as carcereiras e a dominaram,
levando-a de volta á cela. Ainda assustado o defensor ajeitava a gravata enquanto
falava: - Como pensamos eu e o psiquiatra: ela nunca se recuperou do acidente
que matou o marido. Vou solicitar sua transferência á uma clinica.
Dolores
foi levada e tiveram que sedá-la para que se acalmasse.
Já
na clínica, atada á uma cama ela lamentava: -... Isto é um erro,... Vocês não
sabem de nada!
Dias
depois no abrigo de menores da cidade de Santos Dumont o médico conferia o
prontuário do menino: - Ele apresenta quadro de subnutrição. A mulher só lhe
dava mingau de farinha de milho e água.
Uma
enfermeira comentou: - Mas agora está se alimentando bem. É uma draga doutor:
tudo que colocamos no prato ele come! Só não fala, mas gosta muito de ficar na
janela.
O
médico completou: - Estimo sua idade em dez anos. Não entendo o que se passava
na cabeça daquela mulher ao manter esse garoto preso em condições tão desumanas!
– a assistente fez o sinal da cruz ao dizer: - Dizem que ela é uma macumbeira
que fazia uns rituais esquisitos em volta da casa fumando cachimbo!
-
Não acredito em bruxas, mas em pessoas desequilibradas, que precisam de
tratamento psiquiátrico! – o abrigo ficava próximo á rodovia BR-040 e foi
possível ouvir o eco de um silvo estridente seguido por barulho de um acidente.
– o médico reclamou: - Mais um! Quando é que vão duplicar esta estrada?
No dia seguinte um automóvel entrava na
rodovia BR 040 á altura de Lafayette. Era Marli e Camila: - Minha filha. Largue
um pouco esse celular, que coisa! – ela respondeu: - Vou só enviar uma mensagem
á Gina! – ligou a gravação de voz. – Estou ligando para,... – então ouviram um
assobio agudo e intenso que fez Marli perder a direção e colidir violentamente
numa árvore.
Na
clínica, Dolores estava atada á uma camisa de força enquanto uma enfermeira á
examinava. Parecia dopada e falou: - Moça,... Estou toda suja,... Eu queria
tomar banho. – a enfermeira julgou que ela estivesse medicada e começou a
desatar as fivelas da camisa. Quando se virou, Dolores apanhou uma cadeira e a
golpeou.
Sete
dias depois, Alberto estava no cemitério de Lafayette diante os túmulos de
Marli e Camila. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar e tinha a barba por
fazer. Trazia um jornal com notícia de um acidente com um van escolar na BR-040
que matou todos os ocupantes e alertava para o inexplicável aumento em 78% dos
acidentes na via ás últimas semanas.
Então
viu uma figura escondida atrás de um túmulo. Era Dolores, que estava com o um
boné e o jaleco da enfermeira, e acariciava a foto de seu marido João no
sepulcro quando foi segura fortemente pelo braço e teve sua boca tapada. Era
Alberto que e a encarou: - Então é aqui que você veio se esconder!
- Isso mesmo, vai me denunciar de novo? Eu sei
que foi você!
- Não tenho tempo para explicações; eu perdi o
que mais amava na vida!... Ouça isto! – mostrou seu celular com uma mensagem de
voz:... Minha filha; largue um pouco esse
celular, que coisa! – Vou só enviar uma mensagem á Gina! Estou ligando para,...
E se ouviu um assobio semelhante á turbina de um jato e o estrondo da batida. -
Foi uma colega de Camila que me enviou. Você sabe o que está acontecendo, não é
Dolores? - apanhou o jornal: - Isto começou depois que você foi presa, e
lembro-me bem de que quando seu marido morreu e você afirmava terem ouvido um
assobio estridente que fez João provocar o acidente!
-
Sim, nós estávamos na estrada quando ouvirmos um assobio que quase arrebentou
nossos ouvidos e fez João perder direção! O caminhão despencou no abismo e fui
jogada para fora, e foi aí que vi um pássaro enorme pousando á beira da estrada,
que se transformou naquele menino! No hospital, me convenceram que foi uma
alucinação,...
Ele a cortou: - Isso é loucura!
-
Não Alberto; o pior é que não é! Lembra que logo depois ocorreu um aumento de
acidentes sem explicação na BR040, como agora, que acabaram tão de repente como
começaram?
-
Sim!... O que você está querendo dizer?
-
Que acabaram por que eu consegui capturar o monstrinho e o prendi no porão da
minha casa. E estava tudo bem até sua filha ir xeretar no meu quintal e você me
denunciar!
Ele
a segurou pelo braço: - Minha filha e minha mulher estão mortas e se fui
culpado por isto e pelas mortes que estão acontecendo agora, eu preciso saber!
Dolores
abaixou a cabeça e falou: - Desculpe. Está bem; vou dizer o que sei. – ela
contou que depois do acidente que matou João, ficou muito deprimida e seguiu á
casa de parentes no Rio Grande do Sul, e lá encontrou Jacira, uma índia, que
lhe falou sobre o Maty-Taperê, uma variação maléfica do Saci-Pererê, que se
refugiava em aldeias abandonadas e se transformava num enorme pássaro que fazia
com que viajantes se perdessem nas estradas com seu grito, que parecia um
assobio. Dolores ficou impressionada e contou sua experiência á Jacira e
perguntou o que deveria fazer para destruí-lo. A índia disse que era impossível,
mas poderia capturá-lo usando um cachimbo de erva beladona como chamariz. E
concluiu: - Ele volta á forma humana e se aproxima pedido o cachimbo. Depois de
aprisionado, é preciso alimentá-lo e sempre lhe dar o cachimbo de beladona!
Incrédulo, Alberto perguntou: - Que absurdo! Esta
desgraça toda se deve á um Saci-Pererê?
–
Sim! Sacis não são apenas duendes da floresta, brincalhões e fofos, também
podem ser entidades maléficas como este, que nos séculos passados desorientava
viajantes á pé ou em lombo de burro, mas agora desorienta motoristas que rodam
á mais de cem por hora! Ele se acostumou com as rodovias e daqui a pouco pode
se acostumar com cidades cheias de prédios abandonados onde poderá se esconder
e depois com aeroportos! Dá pra imaginar o caos? E pouco me importa se você
acha que sou uma louca, por que eu vou capturá-lo novamente!
-
Como você vai fazer isto Dolores?
-
Vou ao abrigo de menores e darei um jeito de atraí-lo com o cachimbo de
beladona.
– Não vai adiantar. Ele sumiu e pensam que
você o sequestrou!
-
Então vou tentar do jeito que fiz antes, dando voltas em torno da minha casa
fumando o cachimbo e simulando uma caminhada. Ele vai sentir o cheiro e pousar.
-
Você não vai poder fazer isto porque sua casa foi vandalizada e está
vigiada!... Mas eu tenho uma ideia: vamos para a BR-040 no trecho que estão
acontecendo maioria dos acidentes próximo á Lafayette. Esta coisa deve estar
por lá!
-
Você acredita em mim Alberto?
-
Eu vou acreditar em qualquer coisa que ponha fim á isto! Vamos logo!
Os
dois seguiam no carro de e a estrada estava vazia.
-
Eu pensei que se capturava Saci com peneira nos rodamoinhos e o prendia numa
garrafa.
-
Nós estamos lidando com uma entidade maligna das tradições indígenas que difere
da lenda iorubá da criança Saci negra, apenas travessa.
–
Será que só existe este Maty-Taperê ou há outros?
–
Vamos torcer para ser só este!... Pare o carro, eu vou caminhar a pé pela
estrada para atraí-lo.
Dolores
saiu acendendo o cachimbo e dando baforadas enquanto andava olhando para cima.
Alberto a seguia devagar de carro.
Depois
de trinta minutos de caminhada sob o sol, Dolores parou se perguntou: – Á onde
estará este maldito?
Alberto
parou o carro e saiu também olhando para o céu, quando avistaram uma Kombi vindo
pela estrada ao mesmo instante que ecoou um zumbido como um avião a jato em
decolagem, tão estridente que fez Alberto e Dolores taparem os ouvidos. Ele se
agachou no chão, e era como se não soubesse mais onde estava enquanto ela andava
desorientada na pista. A Kombi vinha em alta velocidade e atropelou Dolores,
atirando-a ao matagal á beira da estrada, para depois seguir em direção á uma
carreta no sentido contrário, também desorientada, e bateram violentamente. A
carreta passou por Alberto a toda velocidade, quase batendo no seu carro, seguindo
até colidir frontalmente com outro caminhão á muitos metros, causando uma
explosão.
Em
instantes o zumbido sumiu e Alberto se levantou. Avistou os veículos em chamas
com suas cargas espalhadas na pista e a Kombi totalmente destruída junto ao
corpo do motorista decapitado; era uma visão medonha! Então viu Dolores caída
no mato e correu para acudi-la. Muito ferida ela falou. – Foi,... Foi muito
pior que antes... Ele está muito forte.
-
Vou levá-la ao hospital! – preparava-se para carregá-la, mas ela o impediu: -
Não!... – saía sangue pela sua boca. – Você sabe o que tem que fazer,...
Capture este monstro!... Acabe com isto,... – ela terminou de falar e morreu.
Ele
ficou em pânico uns instantes. Olhou para o céu e não viu a ave; então procurou
o cachimbo, achando-o no acostamento ainda aceso, e o colocou na boca se esforçando
para produzir mais e mais fumaça. Andou pela estrada até avistar a silhueta do
pássaro descrevendo círculos no seu voo no alto, para então começar a baixar e
pousar no acostamento. Era imenso como uma condor, e estava apoiado numa só
perna quando se iniciou sua transmutação na figura de uma criança indígena nua,
que o fitava Alberto com olhos vermelhos e caminhou na sua direção. Ele tirou o
cachimbo da boca e o ofereceu: - É isto que você quer?... Vem pegar! – o menino
vinha com suas mãos para frente e Alberto o conduziu até seu carro. Abriu a
porta traseira e entrou de costas. Quando o Maty-Taperê entrou e sentou no
banco Alberto lhe entregou o cachimbo, saiu pela outra porta e rapidamente
entrou na direção do carro ligando o motor e arrancando com toda a velocidade.
Uma
semana depois Alberto acabava de preparar um prato de mingau de farinha de
milho. Colocou-o numa bandeja junto á um copo d‘água e ao cachimbo de beladona.
Havia um jornal na bancada da pia onde se lia: “Epidemia de acidentes da BR-040 terminou. Autoridades não encontram
explicação.” Ele seguiu á um corredor, abriu uma porta e desceu alguns
degraus chegando á garagem da casa. Havia uma porta de madeira com uma abertura
em baixo. Alberto passou a bandeja com o mingau e a água e acendeu o cachimbo,
mas antes de passá-lo ao Maty-Taperê, deu longas baforadas apenas pensando
naquela rotina que o acompanharia até quando pudesse.
Enquanto
isto na cidade de Juiz de Fora, num terraço, uma mulher olhava para o céu
pensando ter ouvido um assobio.
Fim.
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