Silvano olhava através da vidraça da
janela da mesma maneira que tinha feito nos últimos onze meses de quarentena. Ninguém
esperava que a pandemia durasse tanto, e com tantas mortes, pois o coronavírus
teria sofrido uma mutação, ficando ainda mais contagioso e com nova
denominação: Covid20. A TV mostrava a
alta dos índices de mortandade á cada hora, além do caos generalizado na rede
pública de saúde que logo se estendeu aos hospitais particulares com cenas de
caminhões baú frigoríficos removendo pilhas de corpos; assim, recomendavam as
pessoas que não saíssem de casa sob nenhuma hipótese.
Em pouco tempo Silvano foi obrigado a
fechar sua pequena firma de design gráfico, passando a contar com uma ajuda
emergencial do governo. Teve que migrar á um plano de internet mais barato que
mal lhe permitia navegar sem interrupções, até que o sistema sobrecarregado
deixou de funcionar, assim como a TV por assinatura. O próprio WhatsApp passou
a não atender de modo adequado.
Quanto acabou a ajuda emergencial, ele
foi selecionado para receber outro auxílio na forma de uma bolsa que só lhe
permitia fazer pagamentos online e compras em lojas virtuais. Isto tornou seu
isolamento quase completo não fosse a TV aberta como o único canal para o mundo
exterior, além da vidraça da janela da sala de onde acompanhou o gradativo desaparecimento
das pessoas das ruas. No principio ainda havia caminhantes levando cães a
passeio, gente voltando ou indo das compras e um ou outro transeunte sem rumo
definido; todos usando máscaras ás vezes coloridas. Agora via apenas
motociclistas de delivery como o que deixava suas compras na portaria do prédio
e ele descia para buscar num rodízio com vizinhos um de cada vez. Quando
retornava ao apartamento, ecoava no corredor apenas o som dos muitos
televisores ligados nos noticiários da TV aberta e o rádio que repetia
noticiários do Covid20 a cada instante, entremeados á programação musical.
Havia também sirenes de ambulâncias numa sinfonia de trombetas de contornos
apocalípticos á todo momento.
Naquela manhã Silvano contemplava o cenário
de sempre enquanto comia Naturalis. O
conavírus mutante tinha contaminado os alimentos frescos e a criação de víveres,
obrigando as pessoas a consumirem uma espécie de ração humana feita com
nutrientes naturais. Sua favorita era a sabor de orégano. Então veio uma notícia
urgente na TV: a pandemia havia sido controlada e a quarentena teria fim! O presidente
da Organização Mundial de Saúde saudava a coragem e perseverança das populações
frente ao desafio da maior crise que o planeta terra havia passado, e agora se
descortinava um mundo repleto de novos horizontes! Silvano correu diante da
televisão para ver pessoas comemorando na Praça de São Pedro, em Roma; em Nova
York, no Times Square e na orla de Copacabana, Rio de Janeiro. Emocionado, se
ajoelhou e chorou.
A TV informava que a situação ainda
exigia cuidados, assim organizaram a saída da população ás ruas de modo
gradativo, devendo todos á passar por exames e desinfecção completa; haveria
fiscais e profissionais de saúde coordenando os trabalhos. Então o celular de
Silvano recebeu mensagem do Ministério da Saúde informando o dia e a hora que ele
poderia sair de casa e dando instruções para seu procedimento. Não havia mais
necessidade máscaras, luvas ou álcool gel.
Dois dias depois Silvano estava á
janela, ansioso para sair, pois era o seu dia. Ele olhava pessoas passando pela
rua, solitárias ou em grupos de familiares, alguns cabeludos e outros barbudos,
com fiscais de saúde dando instruções. Ele próprio tinha seus cabelos loiros
até quase os ombros. Então veio a esperada mensagem e ele podia sair.
Silvano mal acreditou quando cruzou a
portaria do prédio, passando pelo mato alto no jardim até á rua e ao fluxo de
pessoas que seguiam se cumprimentando o tempo todo, mas ainda um tanto
perplexas. Era uma sensação de quase êxtase a percepção do final daquele pesadelo!
Então ouviu uma voz amiga.
- Ei Silvano! – era Robinson, seu amigo
e vizinho da rua de trás, que se aproximou na intenção de um abraço, mas o
fiscal o impediu: - Por favor, sem demonstrações até a desinfecção! – ele pôs
as mãos para cima dizendo: - Tudo bem, ok, ok! – virou-se á Silvano: - Se
acabou essa porra, como é que o cara tá todo mascarado e com luvas grossas?
- Disseram que a coisa ainda exige
cuidados.
- Bem, se as majestades falaram; ok! Tô
com saudade de ti, amigo!
- Eu também Rob!
- Não vejo a hora de tomar uma cerveja
gelada e parar de comer essa gororoba chamada Naturalis, que me fez até vômito!
- Não é ruim. A com sabor de orégano é
bem gostosa!
- Agh! Vou te falar uma coisa; eu não
comi essa merda!
- O que você comeu?
- Sou da roça, né? Armei arapucas e colocava
farelo de Naturalis como isca para atrair pombos, que adoram esta porcaria!
- Credo Rob!
- E tenho horta com couve, taioba...
- Uai? Mas eles não estavam fiscalizando
as casas atrás de hortas clandestinas que pudessem estar contaminadas?
- Quem disse que estava no meu quintal?
Tava na casa vazia do vizinho!
- Ah Rob!... Você se arriscou.
- Não vem não Silvano! Mas o que
aconteceu com você; parece meio abobado,... Aliás, parece que tá todo mundo
meio lesado!
- Onze meses dentro de casa, o que você
esperava?
- É, tá certo! Ah, mas tenho uma boa
notícia: a Martinha está grávida! – riso: - Tá de oito meses com um barrigão
lindo!
- Que legal. - Silvano olhou em volta: -
Eu notei que há muitas grávidas, e quase nenhum idoso...
- A galera se divertiu! Se for menina,
vai chamar como?... Corona! – e riu.
- Para de falar; estamos chegando á
barreira sanitária!
Silvano e Robson foram atendidos:
pediram-lhes documentos, endereço e informações de familiares.
– Minha mulher está grávida!... Ela saiu
mais cedo; mas para onde ela foi?
–
Ela passará pela desinfecção e depois á exames pré-natais. – respondeu o agente
sanitário.
– Quando eu poderei encontrá-la?
- Logo que o senhor concluir seus exames
será levado á sua esposa. E parabéns, futuro papai!
Robinson sorriu e enquanto isto Silvano
era examinado por outro agente que observou: - Será preciso cortar seus
cabelos.
- Puxa,... Eu queria deixar crescer.
- Infelizmente são cuidados ainda
necessários.
- Se é assim! – o agente preencheu a ficha
de Silvano enquanto que ao lado se terminava de preencher a de Robinson, que
foi levado á outra fila, separando-os: - Nos vemos depois, companheiro! – e fez
um joinha.
Silvano seguiu em fila á um conjunto de
contêineres com tendas, e foram conduzidos á um deles em grupos de doze homens.
As mulheres seguiam em separado.
Logo apareceram médicos e um fiscal todo
de preto usando viseira de acrílico começou a falar: - Senhores; em primeiro
lugar, devemos nos considerar vencedores! Isto é inquestionável depois do que
passamos. – todos sorriram, ele prosseguiu: - Entretanto, não é segredo para
nenhum de nós que este período terrível deixou muitas sequelas na nossa
sociedade e, principalmente, no que tange ao trabalho. A crise abateu milhões
de empresas e não pouparam sequer os grandes conglomerados como Volkswagen,
Coca-Cola e nem mesmo a Microsoft resistiu, e tampouco o setor público! – as
pessoas se entreolharam, e ele prosseguiu: - Assim, é necessário que nos
adaptemos á nova realidade que temos pela frente. Como todos vocês estão sem
emprego, foram organizadas frentes de trabalho especialmente na produção de
alimentos, vestuário, medicamentos, e demais itens.
Um homem perguntou: - Não compreendi; não
voltaremos aos nossos antigos postos de trabalho?
- Não senhor. Como disse: será preciso
um tempo para que a sociedade civil seja reorganizada. Assim, para que não
soframos também o flagelo do desemprego em massa, foram organizadas fábricas
para recolocação da força de trabalho.
- Fábricas? – perguntou o homem
novamente: - Mas, serão empresas públicas ou privadas?
- Capital misto! – respondeu firme: - Neste
momento há urgência na produção de bens de consumo e uma vez que um gigantesco
contingente de trabalhadores pereceu é preciso que vocês os substituam. Foram
vidas perdidas para a pandemia que temos a obrigação de prosseguir adiante em
honra á sua memória! – ocorreu breve silêncio e ele continuou: - Mas lhes
asseguro que será respeitada a formação de todos vocês na designação dos cargos
assim como a remuneração justa e seus direitos trabalhistas.
Então passou a palavra á um médico: -
Vocês estão aqui para um processo de desinfecção, e uma vez que o Covid20 pode
ficar adormecido em material têxtil por muito tempo, vocês deverão se despir
totalmente e suas roupas terão que ser incineradas! – todos obedeceram e foram
conduzidos a outro contêiner com duchas de água muito quente. Depois seguiram á
um terceiro contêiner onde tiveram cabelos cortados á máquina e os pelos do
corpo raspados. Então receberam novas roupas: camisa de sarja abotoada na
frente, de mangas compridas, cueca, calça de brim, meias e sapatos sem cordões,
tudo em tons de marrom. Não eram confortáveis.
Em seguida foram levados á uma grande
tenda com dezenas de mesas onde seriam cadastrados. Silvano sentou-se e a
atendente lhe passou uma ficha para ser preenchida. Havia um número acima: MBHT0000752542.
Seus antigos documentos foram recolhidos: identidade, CPF, carteira de
motorista, sendo informado que agora aquele número o identificaria num cadastro
único porque com a diminuição drástica de servidores públicos, mortos pela
Covid20, fez-se necessário simplificar todo o sistema brasileiro de
identificação. Foi feita uma foto e em instantes imprimiram seu novo documento,
não mais verde-amarelo com a insígnia nacional, mas cinza com um código de
barras e cercadura marrom.
Depois ele foi conduzido á um pátio com
centenas de outros homens todos vestidos com o mesmo uniforme marrom, e foram
informados que deveriam retornar á aquele local na manhã seguinte para serem
encaminhados á seus novos postos de trabalho. Disseram também para evitarem
sair de casa, pois haveria a necessidade de uma desinfecção geral porque o novo
Covid20 era ainda mais contagioso e todo o cuidado era pouco. Alguns
perguntaram quanto tempo demoraria em poderem passear, frequentar bares,
festas, cinemas... Então responderam: - O mais rápido possível, mas estamos disponibilizando
TV fechada de graça com grande variedade de canais.
Silvano chegou á entrada do seu prédio
onde deparou com uma caçamba repleta de roupas, toalhas lençóis e todo tipo de
vestuário. Vinham homens carregando mais e atirando-os na caçamba. Ao entrar no
apartamento foi direto ao quarto e as portas do seu armário estavam abertas
mostrando seu novo guarda roupa em tons de marrom, incluindo peças íntimas,
assim como roupas de cama, mesa, banho e até panos de cozinha. Na sala havia
uma caixa contendo suprimento de Naturalis, incluindo seu favorito, sabor de
orégano. Á noite, ele assistiu TV com novos programas e séries de caráter
educativo. Não encontrou seus preferidos como “Revolution”. Mas isto parecia não
ter importância face ao fim do pesadelo de onze meses da quarentena.
CONTINUA.
Muito bom o conto e a crítica ao sistema...
ResponderExcluirobrigado!!!!
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