PARTE FINAL.
Na manhã seguinte, Silvano estava no
estacionamento de um supermercado aguardando informações sobre seu novo posto
de trabalho quando Robinson aproximou-se, triste. – Puxa vida véio,... A
Martinha morreu e o bebê também, cara!
- Sinto muito, meus sentimentos: –
respondeu com certa apatia.
- Não entendo. Tava tudo bem!... A
médica disse que foi pressão alta, mas ela tava controlando!
Então dois fiscais se aproximaram: - O
senhor não pode sair da fila!
- Porra,... Tô só falando aqui com meu
amigo. Eu perdi minha mulher e meu filho, e nem me disseram quando e onde será
o sepultamento!
- Nós entendemos senhor, e sentimos
muito. Esta informação será dada ao fim do dia, mas por enquanto é preciso dar
continuidade ao trabalho, pois agora cada trabalhador será extremamente
necessário!
- Tá bem,... Eu vou voltar á fila! –
Robinson voltou á sua fila de cabeça baixa, ainda soluçando.
Silvano ficou olhando com certo estupor
até seguir ao ônibus que o levaria ao seu novo trabalho no bairro Martelos, na
cidade alta. Ao cruzar o pórtico norte da Universidade Federal de Juiz de Fora,
ele se espantou ao ver que um imenso galpão metálico ocupava toda a praça
cívica da universidade, e de imediato um fiscal informou á todos de que aquilo
se constituiu num verdadeiro esforço de guerra á qual a universidade não se
furtou em contribuir! Silvano foi levado ao IAD (Instituto de Artes e Design) á
sua nova função de chefe da equipe de design das embalagens de Naturalis, cuja
unidade de produção ocupava aquele galpão. Aparentemente cumpriram o prometido,
pois ele atuaria na sua área, e um dos primeiros trabalhos seria a criação de
layout para a nova linha de produtos “Naturalis Gourmet”, mais tenra.
Dias e semanas se passaram e Silvano foi
se acostumando à nova maneira de viver ainda com muito controle, mas com
algumas liberdades como passeios em parques, pequenas viagens, peças teatrais e
cinema, sempre com conteúdo educativo. A cor marrom no vestuário era necessária
porque se descobriu que o Covid20 não aderia á tecidos desta cor por uma
questão relacionada ao espectro de cores contido na luz. Havia um documentário
demonstrativo exibido na TV. Fazia sentido.
Sua apatia o preocupava; assim, ele procurou
a psicóloga da Naturalis que lhe garantiu que o longo tempo de quarentena,
significando muita tensão e angustia represada, fez com que seu corpo liberasse
altas quantidades de dopamina para equilibrar as emoções. Recomendou que
fizesse yoga e meditação. Silvano obedeceu.
Uma manhã ele estava na fila aguardando
seu ônibus, já encarando aquele trabalho como algo definitivo na sua vida. Até
sentia certo conforto ao pensar na estabilidade que isto lhe proporcionaria
quando Robinson veio correndo e o abraçou, sussurrando ao seu ouvido: - Não
coma mais essa porcaria, isso não presta!... – ele foi seguro por vários
fiscais e guardas enquanto tentava gritar: - Isso tudo é uma mentira...! – mas
foi cortado por uma mulher que gritou mais alto. – Cuidado!... Ele esta
infectado com o Covid20!... Se afastem! – vieram outros guardas e o
imobilizaram com armas de choque elétrico, fazendo-o desmaiar.
Silvano ainda conseguiu ver seu amigo
sendo arrastado para a carroceria de uma camionete preta, sem se mexer. Então o
retiraram da fila e o levaram aos contêineres de desinfecção onde tomou um
banho muito quente sendo esfregado com escovas. Foi praticamente depilado!
Depois veio uma mulher, com traços orientais, que lhe perguntou: – O que seu
amigo falou no seu ouvido?
Silvano se muniu de forças e respondeu:
-... Só me cumprimentou. – a mulher ainda o fitou um pouco e depois abanou a
cabeça. – É preciso tomar muito cuidado porque essa doença é traiçoeira!
A noite, em casa, ele ficou pensando nas
palavras de Robinson referindo ao Naturalis: alimento que todos consumiam. Como
designer, tinha percebido que não havia selos dos Ministérios da Saúde e
Agricultura ou outra coisa oficial na embalagem, nem nome do fabricante e
ingredientes; apenas códigos de barra. Diziam que era para simplificar o
sistema. Mas qual sistema? Então foi á cozinha em busca de algo que escapou á
busca dos fiscais. No inicio da pandemia, ele estocou pacotes de macarrão,
enlatados e geleias, escondidos num nicho oculto pelo armário da cozinha.
Estava decidido abdicar do seu sabor de orégano favorito em atenção á
recomendação do amigo.
Que estranha era a sensação de acordar
de um pesadelo, dentro de outro! Em alguns dias voltou a ser o homem de antes que
prestava atenção á minúcias com sua visão treinada pelo desenho. Percebeu que
todos pareciam dopados, assistindo programas de TV, filmes e peças de teatro
com a mesma mensagem oculta: “obedeça, é
para o seu bem!” Havia o temor de um novo Covid21, e a mensagem era: “Não tenha medo, estamos aqui para
protegê-lo!”; mas proteger do quê, se no discurso a pandemia tinha
terminado e não havia mais perigo?
Numa tarde de domingo ele seguiu á rua
de trás á procura de Robinson, e encontrou sua casa ocupada por outras pessoas
que não souberam falar nada sobre o antigo morador. Então percebeu que várias
casas e apartamentos vizinhos estavam vazios ou ocupados com pessoas desconhecidas.
Tampouco conseguiu contato com Robinson no celular e redes sociais.
E havia aquele enorme galpão no meio do
Campus da Universidade Federal de Juiz de Fora, muito vigiado, enquanto que o
departamento de marketing da Naturalis ocupava apenas uma parte das
dependências do prédio do IAD, não havendo alunos e professores no restante
desocupado. O que antes parecia normal, agora tomava contornos estranhos.
Um dia ao chegar ao trabalho, um caminhão
baú frigorífico que levava insumos á unidade da Naturalis tinha abalroado em
outro veículo, rasgando a lateral do baú e Silvano capturou de relance um
detalhe do seu conteúdo pelo rombo. O outro veículo acidentado tinha tombado diante
do pórtico norte de acesso á universidade, impedido a entrada do ônibus. Silvano
raciocinou rápido e alertou que isto atrasaria o trabalho que teria que ser
concluído rigorosamente ás dez horas daquele dia sob a pena de atrasar todo o
processo produtivo; mas alegou poderia concluí-lo sozinho se chegasse ao IAD
galgando uma escadaria de acesso á parte alta do campus. A permissão foi
concedida, mas um guarda teria que acompanhá-lo. Silvano não se opôs, e se
colocaram em marcha.
A escadaria passava por vários prédios
num verdadeiro labirinto, e era preciso despistar o guarda; então Silvano falou:
- É a tensão deste importante trabalho,... Mas não dá para segurar a dor de
barriga até lá em cima; eu preciso ia ao banheiro. Por favor! – o guarda
concordou e Silvano lhe entregou seu notebook e várias pastas, pedindo-lhe que
aguardasse.
Ele entrou num banheiro e o trancou.
Depois subiu nas divisórias e conseguiu escapar por uma janela basculante fora
do alcance do guarda. Silvano sabia que aquela ação não teria volta, mas
precisava ver por inteiro o que seus olhos capturaram apenas um mínimo detalhe
inquietante.
Foi se esgueirando pela vegetação até
escorregar numa encosta, chegando ao prédio da Faculdade de Letras abaixo.
Estava tudo deserto com aspecto abandonado; a UFJF não existia mais! O perigo
estava em atravessar a rua do anel viário, pois poderia ter algum guarda. Havia
alguns transeuntes e ele aproveitou para se misturar a eles, que pareciam
entorpecidos, e atravessou a rua calmamente até se esconder nas moitas de
arbustos, ao largo do passeio, para depois rastejar na grama ressecada,
camuflado pela roupa marrom, chegando á enormes caixas de isopor no gramado
semelhantes as que transportam peixes, que exibiam nódoas amareladas mal
cheirosas. Então viu o caminhão acidentado chegando ao acesso á uma espécie de
doca de desembarque ao galpão. Oculto pelas caixas, ele se aproximou, e quando
abriram o baú foram retirando mais caixas de isopor iguais aquelas,
colocando-as em carrinhos. Elas traziam a inscrição “Naturalis” e duas delas
que foram danificadas no acidente se romperam espalhando seu pavoroso conteúdo.
Eram corpos humanos congelados.
Foi á última coisa que viu, porque foi
fuzilado pelas costas por guardas que arrastaram seu corpo para dentro do
galpão.
Semanas depois os novos produtos
“Naturalis Gourmet sabor de orégano” chegavam ás prateleiras. E o layout da embalagem
pertencia á Silvano.
Fim
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