Agamêmnon – SEGUNDA PARTE.
Enquanto seguiam no Aero Willys, acompanhados de uma rádio patrulha, Mathias falou: - É realmente inacreditável que um funcionário experiente como o senhor Jorge tenha deixado de observar tantos itens de segurança! Apenas um guarda para vigiar um cofre do tempo do onça contendo valores tão elevados em espécie e cheques?
- Diz o ditado, que o uso do cachimbo faz a boca ficar torta né doutor? – falou Josélio.
- É verdade. Muitos anos repetindo a mesma rotina, e acaba-se por relaxar um pouco. – respondeu incerto, e reclamou. – Que droga. Essa catinga de rapé impregnou a minha mão e eu só toquei no fundo da gaveta! Cara esquisito esse Orestes.
- Por que doutor?
- Numa fuga ele ainda se detém para cheirar rapé! Vá gostar desta merda assim na casa do caralho!
Josélio riu.
Eles chegaram ao bairro Borboleta e seguiram á uma parte mais afastada numa rua de poucas casas até pararem diante um pequeno chalé de tijolos á mostra com o beiral da varanda adornado em madeira recordada semelhante aos bicos de renda. A vivenda era afastada da rua tendo um passadiço que servia de garagem. Um policial ficou na radio patrulha enquanto Mathias e Josélio seguiam á varanda, e a porta de entrada estava trancada.
- Vamos arrombar doutor?
- Hum,... O senhor Orestes é um homem de hábitos antigos, como cheirar rapé. - levantou o capacho e depois correu a mão nos vasos de samambaias que pendiam do beiral. – Ah,... Como imaginei! – falou recolhendo uma chave, logo levada á fechadura. A porta se abriu revelando uma sala cheia de móveis antigos cujo único item moderno era um televisor, além de velhos retratos nas paredes, relógios e um brasão oval escrito “Müller”. – Parece insígnia de família! – falou Josélio.
- Sim; o nome dele é Orestes Otto Müller. É descendente de alemães como muitos neste bairro. – olhou em torno: - Vamos ao quarto! – seguiram por uma saleta de jantar com sua banca de relojoeiro contendo ferramentas e mais relógios nas paredes, todos funcionando, uma verdadeira coleção. Havia uma mesa, e no chão restavam fragmentos de vidro quebrado e uma toalha bordada estava caída sobre uma cadeira. Havia portas ao banheiro, á cozinha e ao único quarto da casa, também mobiliado com peças antigas; o guarda roupas estava aberto e vazio, assim como as gavetas de uma cômoda, havendo peças de roupa pelo chão, abandonadas. – Parece que ele fugiu rápido. Nem juntou tudo.
- Sim Josélio. Não vamos mexer em nada; temos que isolar esta casa. – Então Mathias parou um instante tentando prestar atenção á algo quando o policial que estava na rádio patrulha chegou á porta: - Doutor Mathias, tem uma mulher querendo entrar. Diz que é noiva do suspeito.
Mathias e Josélio trocaram olhares: - Noiva?
- Sim! – então voltaram á varanda. Era uma mulher magra de cabelos loiros presos com passadores usando vestido florido e casaquinho de tricô. Quando viu o investigador foi logo perguntando aflita: - O que aconteceu?... Tem um carro da polícia aqui,... Quem são vocês?
- Sou Agamêmnon Mathias, investigador da polícia. A senhora,... Ou senhorita, é quem?
- Meu nome é Eva,... O que aconteceu; onde está Orestes?
O investigador narrou toda a ocorrência, e á cada parágrafo, palavra ou ponto, a expressão da mulher ia se tornando mais espantada nos seus olhos castanhos. Ele concluiu: -... Foi isto que aconteceu, senhorita Eva.
- Não é possível! – exclamou: - Orestes não fez isto!
- É o que estamos investigando; mas tudo parece apontar nesta direção.
Eva abanava a cabeça: - Não, não, não! Ele não pode ter feito uma coisa dessas!... Não posso estar enganada a respeito do seu caráter!
- A senhorita tem conhecimento que o senhor Orestes já esteve preso? – Perguntou Mathias.
- Evidente que sim, todos aqui no bairro sabem disto! – tomou fôlego: - Foi uma besteira de juventude: Orestes estava com amigos festejando uma vitória no futebol quando decidiram roubar barris de chope numa cervejaria, e ele quis se exibir abrindo o cadeado do portão sem chave! Mas havia um guarda que chamou a polícia, e como Orestes estava muito bêbado, não conseguiu fugir e foi pego! Só que deram pela falta de uma quantia em dinheiro que estaria num cofre. – abriu os braços: - Orestes jurou que não foi ele, mas ninguém acreditou, e então foi condenado!
- Perdão senhorita. – falou Mathias: - Isso é precedente um tanto comprometedor.
- Eu sei,... Mas eu não acredito que tenha sido ele que roubou o dinheiro da estação! Estava feliz com a oportunidade de trabalho, tanto que decidimos formalizar nossa união, e iríamos comunicar isto á minha família esta semana! Não é possível... – e soluçou.
Mathias falou com voz amena: - Fique calma senhorita. Precisamos que responda algumas perguntas, é possível agora? – Eva se controlou e concordou: - Quando a senhorita viu o senhor Orestes pela ultima vez?
- Ontem á tarde nós saímos para passear, fomos ao Museu e voltamos a pé. Decidimos nos encontrar a noite, eu viria para cá assistiríamos á televisão e depois eu iria ficar aqui com ele. – deu de ombros. – Íamos morar juntos mesmo!
- A que horas a senhorita viria?
- Ás 19hs! Nós iríamos lanchar e assistir ao Programa do Chacrinha, mas quando cheguei e bati á porta, Orestes pediu desculpas e me mandou embora. Perguntei se estava tudo bem e ele disse que sim! Então eu me retirei.
- Ele não abriu a porta para falar com a senhorita?
- Não doutor.
- A senhorita não estranhou que ele não viesse conversar á porta?
- Não doutor. Bem,... Eu reconheci o carro que estava na rua: é de um primo de Orestes que ás vezes vem visitá-lo. A verdade é que sua família se afastou por causa da prisão. Como ele sofre com isto! Só o Pepê conversa com ele. Eu não insisti em entrar porque podiam estar falando de assuntos de família.
- Pepê é o apelido deste primo: a senhorita sabe o nome dele? – perguntou Josélio.
- Não. Eu sei apenas o apelido.
- A senhorita o conhece pessoalmente?
- Não. Orestes queria me apresentar á sua família com todos reunidos.
- De onde é a família do senhor Orestes?
- Eles vivem no bairro São Pedro, mas não sei seu endereço.
- A senhorita saberia dizer qual a marca do carro verde?
- Não doutor Agamêmnon. Só sei dizer que era um carro verde com capota branca, e grande!
- A senhorita voltou aqui depois?
- Sim doutor. Eu voltei ás 22hs. Imaginei que a visita tivesse ido embora e talvez ele quisesse conversar. Mas as luzes estavam apagadas e o Fusca de Orestes não estava aqui. Eu confesso que estranhei um pouco; por que ele sairia á àquela hora, num domingo?
- O carro verde também não estava mais á porta? – perguntou Josélio anotando algo num bloquinho.
- Não estava. – Eva abanou a cabeça em desespero: - Não, ainda não consigo acreditar!
Então o policial que estava na patrulha os chamou: era uma mensagem pelo rádio e Josélio foi conferir.
Mathias então perguntou: - Esta casa pertence ao senhor Orestes ou é alugada?
- É própria, e também é um dos motivos da discórdia familiar. Há desavenças por causa da partilha; acusam Orestes de ter usado de fraude para se apossar desta casa. Mas é mentira doutor! Todos aqui no bairro sabem que a família Müller viveu aqui a vida toda!
- Então a família é brigada com ele?
- Sim! Só o Pepê ainda tem algum contato com ele. – Eva suspirou e prosseguiu exprimindo alguma mágoa: - Não é possível que eu tenha me enganado tanto com ele!... Mas se for verdade, eu terei que aceitar que Orestes não passa de um canalha mentiroso, e ladrão!
Josélio voltou dizendo que tinham encontrado o carro de Orestes abandonado no bairro Barreira do Triunfo, na zona norte da cidade.
- Encontraram Orestes? – perguntou Eva ansiosa.
- Não senhorita, apenas o carro. – respondeu Josélio.
Mathias consolou-a novamente, mas não deixou de anotar seu nome e endereço, dizendo que seria convocada para prestar depoimento na delegacia. Depois ordenou que isolassem a casa, pois já se aglomeravam curiosos ao portão, e foram direto ao local onde estava o Fusca.
No caminho Josélio explicou que o carro não estava mais na Barreira, e sim no pátio de veículos apreendidos na delegacia de trânsito.
- Como é? – estranhou Mathias: - Retiraram um veiculo envolvido num crime sem que se fizesse a perícia antes? Com ordem de quem?
- Também não entendi direito doutor, mas parece que aconteceu um acidente com o carro, e por isso o removeram. E esse acidente teria ocorrido ás 7h desta manhã!
- Não é possível! Á esta hora ainda estava acontecendo a confusão na estação e ainda não tinham dado pela falta do malote!
Josélio respondeu: - Fizeram boletim de ocorrência onde podemos conferir o que aconteceu de fato. – abanou a cabeça: - Então o senhor Orestes tem pendengas com a família porque passou a perna nos seus parentes?
- Pelo que a senhorita Eva me contou, há desavenças por causa de herança. Ah, esse senhor Orestes está saindo pior do que a encomenda!
Ao chegarem ao pátio da delegacia de trânsito, o policial de nome Ramón que atendeu a ocorrência explicava que as 8h10 desta manhã chamaram a patrulha para atender á um acidente ao quilômetro 196 da rodovia JK, próximo á Barreira do Triunfo. Uma camionete Ford havia colidido na lateral de um Fusca que estava estacionado á entrada de um sítio. O condutor da camionete seguia rumo á estrada e não conseguiu vê-lo a tempo por causa da cerração. O policial apontou ao Fusca azul claro avariado na porta do motorista, e prosseguiu: - Ao chegarmos, verificamos que a chave estava na ignição e as portas destrancadas. O senhor José João, dono do sítio que conduzia a camionete, nos disse que é comum abandonarem carros roubados nos fins de semana para farras por ali; e como se trata de um veículo velho, modelo 1951, isto podia ser o caso. Então providenciamos sua remoção. Naquele momento não tínhamos a informação de que se tratava do carro envolvido no roubo da estação!
- Nem teria como, porque só solicitamos busca por este Fusca lá pelas 10h! – falou Mathias. - Que hora aconteceu o acidente?
- As 7h20 aproximadamente. – respondeu o policial Ramón.
- Uai? À esta hora o Fusca deveria estar estacionado na Rua Raul Soares, ao lado da estação! – falou Josélio. – O dono dele não estava lá dentro, ajudando à controlar a confusão?
- Pelo menos é isto que o senhor Jorge falou. – Mathias abriu a porta e mostrou algo no banco traseiro. – Olhe aqui Josélio: um malote igual aqueles que estão na estação! – apanhou-o: - Tem a marca da RFFSA, e está com lacre rompido. – olhou dentro e apanhou papéis. – São documentos; relações das quantias em dinheiro, e cheques!... Parece que é o malote roubado!
Josélio apanhou um papel no assoalho do carro: - Veja doutor: um mapa rodoviário de Minas Gerais! – perguntou á Ramón. – Você ou alguém mexeu no interior do veículo?
- Não Josélio! Só soltamos o freio de mão para o guincho poder rebocar.
Mathias abanou a cabeça: - Isto indicaria que o ladrão, ou ladrões, fugiram para o interior do estado; e no caminho teriam abandonado esta lata velha para trocarem de carro, certamente um veículo melhor e mais veloz!
- Então trocaram o Fusca velho pelo carro verde grande que a senhorita Eva falou? Ei, faz sentido! Ontem quando a namorada dele foi lá, e ele não atendeu, poderia estar planejando a ação com seus comparsas!
- Sim Josélio! Porém, não fosse o fato que este carango deve ter chegado á entrada do sítio antes das 7h20 desta manhã, quando a encrenca na estação estaria no auge e o senhor Orestes foi visto por lá, seria o roteiro perfeito, e ainda com um mapa de fuga providencialmente deixado dentro do carro!...Tem coisa aí! – ele parou e olhou em torno.
- O doutor acha que plantaram pistas falsas?
Mathias não respondeu enquanto observava um funcionário da delegacia de trânsito portando um rádio de pilha.
- Doutor?... O que foi?
Ele encostou o dedo indicador nos lábios enquanto divagou: - Uma casa tão arrumadinha como a do senhor Orestes, com cacos de vidro no chão e um centro de mesa todo bordadinho jogado numa cadeira?... Certo, ele estava em fuga!
- Já que o doutor observou: Viu quantos relógios, e todos funcionando?
- Prossiga Josélio!
- Por que ele largou para trás sua caixa de ferramentas de relojoaria? Mesmo numa fuga, eu não a deixaria para trás!
Mathias olhou novamente o radinho do funcionário e exclamou: - Vamos retornar á casa do senhor Orestes imediatamente! – e correram ao Aero Willys do investigador, rumo ao Bairro Borboleta.
Os dois entraram na casa, devidamente isolada, e foram direto á sala de jantar: Mathias esfregou a sola do sapato no chão: - São fragmentos de vidro que alguém não varreu direito! – olhou um armário tipo cristaleira: - Veja: está faltando um vidro: - aproximou: - E há vestígios de sangue, alguém se cortou nos cacos! – depois seguiu ao quarto procurando por algo.
Josélio entrou: - Doutor veja isto: a toalhinha largada na cadeira está com,...
- Shhhhh! Silêncio! Escute! – olhava em torno apertando os olhos: - Ouça; é o som de um rádio ligado. Eu ouvi quando viemos aqui antes.
Josélio prestou atenção: - Parece longe; será em algum vizinho?
Matheus agachou e depois encostou o ouvido no assoalho de tabuas largas do quarto. – Vizinho nada!... É aqui mesmo! – E correu para fora seguindo á parte dos fundos da casa, cujo terreno tinha leve declive. Ele olhou para cima: - A janela do quarto é ali! – olhou para baixo á uma parede com várias tábuas e entulhos encostados; o som vinha dali, e ao retirarem os entulhos havia uma porta de madeira num arco. Mathias arrombou-a com um chute: era um porão cheio de garrafas vazias e objetos descartados. No centro havia uma tampa de cimento, certamente cobrindo uma cisterna. Matheus, Josélio e o policial Ramón, que os acompanhou, removeram a tampa.
- Minha nossa! – exclamou o investigador ao deparar com a face ensanguentada de Orestes com seus olhos azuis arregalados e sem vida despontando entre malas e muitas peças de roupas imersas num líquido lamacento e mal cheiroso. Numa das suas mãos estava seu radio transistor ligado á todo volume.
CONTINUA...
Ansiosa pela continuação. Adoro contos investigativos.
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