Glamour, feminismo, subversões e transgressões na era de ouro do cinema americano. (Ensaio)
Ramón Brandão.
A atriz brasileira Lia Torá atuando no filme “A Mulher Enigma” em 1929.
Numa visão mais simplificada poderíamos considerar que a estrutura de poder da sociedade norte americana se apoiaria na premissa de que a solidificação do êxito seria obtida através trabalho duro, e que qualquer coisa que fugisse á este modelo não teria sustentação suficientemente segura. Contudo, como as estruturas que sustentam estas mesmas sociedades são influenciadas de forma mais ou menos contundente por acontecimentos históricos, políticos, econômicos e sociais, elas podem sofrer modificações, inclusive nos seus modelos (arquétipos, estereótipos, clichês). Em algum momento os formadores de opinião que atuam nessas sociedades podem ter seus papéis postos em xeque, e assim faz-se necessário se adaptar às situações que surgem sob a pena de serem engolidos pela nova ordem que se estabelece. Portanto, o cinema poderia funcionar como uma espécie de espelho, ou melhor, écran, onde podemos observar como essas modificações chegariam ao público através da ficção, enfocando o papel da mulher nessas mudanças.
Neste ponto cumpre citar o sociólogo francês Philippe Ariès quando refere ao que denominou “degenerescência das cidades do século XX”. Em fins do século XIX teve início o processo de fuga dos habitantes mais abastados das partes centrais da cidade em direção a novos bairros periféricos, ou subúrbios, que ficariam conhecidos na Inglaterra por “cidades jardim”[1]. Foi uma cisão importante na estrutura urbana e, por conseguinte, social porque representou uma espécie de separação entre o local de trabalho e o local da família, ou ainda, um setor público e um setor privado, este último concedido á intimidade familiar numa segregação entre zonas comerciais e industriais. Ou seja, a família como espaço de afetividade e o trabalho como sociabilidade.[2] Era a substituição do sobrado com comercio, escritório ou manufatura no térreo e a residência do proprietário e sua família nos andares superiores, pela casa cercada de jardins longe da balbúrdia urbana. Ariès ainda cita Jacques Donzelot: “o trabalho e seu lugar pertencem ao mundo submetido a uma vigilância exata e constante, enquanto a família é, ao contrário, um refúgio que escapa a esse controle. (assim) a família tornou-se, portanto o domínio do privado, o único lugar que se pode legalmente escapar ao olhar inquiridor da sociedade industrial” Donzelot e também Philippe Meyer, ainda consideravam que a família também se tornou um dos canais de poder e também de outro tipo de vigilância[3].
Tudo isto pode ter representado também a construção do papel da mulher dentro da estrutura social circunscrito ao ambiente familiar com a tarefa de cuidar da criação dos filhos e da casa. Reportando a visão de Ariès, onde a família era o local da afetividade enquanto o trabalho é espaço de sociabilidade, ao mudar o local da moradia para longe do trabalho, poderia significar também a retirada da mulher do espaço de sociabilidade, ou seja, do contato com o resto do mundo, enclausurando-a nos espaços do lar a serviço da manutenção das rotinas familiares, uma vez que a manutenção da ordem familiar ainda pertenceria ao marido, o “homem da casa”.
A questão pode conter nuances mais complexas que isto, além de comportar aspectos relacionados á posição desta ou daquela família dentro da estrutura social e econômica; ou seja, classe burguesa, classe operária, aristocracia e etc. Entretanto, poderíamos ressaltar uma semelhança entre essas mulheres: uma possível busca de refúgios ao tédio da rotina doméstica, ou mesmo do trabalho operário, na literatura.
No decorrer dos séculos XVIII e XIX eram editadas coleções de livros populares, que na França recebiam o nome Bibliothéque Bleue, que consistia em pequenos livros encadernados em brochuras com capas em azul, vermelho ou marmorizado e preços modestos. A temática era variada: poesia, vida dos santos, biografias de figuras célebres da história, romances de cavalaria ambientados na idade média e versões de obras literárias eruditas nem sempre muito fiéis aos originais, dentre outros[4]. Assim, através das personagens femininas dessas obras populares crio-se o arquétipo da mulher romanticamente idealizada: camponesa, princesa, rainha, ou ainda odalisca. Sofredoras, heroínas, misteriosas ou sedutoras conforme cada enredo. Como se tratava de livros a preços módicos, constituía-se numa literatura acessível e certamente agregava grande contingente de leitoras. Existiam também folhetins e novelas que saíam em capítulos publicados em revistas femininas e jornais, que ajudavam sedimentar um imaginário feminino idealizado para seduzir as leitoras.
Poderíamos observar como traço comum dessas personagens certo descolamento da realidade cotidiana, pois habitariam reinos distantes numa outra época ou paisagens exóticas do oriente. Mesmo nas personagens camponesas o trabalho apareceria como uma espécie de submissão face á crueldade de algum algoz; uma madrasta, por exemplo, onde estaria desprovido de qualquer caráter edificante, mas como situação humilhante aonde e redenção viria com o resgate por algum “príncipe encantado”. Aliás, a salvação da mulher aprisionada sempre prescindia de homem.
Quando o surge o cinema no limiar do século XX, não tardou a percepção que poderia ser uma ótima maneira de contar boas histórias; portanto, a transposição dos enredos da literatura popular para os roteiros dos filmes seria uma decorrência natural, assim como seus clichês, arquétipos e estereótipos, além das adaptações de obras literárias eruditas ainda com mais licenças poéticas do que compromissos com os originais. O cinema ainda contava com outro ponto favorável: não era preciso ser alfabetizado para usufruí-lo, significando uma abrangência ainda maior.
A partir de 1910 começam a se instalar nos arredores de Los Angeles na localidade conhecida como Hollywood grandes estúdios de cinema em busca do clima seco da região, além da luminosidade considerada ideal para as filmagens. Em poucos anos estes estúdios formaria uma poderosa indústria cinematográfica, sinônimo de sucesso e estrelato em todo mundo. Poderíamos observar que os arquétipos femininos herdados da literatura popular podem ter sido potencializados pelo cinema. Assim os modelos femininos (e também masculinos) originalmente idealizados na literatura popular ganharam corpo físico, cada qual com seu modelo: das ingênuas como Mary Pickford (a namoradinha da América), as sedutoras como Gloria Swanson além das exóticas como Thedda Bara. Belas e enigmáticas, inclusive com uma presença brasileira neste cenário, a atriz Lia Torá que estrelou em 1929 o filme “A mulher enigma” produzido em Hollywood .[5]
Seguiram-se mais estrelas nesse universo paralelo, sedutor e cheio de glamour. Jean Harlow, Carole Lombard, Catherine Hepburn, Tza Tza Garbor, Betty Davis, Joan Crawford, Marlene Dietrich e a maior delas na década de 1930: Greta Garbo, tão enigmática que abandonou o estrelato no auge da fama. No decorrer da década de 1940 brilharam, dentre outras, Verônica Lake, Loretta Young, Hedy Lamarr, Ingrid Bergman. Lauren Bacall e Rita Hayworth – que na verdade se chamava Margarita Carmen Cansino. - Mas todas as estrelas usavam pseudônimos mais atraentes e glamourosos, cuidadosamente escolhidos por seus agentes. Já na década de 1950 entram em cena talvez as derradeiras divas dessa dinastia feminina onde poderíamos destacar Elizabeth Taylor, Ava Gardner, Kim Novak, Deborah Kerr, Jayne Mansfield, Susan Hayward e Marilyn Monroe, possivelmente sua maior representante, fechando um ciclo arquetípico feminino que perdurou nas primeiras cinco décadas do século XX.
Alguns estudiosos do cinema norte americano consideram que estas e outras atrizes representaram papéis de mulheres transgressoras do patriarcado dominante á época[6]. De fato, eram personagens que de certa forma subverteriam uma ordem estabelecida pelos homens; usavam da sedução para conseguir seus objetivos, eram inescrupulosas, arrivistas, chamadas de “mulheres fatais” pela mídia especializada em cinema, e apresentavam algumas atitudes provocativas do senso comum feminino, como fumar em público, por exemplo. Mas até que ponto essa imagem de transgressão se sustentaria?
Quando as primeiras reivindicações de caráter feministas surgiram já nas décadas de 1910 e 20, dentre outras questões destacavam o direito ao voto nas eleições, que era negado ás mulheres, além das condições de trabalho nas fábricas. Já aquelas mulheres moradoras dos subúrbios oriundas da classe média, alçadas á condição de “rainha do lar”, buscariam uma maior participação na ordem familiar e não apenas nas rotinas domésticas, e ainda o direito ao trabalho e à sociabilidade; ou seja, questões relacionadas ao mundo do poder e do trabalho. Entretanto o mundo do trabalho feminino talvez não se enquadrasse nos roteiros dos filmes de Hollywood inspirados nas histórias heroicas e edificantes da literatura popular. Poderia ser árido e maçante ver nas telas a rotina real das fábricas e das submissões cotidianas as quais as mulheres estariam submetidas!
CONTINUA.
[1] BRANDÃO, Francisco, Memórias de um bairro perfeito, O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. C1, 4, nov 2001 (apud) BRANDÃO, Ramon, Arquitetura neocolonial, arquitetura da felicidade, Juiz de Fora, FUNALFA, 2013, p. 16.
[2] karl Polanyi (1944), discorreu sobre as transformações das estruturas do trabalho pós revolução industrial no século XIX e suas implicações nas estruturas familiares (cf.) POLANYI, Karl, A grande transformação: as origens de nossa época, tradução de Fanny Wrobel, 2 edição, Rio de janeiro, Editora Campus, 2000.
[3] MEYER, Philippe, L’enfant et la raison d’etat, servil, 1977 (apud) ARIÈS, Phillipe, Psicologia e Sociabiliade. In FIGUEIRA, Sérvulo A. ; VELHO, Gilberto, (orgs) A família e a cidade, Rio de Janeiro, Editora campus. 1981, p – 16.
[4] (cf) CHARTIER, Roger, A história cultural entre práticas e representações, tradução de Manuela Galhardo, Lisboa, Difel Difusão Editorial Lta; Rio de janeiro, Bertrand do brasil, 1987, p. 128 – 129.
[5] No final da década de 1920 o estúdio Fox Film promoveu um concurso simultâneo no Brasil, Espanha e Itália para incluir no seu elenco atrizes latinas. A escolhida foi a triz carioca Lia Torá que em 1929 estrelava seu primeiro filme produzido em Hollywood; “a mulher enigma” (The veilled woman). Uma edição da revista carioca “O Cruzeiro” de janeiro de 1929 trazia ampla reportagem sobre a atriz e o filme em nada menos que sete páginas com muitas fotos. (cf) A primeira estrella brasileira no film americano – Lia Torá e sua estréia em “A mulher enigma”, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, Empresa Graphica Cruzeiro, anno 1, número 11, p. 24 – 30, janeiro 1929, (apud) BRANDÃO, Ramon, Arquitetura neocolonial, arquitetura da felicidade, Juiz de Fora, FUNALFA, 2013, p. 106.
[6] Questão abordada por E. Ann. Kaplan (cf) KAPLAN, E. Ann, A mulher e o cinema: os dois lados da câmera, Rio de janeiro, Rocco, 1995.
Excelente, Ramón. Texto rico em informações as quais não conhecia. Obrigada pela contribuição!
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