Parte final!
Logo cedo Emanuel o levou para conhecer sua nova moradia num conjunto residencial á beira de uma estrada, que nada tinha da beleza arquitetônica de Lisboa. Era um caixote salpicado de janelinhas quadradas e balcões de sacada cheios de varais de roupas.
A portaria do edifício era ocupada por lojinhas que vendiam todo tipo de bugiganga fabricada no Império da China. – Nada muito diferente. - pensou.
O apartamento era de cobertura, o que não significava muita coisa em termos de luxo ou conforto. A dona do imóvel abriu a porta. Ela se parecia o que seria a cópia de Marilyn Monroe na meia idade com uns quarenta quilos á mais, e já foi se apresentando: - Meu nome é Mafalda Quintães, e adianto que sou uma viúva honesta que fez divisões para alugar á cá por necessidade, mas não admito indecências na minha casa! Se tu queres andar com as rameiras da rua, que vá ao mato! E por falar em erva, também não admito que fumes esta porcaria fedorenta vinda da Jamaica na minha casa! – depois Júlio soube que Jamaica era outro bairro periférico de Lisboa que não estampava cartões postais. Mafalda foi mostrando seu apartamento, que antes possuía salões, agora divididos em cubículos que ela alugava, - Mas o tua divisão não é a cá! – mostrou uma escadinha: - É no andar de cima. Siga pelo corredor, é a última porta! – se aproximou: - Lhe dei uma divisão melhor á pedido do senhor Emanuel.
- Obrigado senhora! – respondeu Júlio entendendo á que se referiu seu protetor quando falou num hábito da senhora Mafalda incomum no Brasil: ela exalava odor de perfume tentando disfarçar seu odor de suor. Banho não parecia fazer parte do cotidiano. Ele ia subindo e ela alertou: - Não está á se esquecer de nada?
Júlio pegou o dinheiro do aluguel adiantando e colocou na mão de Mafalda, que imediatamente o guardou no sutiã e chegou perto ao dizer; - Muito obrigada,... Bijuzinho!
Ele deu um sorriso de cortesia e subiu a escada resmungando: – Bijuzinho? Ai, ai, ai!- então seguir ao corredor apertado e baixo, que dava num cubículo onde havia cama, guarda roupa um cabide e uma janela muito pequena. O colchão era tão fino que Júlio parecia deitar-se direto no estrado da cama. – Se esta é a divisão melhor, eu nem quero ver a pior!
A rotina no apartamento consistia em levantar cedo e lutar por um lugar na fila do banheiro. Seu hábito de tomar banhos levava seus vizinhos a considerá-lo doente, enquanto dona Mafalda queria cobrar pelo uso de mais água. Café da manhã era num quiosque próximo ou na estação.
Seus vizinhos eram uma profusão de nacionalidades que ele não conhecia, mas quase não se falavam porque o apartamento era somente um dormitório para trabalhadores, operário, cafetões, e outros que era melhor nem querer saber; até porque Júlio não queria estabelecer amizades com ninguém. Tinha medo que isto lhe atrapalhasse. Mesmo Emanuel o tratava com certa frieza.
Numa tarde estavam na estação do Cais de Sodré, e Júlio se queixou: - Puxa vida; tu me tratas agora como se fôssemos estranhos!
- É para que tu não se apegues á mim. Não entendes ainda que isto pode te complicar?
- Eu sei,... Mas faz três meses que estou vivendo no apartamento daquela mulher, praticamente sem conversar com ninguém! Até me tomam por maluco.
- Ah,... Está bem ó pá! Vamos conversar um pouco. – Passou a mão na testa: - O calor este ano está a prometer!
- No Brasil seria outono agora, perto do inverno.
Emanuel deu de ombros: - O que não quer dizer nada! No Brasil eu pude perceber que faz calor o ano inteiro.
- Tu não gostaste da nada por lá?
- O que esperavas que eu encontrasse de bom trancafiado num sanatório de loucos? – ocorreu uma pausa: - Apenas aquele preto velho que por lá encontrei me trazia algum alento. Seu nome era Sebastião e dizia não saber á quantos anos ele estava internado naquele sítio. Um dia lhe contei o que me ocorreu; que fiz um desejo a um duende, e acabei naquele inferno, Ele me olhou e falou que todos os homens tem direito á escolha dos caminhos que deseja trilhar. A escolha é muito importante! – fez um muxoxo: - O problema é que cada escolha, também traz uma renúncia! Se eu escolho dormir até mais tarde, eu estou á renunciar a ver o nascer do sol! Se eu escolho seguir ao norte, estou á renunciar ao sul, ao leste e ao oeste; e nunca saberei se estes caminhos seriam melhores ou piores! Entendes?
- Sim. Isto me parece elementar.
Emanuel riu: - Ocorre que isto não é tão elementar, porque sempre haveremos de lamentar os caminhos que não trilhamos; os amores que recusamos no passado, as coisas que deixamos de fazer porque escolhemos outras. Isto faz parte do ser humano, neste mundo, ou no teu! Então quando o leprechaun nos oferece a oportunidade de conhecer outra vida, num passe de mágica, nós a agarramos! – suspirou: - Aí vemos o equívoco que isto pode representar, porque nem sempre a escolha nos leva á um sítio melhor!
- O senhor então acha que é melhor deixar que escolham por nós?
Emanuel abanou a cabeça: - Deixar que outros façam escolhas por nós, é por não termos coragem para escolher por nossa vontade. Este é um artifício que os covardes usam para ter á quem culpar! – arremedou a fala de uma mulher: - “Oh, sou muito triste; eu não me casei por que meu pai não deixou”, ou: - fazendo voz mais grossa: - “Se eu tivesse estudado medicina hoje seria feliz; e não o sou porque tu não deixaste!” Quantas vezes não ouvimos este tipo de queixume que já vem com o bode expiatório que carregará a culpa pela tua infelicidade? Ter á quem culpar é muito cômodo, mas lá no fundo d’alma, tu sabes que não fizeste o que querias, por covardia, e qualquer promessa de viver a vida que não viveu, será agarrada com unhas e dentes! – riso: - Mas será que o que tu querias e não fez, mesmo porque não o deixaram, teria sido bom? – deu de ombros.
- Tu estás a me dizer que isto que estou á passar á cá, é a realização de um desejo? Que absurdo!
- Não é nem um pouco absurdo, Júlio! Porque quanto tu desejaste um mundo diferente, sem zeros e sem o ano de 2020 que tanto desgosto te trouxe, em verdade o que lhe fazia infeliz era tua própria vida e as escolhas que tu fizeste, ou aquelas que antecederam tua existência, feitas pelos teus antepassados. – piscou o olho. – Os grandes culpados pelo teu infortúnio naquele mundo! Então, quando tu pediste ao gnomo irlandês que o colocasse num mundo diferente, ele te trouxe para á cá. Nós não temos zeros e nem o ano de 2020 existiu, então tu deverias estar contente!
- Mas eu não queria isto aqui!... Eu queria apenas,... – pausa. -... Uma vida diferente, mais feliz.
- E não haveria maneira de tu conseguires isto por lá, sem sortilégios? – suspirou: - A grande lição que o leprechaun nos traz, é que tu és senhor de teus destinos, contanto que saibas os escolher e arque com as consequências de tuas escolhas! Aquele ano do cão que passei no teu mundo fez-me morrer de saudades do meu mundo; por isto o gnomo me atendeu. Percebeu que aprendi a lição! – olhou-o: - Por tudo isto eu digo para não te apegar á nada por aqui. Até mesmo o sexo pode colocar tudo a perder!
- Sexo? Só se for com o travesseiro. – abanou a cabeça: - Obrigado por me ouvir Emanuel.
- Não há de quê... Ora, pois! Isto aqui está errado, eu não posso ser teu amigo,... Não deves se afeiçoar á mim! – abanou a cabeça e colocou a mão numa gaveta apanhando dinheiro: - Já vou remediar isto; hoje é dia do teu pagamento, e vou te dar só a metade do salário. Terás que se arranjar!
- Isto não é justo! – reclamou Júlio: - Eu trabalho feito um condenado!
- Ótimo, assim terás motivos para me odiar! Pegue o dinheiro e volte ao trabalho! Vou á banca do Rossio. – e saiu.
- Ó filho de uma puta! – resmungou Júlio com o minguado dinheiro na mão.
Os dias demoravam-se a se enlaçar em meses. Parecia que naquele mundo, as horas eram mais longas. Ás vezes, antes de abrir os olhos ainda deitado na cama, Júlio alimentava a esperança que tudo aquilo fosse um pesadelo, e ao despertar veria o ventilador de teto do seu quarto sobre sua cabeça; mas bastava abrir levemente a pálpebra para ver as tábuas mal ajustadas do teto do cubículo, que era um verdadeiro forno no verão.
Algumas vezes ele subiu ao terraço do prédio, á noite, para contemplar as luzes brilhando á contornar a paisagem de Lisboa; o que lhe deixava a pergunta, se a cidade no seu mundo também seria daquela maneira. Então cerrava os olhos, reforçando o desejo de voltar logo ao seu lugar.
Numa noite de sábado ele estava remoendo a saudade de seus filhos junto a medo de tê-los perdido para sempre, quando escutou Mafalda chamando-o no andar de baixo. Ela vestia um robe cor de rosa amarrado na cintura, e dizia: - Por favor, senhor Júlio; há um animal na minha divisão, e estou com medo! Expulse-o de lá, por favor?
Ele entrou á procura; era um ambiente muito enfeitado com uma grande cama no meio: - Não estou á encontrar! É um morcego?
Ela fechou a porta e disse: - O animal que me amedronta é a solidão! Oh,... Depois que meu marido se foi, nunca mais procurei ninguém. Uma pobre mulher como eu, pode ficar totalmente subjulgada á um crápula destes que rondam por á cá! – se aproximou: - Mas o senhor é diferente! Todos os gajos que alugam minhas divisões estão a fazer o quê á esta hora? – riso. – Estão á procura de rameiras aí pela rua! – chegou mais perto: - Mas tu não fazes isto; prefere ficar na tua divisão á meditar,... Percebe-se á olhos vistos que tu és um gajo de família! – abriu o robe desnudando os seios flácidos. – Não se deixe levar pela aparência deste apartamento, porque a verdade é que sou uma mulher muito rica. Eu possuo uma quinta na Beira Alta, e só não fico por lá por causa do perigo que pode ocorrer á uma mulher sozinha no campo! – encostou-se á ele. – Tu poderás ter uma boa vida se ficares comigo, bijuzinho!
Mesmo sem ser atraente, Mafalda era uma mulher encostando-se á ele depois de oito meses sem sexo, e seu corpo a desejou. Mas ele a repeliu: - Não!... Perdoe-me, mas eu não posso!
- Quer sim! – chegou perto colocando a mão entre suas pernas. – E quer muito! – abriu o robe e o agarrou.
- Largue-me, eu não posso! – Júlio conseguiu se livrar e falou: - Olhe senhora Mafalda; não é nada pessoal, mas eu não posso!... Não sou deste lugar!
- Mas que diabos tu estás á dizer?... Não podes por quê? Estou á te oferecer muito mais do que terás se trabalhares toda a tua vida miserável, e tu recusas?... Oh! – se afastou: - Agora estou á compreender: tu és um fronha?
- Não, eu não sou!... Mas eu não posso ficar com a senhora!
- Senhora é o caralho! Ah, como sou burra e não me apercebi! – abriu a gaveta da mesinha de cabeceira, pegou um revólver e apontou: - Saia imediatamente de minha casa seu indecente!
- Sim senhora,... Vou buscar minhas coisas!
Ela atirou, atingindo a parede ao lado de Júlio: - Não vai buscar merda nenhuma,... Eu não quero saber de fronhas por aqui! Isto é um lugar de respeito! Fora daqui! – e atirou novamente. Apavorado Júlio sai pelos corredores do prédio; outros moradores ouviram os gritos de Mafalda, e julgando que Júlio fosse um ladrão, passaram a agredi-lo com tapas e chutes. Á muito custo ele conseguiu chegar ao térreo, saiu disparado pela portaria e correu pela estrada.
Foi andando á casa de Emanuel, que o recebeu:
- A senhora Mafalda não é assim tão ruim! – riso: - É uma cachopa bem fornida, e tem um belo dote que muitos gajos matariam para poder colocar as mãos! – falou enquanto lhe colocava um curativo na testa. Júlio não respondeu e ele continuou: - Vejo que estás apenas com a roupa do corpo. Por esta noite tu ficas aqui, mas vou descontar de teu salário o vestuário que irei de ofertar.
- Obrigado...
- Amanhã arranjaremos uma nova casa para ti. – antes de sair do quarto, concluiu: - Tenhas paciência, faltam apenas quatro meses para o Natal e a passagem do ano!
Júlio fechou os olhos pensando: - Malditos quatro meses!
A nova moradia ficava na Jamaica, um bairro nos arredores de Lisboa ainda mais degradado que Chelas, com casebres de tijolos aparentes compondo favelas que não ficavam nada á deverem ás comunidades carentes brasileiras, com matagais, marginalidade e muito lixo. Os habitantes eram na maioria pretos vindos das colônias portuguesas na África. – Sim, naquele tempo ainda havia colônias! – além de pessoas cuja nacionalidade era totalmente desconhecida para Júlio. A regra ali era não olhar para os lados e nem perguntar nada. Sua casa era um barracão de tijolos á beira de um córrego poluído: possuía latrina e um fogão de lenha. Pelo menos não era compartilhado com outros moradores.
Ele se perguntava se era preciso provocar tanta repulsa á aquele lugar, mas Emanuel afirmava categoricamente que sim, e se colocava cada vez mais distante, evitando encontrá-lo.
Júlio sentia que seu protetor lhe nutria muita afeição, mas evitava demonstrar para não prejudicá-lo. Ele se lembrou do afastamento social provocado pela Covid em 2020, quando reclamava por não poder ir á bares e restaurantes, e nem ao menos tocar e abraçar seus próprios filhos. Mas ali, o afastamento era total. Chegava a sentir saudade até mesmo da máscara facial!
A vida se restringia ao trajeto do trabalho, e de volta á casa. Alimentos ele arranjava nos restos dos estabelecimentos da estação do Cais do Sodré.
Quando se olhava no espelho, a imagem que tanto estranhamento lhe causou, já não o espantava. Estava magro, mal vestido, com cabelos grandes e semblante derrotado. Portanto, qualquer face que portasse estaria assim. Algumas vezes se assustou á possibilidade de que aquela fosse sua verdadeira realidade, e que o mundo de 2020 fosse o delírio. Nesses momentos Emanuel lhe confortava dizendo: - Pare com esta bobagem! Tu não és deste mundo, tens paciência! Está quase á acabar!
Então chegou o dia 31 de dezembro. Júlio trancou a porta do barraco na esperança de nunca mais voltar, e seguiu á estação do Cais do Sodré. Mas Emanuel não estava na banca. Um rapaz lhe entregou um bilhete lacônico:
- As vinte duas horas tu deverá seguir á taberna deste endereço, É um lugar aprazível que na passagem do ano permanece aberto com o vicejador ligado passando programas musicais de fim de ano, mas também desenhos animados. Tu prestes atenção porque um tiquinho antes da meia noite o duende irlandês vai aparecer, e tu sabes o que tem a fazer.
- Sequer um desejo de “boa sorte”. – retrucou. O endereço da taberna se situava no bairro do Chiado.
Assim, Júlio chegava a um casarão: a taberna ficava no subsolo naquilo que chamam de sótão. Julio desceu a escada á um salão cheio de mesas já com alguns fregueses. Ele escolheu uma mesa adiante ao vicejador, e pediu uma garrafa de vinho.
Seu coração batia aos pulos entre taças daquele vinho delicioso enquanto terminava o programa musical, entrando um especial de desenhos. Júlio estava um pouco bêbado, e tentava não perder o foco do seu desejo, mas pensava no amigo Emanuel. Seu olhar triste traía suas palavras ásperas; no fundo sentiria falta do seu protegido vindo de outro tempo. Júlio olhava o vidro verde escuro da garrafa ainda pesaroso da perda daquela amizade quando escutou a voz do duende: - Eh, eh, eh! Vejam meu pote de ouro! – ele olhou o vicejador e lá estava ele com sua cartola verde segurando um tacho cheio de moedas douradas: - Assim que tiver a virada do ano, quem tocar no meu tesouro terá seu desejo realizado!- imediatamente ele se levantou e chegou perto do aparelho: - Eh, eh, eh, falta apenas um minuto! – É agora! – mas por um momento veio á lembrança de Emanuel e a toalha estampada de flores que usou para explicar o seu mundo de uma forma tão linda: – Oh meu amigo, obrigado!... – e ao voltar seu olhar para ao vicejador, o duende havia sumido e já passava um programa com danças, enquanto os frequentadores do bar se cumprimentavam. O ano novo de 2122 teve início naquele mundo.
- Oh não!... Onde está o duende? Não!... – desesperado ele tocava o vídeo do aparelho: - Eu quero ir embora daqui!... Eu desejo ir embora daqui!... – então começou a se ajoelhar. – Por favor, me atenda!... Eu não posso ficar aqui; quero ficar com meus filhos! ... – e foi se deitando no chão ainda chorando: - Por favor,... Me atenda,... Por favor...
O som de um telefone tocando ecoava ao longe.
Júlio abriu os olhos a muito custo, e a luz do sol vazava pela janela. Ele levantou a cabeça, e estava deitado no chão. Acima. A TV estava ligada passando a abertura do jornal da manhã.
Assustado ele se ergueu e olhou em volta: na TV a apresentadora do noticiário dizia: - Hoje é primeiro de janeiro de 2021! Bom dia! – ele estava na sala do seu apartamento, no Brasil, no seu tempo. Então se levantou cambaleante e correu ao espelho. - Sou eu,... Sou eu mesmo! Eu voltei! – e deu uma gargalhada.
Então seu celular tocou novamente; aquele aparelho tão pequeno! Era seu filho, e ele atendeu: - Pai! Aqui é o Júnior!
- Ah meu filho,... Vamos passar para o vídeo! – em instantes viu a imagem de seu filho caçula: - Que bom te ver,... Cadê teus irmãos? – os dois se juntaram ao caçula e falaram juntos: - feliz ano novo papai!
- Oh, feliz anos novo para vocês também!... Muitas felicidades, eu os amo muito!
- O senhor está chorando pai? A gente queria estar aí com o senhor, mas não pode; né?
- Vocês estão aqui, meus amores! – limpou uma lágrima: - Vocês estão comigo, aqui!
O fato é que tudo parecia tão bom para Júlio, que ele nem conseguia segurar a emoção de chorar até diante das coisas banais do cotidiano; aquele mesmo que parecia perdido. Ele se sentia mais leve e satisfeito. Até sua ex-mulher notou a diferença, pois não era mais o homem amargurado e grosseiro de antes.
Porém, após um tempo as lembranças daquele ano passado noutra dimensão pareciam diminuir ao tamanho de um sonho. – Como pode ser? Eu vivi aquilo!... Ou não? – Júlio se lançou numa pesquisa via internet, de um nome: Emanuel que possuía uma banca de jornais na Estação de trens do Cais do Sodré, em Lisboa. Mas as informações que surgiam, eram genéricas, não definindo exatamente que tipo de comercio existia por lá. Como ele não sabia o sobrenome de Emanuel, a pesquisa se tornava ainda mais infrutífera. Por fim veio uma informação desanimadora: Não havia bancas de jornais na estação de trens do Cais do Sodré.
Realmente a possibilidade de ter sido um sonho potencializado pelo uísque ingerido antes, era plausível.
Mas, passada a pandemia da Covid, Júlio decidiu viajar á Lisboa para conferir pessoalmente. Não seria possível conviver com a dúvida para o resto da vida. Ele levaria seus filhos.
Era uma manhã do mês de junho, no início do verão europeu, quando Júlio saia do hotel em Lisboa, e veio um estranhamento que, mesmo abusando da redundância, só poderia ser chamado de estranho, porque sentiu falta de ver mulheres trajadas como Maria Antonieta, e homens parecendo pop stars da música disco. Era tudo tão normal e ao mesmo tempo inusitado! Então buscou um taxi e lhe indicou o endereço de Emanuel, que se lembrava. O motorista perguntou: - Tens certeza que é este lugar da casa do teu amigo?
- Sim! Esta rua existe, né?
- Certamente! – apontou o GPS e rumou á ela.
Decepção: pois o que existia no lugar era um antigo armazém abandonado que ocupava todo o quarteirão. – Tem certeza que é aqui?
O motorista respondeu: - Sim senhor!
- Será que existiu uma casa aqui antes?
- Bem senhor; estas construções têm mais de duzentos anos, e se antes houve alguma casa à cá, acho difícil que teu amigo tenha vivido nela!
Então, conformado, Julio decidiu voltar ao hotel para sair com seus filhos. Havia papéis no assoalho do carro e os apanhou: - Parece que esqueceram um jornal do dia aqui!
- Journal? – o motorista riu: - Ah sim, é um periódico! Aqui o informativo encadernado em papel é chamado periódico!
- É verdade! – riu. – Eu esqueci,... Espere um pouco: periódicos? – apanhou seu telefone: - Que idiota sou! Estive fazendo a pesquisa com os nomes errados, por isto não apareceu nada! – e procurou no Google: “bancas de periódicos e revistas na estação de comboios do Cais do Sodré”. Em instantes veio á informação de que existia uma de nome “Emanuel Avelar”.
- Como pude esquecer-me dos periódicos e dos comboios? Motorista, siga á estação de comboios do Cais do Sodré!
Logo Júlio caminhava á entrada do prédio da estação, e era do mesmo jeito que se lembrava. No amplo saguão avistou a banca de “periódicos”. Não da maneira que conhecia: parecia menor, ou maior? Não importava. Ele foi aproximando e havia um homem de costas arrumando algumas revistas em exposição, e uma emoção tomou conta de seu coração. Júlio respirou fundo e se aproximou: - Olá, bom dia.
O homem se virou: - Bom dia senhor! – era ele mesmo; a barba grisalha, seus cabelos penteados para trás, e o mesmo olhar meigo nas retinas castanhas. Mas o que dizer?
- Posso ajudá-lo? – perguntou.
Júlio o fitou buscando alguma memória naquele olhar. Mas Emanuel olhava-o como que dá atenção á um freguês qualquer. – O senhor está precisando de alguma informação?
- Oh, não. Eu estou fazendo uma viagem de turismo,... E quis conhecer esta estação de trens... Quero dizer, comboios.
Emanuel riu: - Vejo que o senhor é brasileiro. Falamos o mesmo idioma, mas aparentemente com dialetos diferentes. Mas é tudo a mesma coisa!
Mas era o mesmo Emanuel, espirituoso de sua memória; mas de outro tempo noutra dimensão. Então ele respondeu: - É verdade. Bem, obrigado senhor Emanuel, tenha um bom dia!
- Bom dia senhor, e espero que aprecie nossa velha Lisboa. E se precisares de alguma informação mais especial, pode vir á cá. – piscou o olho: - Há lugares muito interessantes em Lisboa que não estão nos roteiros de turistas! – e riu. – Qual é sua graça, senhor?
- Me chamo Júlio!
- Muito prazer, senhor Júlio; sou Emanuel, e seja bem vindo!
Obrigado, senhor Emanuel! Eu voltarei. – e saiu da estação.
Na calçada, ele olhou em torno, os prédios e as árvores no tempo de sua escolha. O Emanuel do outro tempo foi á renúncia que teve que fazer. O desta dimensão, somente o tempo diria.
E entrou no táxi dizendo: - Vamos retornar ao hotel!
- Sim senhor. - E saiu.
No outro lado da rua, uma mulher olhava, e resmungou:
- Fronha!
FIM.
Parabéns Ramon, excelente conto!
ResponderExcluirParabéns, muito bom!
ResponderExcluirArrasou! Amei! Parabéns Ramon!
ResponderExcluirExcelente desfecho, Ramón. Adorei! Parabéns!
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