Ed. Palladium
Há lugares na cidade que parecem agregar figuras e histórias que passam ao largo daquilo que poderíamos chamar de normal. Não que a normalidade seja algo fácil de ser encontrado, ou até mesmo existir plenamente, mas o Edifício Palladium era um desses locais.
Já se contavam praticamente duas semanas do início da quarentena da Covid 19, no mês de março, e a maioria das pessoas se comportava como se estivesse de férias, mas não Adônis, ele já havia visto muito da vida e sentia que aquilo era muito mais sério do que muita gente avaliava. Fora adolescente na década de 1960, e se lembrava da guerra do Vietnã e do tricampeonato no México. Ouvia Beatles e sabia de cor as falas de Marlon Brando em "O Poderoso Chefão. Desconfiado que só ele, morava sozinho em um apartamento amplo de um prédio antigo bem perto do centro comercial da cidade.
Já fora casado, mas desde sua separação levava uma vida solitária. Possuía uma coleção de discos de vinil e DVDs e filmes antigos. Era um amante da música e do cinema, especialmente Hitchcock e Tarantino, e isto lhe aguçou a curiosidade investigativa.
Por conta desta verve desconfiada, começou a implicar com o novo vizinho logo que se mudou para o apartamento em frente ao dele. Chamava-se Heráclito, e era um tipo muito reservado, mas sempre o cumprimentava.
O vizinho saia muito pouco durante o dia e o apartamento estava sempre fechado e silencioso. Adônis o vira pelo olho mágico algumas vezes saindo tarde da noite e muitas vezes voltando com o dia clareando. Pensava, ele está muito velho para ir para a balada toda noite e não é possível que tenha uma namorada que ninguém nunca viu. Ainda mais com essas olheiras de quem não dorme há um século.
Depois do início da quarentena Adônis pensou que Heráclito ficaria mais quieto em casa, afinal se ele já era do grupo de risco, mas qual nada, o esquisitão continuou sua rotina de saídas noturnas, pelo menos três vezes por semana e ele não se conformava. - Ainda vou pegar esse camarada no pulo! O que ele faz eu não sei, mas sei que é coisa errada.
Heráclito se espreguiçava na cama, e olhou seu relógio Rolex: 16hs30min. Então se levantou e foi tomar uma ducha. Desde sua aposentadoria do cargo de procurador da República, abraçou de vez a vida noturna que sempre preferiu aos raios solares. Assim, trocava o dia pelas madrugadas ouvindo jazz de Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Chat Baker e outros do mesmo naipe enquanto pintava quadros ou lia seus autores favoritos, Jean Genet, Hemingway e os americanos da geração perdida, os beatnik. Era um homem culto, sofisticado e, mesmo aos sessenta e três anos, muito atraente ás mulheres, um pouco pela chancela de “bem sucedido”, e pelo seu olhar penetrante realçando seus olhos azuis quase violeta em olheiras permanentes, até hipnóticas, num rosto másculo onde a passagem do tempo parecia só melhorar. Após o banho, olhava-se no espelho passando a mão nos cabelos grisalhos cortados bem baixos, e novamente conferia as horas. Para ele, ficar em casa durante o dia era fácil, porque quase sempre estava dormindo, Suas saídas se davam preferencialmente ás noites, para compras ou outra atividade. Quanto ás aglomerações, mais fácil ainda evitá-las porque as detestava! Heráclito era um solitário muito discreto; sabia-se apenas que já teria sido casado, sem filhos.
Após o inicio de noite dedicado á pintura de um quadro soturno em cores escuras, Heráclito olhou as horas: 23hs56min. Então foi ao banheiro para mais uma ducha. Depois voltou ao quarto onde buscou seu terno preto, entre outros todos pretos; uma camisa de seda também preta e sapatos e meias idem. 1h22min; hora de sair.
Buscou as chaves do seu Porsche 911 Carrera S negro e abriu a porta do seu apartamento. Deu uma longa respirada como quem busca no ar a liberdade antes de colocar a máscara, e seguiu ao elevador. Ainda olhou para trás com a sensação que alguém o espiava, mas deu de ombros e entrou.
A desconfiança começou no final de setembro de 2019 quando Adônis começou a ver movimento no apartamento 502 que ficava de frente para o seu.
Quando se mudou para o edifício Palladium há quase três anos, após sua separação, aquele apartamento era ocupado por uma viúva idosa chamada Iracema, que havia falecido há pouco. Mas não permaneceu muito tempo fechado, sendo logo adquirido por Heráclito. Era um apartamento de fundos, bastante escuro, mas aparentemente seu novo vizinho não se incomodava com estes detalhes e começou rapidamente uma grande reforma no imóvel. Adônis percebeu que o comprador do apartamento não era uma pessoa de poucas posses, o que lhe causou estranheza, pois se tivesse recursos ele próprio se mudaria dali, e não gastaria dinheiro com reformas.
Porém, o prédio guardava certo charme. Sua fachada em estilo art-déco era sem dúvida imponente com escadarias de mármore guarnecidas de corrimãos de ferro cobertos com madeira de boa qualidade e elevador com porta pantográfica dourada. Enfim era bonito, mas em uma área que com os anos se tornara decadente além de ter o grave problema de ser pouco favorecido pela luz do sol. O apartamento de Adônis sofria menos com este problema por ser de frente.
A reforma se estendeu por quase um mês, sempre de portas fechadas, Adônis até tentava, mas nunca conseguia ver o interior do apartamento; mas quando os móveis começaram a chegar, eram móveis antigos e requintados. Os apartamentos ali eram amplos, o que neste caso seria muito útil, pois eram muitos móveis. Arcas, baús, estantes e muitas caixas.
Um dia Adônis foi pegar seu Jeep Willys 58 para dar uma volta, o que normalmente só fazia aos sábados. Esta era uma vantagem de morar perto do centro, ele quase não usava carro.
A garagem ficava no subsolo e havia uma pequena escada no hall de entrada ao lado da porta do elevador, que levava até ela, e quando acabou de descer a escada e acendeu a luz da garagem, Adônis quase caiu duro de susto, ao lado do seu Jeep havia um Porsche preto estalando de novo na vaga do apartamento 502. Maior ainda foi seu susto quando a porta do Porsche se abriu e saiu de Lá, seu novo vizinho que estava ali na garagem totalmente escura aparentemente chegando, eram sete da manhã, e Adônis ficou impressionado com sua pele muito branca, quase translúcida. Parecia nunca ter tomado sol na vida, e quando ele tirou os óculos escuros para cumprimentá-lo lhe chamaram a atenção suas olheiras fundas. – Bom dia. – Você deve ser meu vizinho de porta, Adônis? O porteiro me falou seu nome. Sou Heráclito! - disse isso, pegou uma pequena valise no banco de trás e subiu a escada.
Adônis ficou muito impressionado com este primeiro encontro. Entrou em seu Jeep e saiu para fazer seu passeio de sábado. Mas durante aquele final de semana pensou em como tudo aquilo era estranho.
Nos meses seguintes via pouquíssimo o novo vizinho, o apartamento estava sempre fechado e o Porsche, sempre na garagem, pelo menos durante o dia.
2
Quando Heráclito foi viver no Edifício Palladium, havia um clima de luto, pois a senhora Iracema, - antiga moradora do apartamento 502 - era a síndica. Assim, na primeira reunião dos condôminos fez-se necessário eleger novo síndico, e como nenhum dos moradores parecia disposto a arcar com tamanha responsabilidade, Heráclito se colocou como candidato apresentando suas credenciais de homem público, ex-funcionário da Procuradoria da República com uma carreira irrepreensível. Adônis se colocou na outra chapa, apoiado numa ala mais conservadora que não considerava um forasteiro ideal para o cargo. Porém, Dona Adelaide, que ocupava o apartamento de cobertura, lembrou que segundo os estatutos do Edifício Palladium, moradores com atrasos nos pagamentos do condomínio estavam impedidos de concorrer ao posto de síndico, porque, referindo com ironia: - Como ele poderá cobrar dos outros, algo que não cobra dele mesmo? – Então Heráclito venceu, e Adônis saiu da reunião lavado na humilhação. - Liga não. Essa véia é nojenta assim mesmo! – disse-lhe Doca.
E de fato, Heráclito cumpria as obrigações do cargo com rara eficácia. Resolveu desavenças pela colocação do lixo; do uso do salão de festas, que clamava por atenção e o novo síndico o deixou com ares de hotel cinco estrelas; e uso das vagas da garagem. Tudo isto se valendo da sua capacidade de persuasão que, como dizia Doca: - Convence até o papa virar aiatolá!
Em março, quando regras mais severas no transito nas dependências comuns do edifício se fizeram necessárias por causa da pandemia, Heráclito deliberou, entre outras coisas, que entregadores de delivery nunca entrassem no saguão do prédio. Qualquer encomenda seria recebida ao portão por Doca, que deveria apresentar-se de máscara, luvas e até avental, substituídos a cada nova entrega. Retirou todos os móveis estofados do saguão a fim de evitar contato social, e mesmo a colocação do lixo, devia obedecer a uma escala para que não fossem todos de uma vez. Até o elevador devia ser limpo a cada uso. Tudo muito sensato. Porém, Doca considerava as regras exageradas. Na verdade isto lhe criava uma trabalheira tremenda em ter sempre que trocar máscaras e roupas a cada vez que precisava ir a portaria receber encomendas. Sua máquina de lavar simplesmente não dava conta, além da limpeza constante nos elevadores. Assim, ele driblava as regras na encolha. Contudo, no mês de abril, Doca foi hospitalizado às pressas com pneumonia já em estado crítico, e foi à óbito, obviamente por Covid! Mais um trauma no Edifício Palladium. Dona Adelaide abanava a cabeça ao dizer: - Falei tanto para ele sossegar; mas era só ter uma chance para correr ao buteco! – suspiro: - Que lamentável! – Adônis tinha vontade de mandá-la á merda, mas se segurava.
Na reunião dos condôminos, Adônis sugeriu contratar o filho de Doca, que também era porteiro e estava desempregado. Mas Heráclito já havia feito contato com uma conservadora que forneceria dois porteiros, um diurno e um noturno, com custo mais baixo, uma vez que eles não precisariam viver no edifício, como Doca fazia e nem seriam empregados diretos, significando eliminação de encargos trabalhistas. Para tal apresentou várias planilhas de custo que comprovavam sua tese; que foi aceita e aplaudida por todos os moradores; menos por Adônis que ia argumentar, mas novamente a senhora Adelaide interveio com uma pergunta: - O senhor já quitou suas pendências?... Ah, então não pode votar! – ele se calou, mas pensou: - Dá vontade de esganar essa velha!
Os novos porteiros eram de uma eficiência germânica trajando uniformes impecavelmente limpos e ajustados, que em nada lembravam a deselegância discreta de Doca e seu radinho de pilha. O Edifício Palladium parecia até retornar ao seu período áureo!
Num início de noite, Heráclito chegou à portaria; Adônis estava no elevador e apertou o botão do quinto andar rápido para obrigá-lo subir pelo elevador de serviço. Mas o elevador o aguardou, e Heráclito entrou. Carregava uma tela em branco e falava ao celular: - Não me apresse, por favor! Não existe obra bem feita e rápida ao mesmo tempo. A arte, qualquer que seja não é feita á toque de caixa!... Eu sei disto; mas tenha um pouco mais de paciência, que eu garanto que não vai se arrepender!... Certo, certo. Falamo-nos depois, um abraço! – e desligou. Depois olhou Adonis, sorriu e disse: - É o meu marchand, como sempre me apressando. Ah, depois que aposentei pude me dedicar ás coisas que realmente gosto. E a pintura é uma delas, e minha arte é muito vigorosa, mas extremamente minuciosa! – o elevador chegou ao quinto andar e ele saiu: - Boa noite senhor Adônis! Um dia lhe convido para ver minhas telas,... Quero dizer, quando acabar esta pandemia infernal! – abriu a porta do apartamento 502, e entrou.
Por volta das 2hs30min, Heráclito saiu novamente, entrando no elevador. Porém, não seguiu á portaria, e sim, á cobertura.
3
O mês de abril estava sendo pesado para Adônis, por duas vezes tinha sido voto vencido nas assembleias de condomínio, e viu seu vizinho – um forasteiro - começar a mandar no "Palladium" com a concordância de todos, especialmente dona Adelaide. Ela sabia que ele sempre fora um ótimo condômino. Não tinha muitas posses mas recebia uma aposentadoria razoável como ex-professor de história do ensino médio. O dinheiro sempre fora suficiente para arcar com as despesas que tinha mais a prestação do apartamento financiado a perder de vista. Mas Adônis tinha um irmão mais jovem que estava desempregado e a quem vinha ajudando nos últimos meses, daí os atrasos na taxa de condomínio. Ela não tinha o direito de cobrá-lo em público, apesar de todos no prédio conhecerem sua fama de "sovina".
Mas o que mais incomodava Adônis naquele início de outono era a estranha e prematura morte de Doca. Eles haviam conversado algumas vezes desde que o novo vizinho assumira a função de síndico e doca sempre relatava que não gostava dele. Achava sua atitude arrogante e todos os condôminos sabiam que ele não se sentia confortável com as novas regras. Naquela semana Doca saiu na sexta e disse que iria visitar a filha na "roça" e que voltaria na segunda, estava visivelmente chateado, Adônis foi o último a falar com ele naquela tarde. - Pois é seu Adônis, aqui era muito bom de trabalhar, mas agora com esse seu Heráclito no meu pé, tá difícil. To pensando até em pedir conta.
Adônis aconselhou: - Pense bem, Doca descanse esse final de semana e avalie, de qualquer forma, a decisão que você tomar eu vou entender. Você é amigo e sabe disso!
Despediram-se a moda de luta, como mandava a nova regra do condomínio, e Doca saiu pelo portão. Adônis não podia imaginar que era a última vez que se viam. Na semana seguinte receberam a notícia de seu internamento e alguns dias depois de sua morte. O funeral foi com o caixão lacrado devido á pandemia.
Adônis tinha certeza que alguma coisa ali estava mal explicada. – Há algo de podre no reino da Dinamarca!
Naquela tarde, Heráclito descansava no sofá da sala enquanto filosofava: “Pentimento” é o processo artístico no qual o pintor faz uma alteração numa obra. Onde está o oceano, pode ser pintado um campo; se três figuras numa composição parecem demais, elimina-se uma delas. É uma questão de escolha ou adequação. A palavra significa “arrependimento” em italiano. Na manhã seguinte haveria mais uma reunião de condomínio, quando a maioria dos moradores estaria ciente da decisão de Dona Adelaide em não renovar o contrato de locação dos seus apartamentos, na verdade, quase todos daquele prédio. – Pobre mulher! – pensava com ironia, pois ela era rica e ainda tinha os aluguéis daquele prédio decadente, herança do seu falecido marido. Os locatários de seus apartamentos teriam que sair. Portanto, não seria uma reunião fácil, até porque Heráclito odiava compromissos matinais. Ele ia correndo os olhos nos quadros seus, pendurados ás paredes; todos eles retratos. Havia dois particularmente importantes que retrataram figuras ilustres da história política do país: O presidente Tancredo Neves e o parlamentar Ulisses Guimarães. O doutor Tancredo, ele não chegou a conhecer pessoalmente, porque faleceu pouco após sua posse na presidência da República em 1985. Heráclito havia chegado á Brasília naquele ano e aquele quadro, de certa forma, marcou uma escolha. Já o doutor Ulisses ele teve o prazer de conhecer, até mesmo frequentando sua residência. Aquele homem corajoso, que enfrentou os anos de chumbo da ditadura, era admirável. Seu retrato em óleo representou também uma escolha. Ele abanou a cabeça ao pensar: – Ah... Se fosse possível um “pentimento”, não só nestas telas, mas também nas nossas escolhas! De súbito bateram á porta. Só podia ser algum morador, e isto o irritou porque deixou claro a todos que lhe comunicassem apenas por mensagens nas redes, e somente o necessário. Ao abrir, era um jovem não morador do prédio: - Boa tarde; o senhor é o doutor Heráclito?
- Sim, sou eu. Quem é você, e como entrou?
- Sou Antonio do Carmo Junior; filho do Doca! Eu tenho a chave da portaria.
- Ah sim! – estendeu a mão: - Então, por favor, pode me entregar a chave?
Ele entregou o pequeno chaveiro, e disse: - Desculpe aí se não telefonei. Não tinha seu número.
- Não ha problemas meu jovem. Bem, tenha uma boa tarde então. – e ia fechando a porta.
- Espere doutor! Não vim só entregar a chave. Vim falar com a Dona Adelaide, mas acho que ela não tá em casa. Aí vim ver se o doutor me ajuda!
- Em que posso ajudá-lo?
- Bem,... É que estou tendo um probleminha com um documento. É que meu pai morava num apartamento dela, no térreo nos fundos. O doutor sabe disto?
- Sim, sabia. Mas o que eu tenho a ver com isto?
- É que, quando meu pai veio trabalhar aqui, o marido da Dona Adelaide ainda era vivo. Meu pai foi criado na fazenda da família do marido dela, que gostava muito do meu pai. Então antes dele morrer, ele deixou o apartamento para meu pai! – pegou um papel amassado no bolso da jaqueta. – Deixou isso em documento, olha aí: mas agora a Dona Adelaide não quer honrar! Aí eu queria ver se o senhor fala com ela, para aceitar.
- Deixe-me ver. – apanhou o papel com certo asco e riu ao responder: - Meu amigo: isto aqui é apenas uma declaração; um documento de gaveta sem registro em cartório que sequer está datado! – devolveu-o: - Isto não tem qualquer valor jurídico, meu jovem!
- Não! – pegou o papel: - Tem sim; era desejo dele não deixar meu pai no desamparo! Eu tenho meus direitos!
Heráclito se aproximou retirando a máscara: - Olhe aqui rapaz; quer um conselho? Se esqueça disto! Rasgue este papelzinho e suma daqui, para o seu bem!
Mesmo assustado ante aquele olhar frio, o jovem desafiou: - To de boa!... Eu queria fazer na paz; mas se não tem jeito, vai ser na justiça! – e saiu na direção do elevador rapidamente, e desceu.
Heráclito entrou um instante, apanhou um caderno de desenho e um lápis, e seguiu ao elevador de serviços, e enquanto descia, ia desenhando o retrato do jovem com extrema rapidez nos traços e num realismo espantoso. Depois o fitou com raiva, chegando a amassar o caderno. O elevador chegou e ele seguiu pelo saguão do prédio sob o olhar do porteiro. Heráclito parou diante dele e desferiu-lhe um bofetão que até arrancou sua máscara. – Imbecil!... Não podia tê-lo deixado subir!
Ainda com a mão no rosto ele respondeu: - Mas senhor, ele possuía chave...! – Mal teve tempo de concluir, pois ecoou o silvo de uma freada violenta à entrada do prédio, seguida de um baque e um grito.
Heráclito chegou á portaria. Um caminhão havia atropelado o filho de Doca, que jazia morto no asfalto. Na sua mão aberta, estava o papel guardado com tanto desvelo. Heráclito deu um leve sopro, e o documento flutuou até uma boca de lobo á sarjeta.
O porteiro veio, e Heráclito o agarrou pelo colarinho. – Eu devia acabar com você!... – olhou o corpo ensanguentado: - Chame a polícia. Ele atravessou a rua sem prestar atenção. Entendeu?
- Sim doutor!
- Despesas com sepultamento, serão por minha conta. – largou-o e voltou ao apartamento 502.
Entrou e correu ao banheiro para vomitar.
Adônis estava fazendo um café quando ouviu o baque seco do caminhão batendo contra o corpo do rapaz na portaria do prédio. Na mesma hora ele desligou o fogão e desceu. Na portaria, passou pelo porteiro sem reparar o quanto ele estava apavorado. O resgate e a polícia haviam chegado. Ele ficou muito assustado com a cena. Deu pra ver que era um rapaz muito jovem, ouviu alguém dizendo que ele tinha saído correndo do prédio e aparentemente não atentou ao caminhão de refrigerantes que dobrava a esquina.
Adônis voltou ao saguão do edifício Paladium que por ser todo de mármore e com o pé direito duplo sempre era mais fresco mesmo em dias quentes como aquele, e se aproximou do porteiro: - Você viu o que aconteceu? – ainda com o rosto marcado pelo safanão de Heráclito olhou para Adônis e respondeu: - Eu não sei o que aconteceu, este rapaz passou por mim voando e subiu ao quinto andar antes que eu pudesse avisar ao seu Heráclito, logo em seguida desceu correndo. – Adônis estranhou: - Como assim?
O rapaz respondeu com ar indignado: - O senhor Heráclito chegou a me dar um tapa na cara por eu não ter barrado o rapaz, mas eu não tive culpa! - passou a mão no rosto sob a máscara que ainda ardia e prosseguiu: - Ele me pediu para ligar á funerária: disse que pagaria tudo. – Adônis respondeu: - Que história mais estranha! Ele não podia ter lhe agredido. Se quiser prestar queixa à polícia eu te ajudo. – o rapaz respondeu com semblante de revolta: - Não, senhor Adônis, de jeito nenhum, eu preciso do emprego. Uma última coisa. O rapaz estava com este papel na mão. - pegou um papel todo amassado e sujo, o entregou a Adônis e relatou: - O porteiro do prédio ao lado estava na porta quando tudo aconteceu; ele viu o senhor Heráclito tirar sua máscara e soprar e este papel saiu da mão do rapaz e caiu no bueiro aí em frente, mas ficou preso na grade. O porteiro achou aquilo muito estranho, e me entregou!
Adônis pegou o papel: - Ele fez muito bem, eu vou dar uma olhada depois. Se precisar de alguma coisa me fale. - depois e subiu, estava ansioso por chegar ao seu apartamento e ler aquele papel amassado e sujo de sangue.
Naquele momento, Heráclito fechou seus olhos e falou: - Rapaz estúpido! – depois sorriu: - Mas pensando bem; vai até me facilitar. – se voltou á tela que pintava e a riscou com um borrão de tinta vermelha: - Não vou mais precisar disto.
Era 2h25min da madrugada, quando Heráclito deixou seu apartamento e desceu á portaria.
O mesmo porteiro da tarde abriu a porta do elevador. Heráclito se colocou diante dele. O rapaz o temeu, mas falou: - Doutor. Sobre o que aconteceu esta tarde; não achei justo o doutor me agredir.
Heráclito colocou o dedo nos seus lábios e respondeu: - Shhhhh! Às vezes sou um pouco rude, e peço perdão! – e o encarou mais de perto com suas retinas violetas: - Porém, costumo ser muito mais rude com traidores! – lhe deu tapinhas na bochecha e concluiu: - Que pena. – e saiu.
Ele ia guiando seu belo Porsche negro pela cidade em busca de um lugar específico; o ateliê de um pintor obscuro numa vila, no subúrbio. Lugar ermo que qualquer um teria medo de entrar. Tocou a campainha e logo o artista veio atender; era um homem na meia idade magro, alto e com aparência suja que recebeu Heráclito com mesuras exageradas como quem recebe o redentor: - Seja bem vindo doutor! – havia álcool no seu hálito. – Entre, entre! O doutor achou minha casa fácil?
Cortou-o: - Sim! Mas, por favor, sem delongas; vamos começar?
- Oh sim, claro doutor! Está tudo do jeito que combinamos; sente-se aqui! – mostrou uma cadeira de madeira repleta de nódoas ressecadas de tintas: - Se quiser algo para beber, é só falar doutor. Tenho uísque e água. – Heráclito olhou uma bandeja com alguns copos e uma garrafa de uísque que ele não usaria sequer como desinfetante. Depois o pintor se colocou adiante do seu cavalete onde havia uma tela em branco ao lado de palhetas de tinta cujas cores mal se definiam. – O doutor não vai se arrepender!
- Realmente, eu espero que não!
O homem começou a riscar a tela com fusain na produção do esboço. Olhou-o e perguntou: - O doutor quer ver?
- Ainda não! Só quando estiver pronto.
O artista assentiu com gesto de cabeça e depois seguiu á colocação da tinta. Era rápido. Nas paredes viam-se inúmeras telas, algumas sem conclusão e cobertas de poeira, indicando que jamais seriam. Tinha um recorte de jornal bem antigo trazendo matéria de uma exposição daquele artista em Roma, mostrando que ele já tivera destaque e brilho, que esperava resgatar retratando o ilustre ex-procurador.
Depois de três horas o quadro estava concluído. O pintor até arfava: - Pronto,... Está pronto!... – limpou a testa, afastando os cabelos molhados de suor, e falou: - Veja doutor,... Olhe bem. Se alguma coisa não agradar, é só falar que eu conserto!
Heráclito se colocou diante do quadro: um retrato onde seu rosto pálido aparecia sobre um fundo escuro e ao mesmo tempo bruxuleante. Uma pintura que remetia ao mestre Rembrandt. Decididamente, aquele miserável com olhar de súplica era um artista de talento perdido no anonimato cruel das circunstâncias. Mas era preciso sublimar a admiração e a piedade, e seguir á meta que o levou ali. Ele abanou a cabeça e falou ríspido: - Eu nem posso acreditar que vim aqui neste lugar infecto, que me indicaram como sendo o ateliê de um artista injustiçado pelo mercado, para ver uma coisa tão medíocre e horrenda como esta tela! – o pintor arregalou os olhos enquanto ele prosseguia: - Isto não passa de um pastiche de arte, horroroso e sem qualquer resquício de qualidade! – olhou-o: - Bem que me alertaram que não passava de um bêbado metido a artista. Que pintura de merda! – e continuou olhando-o; sua expressão era colérica, pronto a lhe agredir fisicamente. – me odeie, vamos! – pensava. Então voltou o ar suplicante ao olhar do pintor: - Oh não doutor,... Realmente não ficou muito bom, né?... Olhe, eu posso consertar; onde o doutor acha que ficou ruim? – Furioso Heráclito chutou o cavalete atirando a tela ao chão. O pintor ajoelhou, apanhando a pintura com mãos trêmulas: - Desculpe doutor!... Eu faço outra! – Heráclito não respondeu e seguiu á porta; o homem se levantou e o segurou pelo braço: - Por caridade doutor,... Me ajuda!... Eu faço outro muito melhor! – Ele cerrou os olhos dizendo: - Largue-me!... Não me faça odiá-lo! - e meteu a mão no bolso, atirando algumas cédulas ao chão, ao que o pobre infeliz se jogou para pegar.
Heráclito saiu da casa quase lhe faltando ar, abrindo o colarinho da camisa. Havia um grupo de jovens rodeando seu carro, mas ao verem suas retinas incandescentes se afastaram correndo. Ele entrou e arrancou a toda velocidade.
Então abanou a cabeça ao questionar: - Por que a miséria humana precisa ser tão degradante? – olhou-se no retrovisor e concluiu: - Por que...?
Ao chegar á entrada do Edifício Palladium, havia carros da polícia, ambulância e um burburinho de moradores, que ao verem Heráclito chegando logo o rodearam para relatar mais uma tragédia: o porteiro – o mesmo que ele esbofeteou. – tinha subido ao apartamento de cobertura bateu á porta e dominou dona Adelaide, que gritou por socorro. Alguns moradores ouviram disparos de arma de fogo e chamaram a polícia. Quando entraram no apartamento, ela jazia morta com um tiro no peito. O corpo do rapaz foi encontrado na varanda; ele tinha cometido suicídio atirando na própria cabeça. A arma estava na sua mão.
Estavam todos assustados e consternados.
- Inacreditável! Ele veio trabalhar conosco à pouco; tinha boas referências, eu não consigo imaginar o que o levou à fazer uma barbaridade dessas! – explicava á policia quando alguém aventou a hipótese de uso de drogas. – É possível. Esta praga destrói as pessoas e as faz cometer crimes. – abanou a cabeça. – Sinto-me culpado; fui eu que o contratei! – os moradores o consolaram com palavras de apoio. Menos Adônis.
4
Adônis chegou ao seu andar e abriu apressadamente a porta de seu apartamento, desde que o novo vizinho se mudara ele evitava se demorar ali no corredor; estava muito ansioso para ler aquele papel amassado e sujo. Leu incrédulo que o falecido marido de Adelaide havia feito de próprio punho um documento onde transferia a posse do pequeno apartamento térreo para Doca. Como este falecera, seus filhos seriam agora os herdeiros. Mas um deles Havia morrido atropelado na porta do Palladium à apenas alguns minutos, então concluiu Adônis, a filha que morava na "roça" também estava em perigo. Ele recordava que em suas conversas com Doca, este sempre lhe falava da filha que morava em um lugarejo próximo chamado Rio Claro. Adônis estava decidido, sairia no dia seguinte cedo para avisá-la de que sua vida podia estar em risco.
Já era noite, então ele resolveu que iria tomar banho, comer alguma coisa e dormir mais cedo, pois na manhã seguinte se levantaria com o sol.
Por volta das 4 da madrugada Adônis foi acordado com um disparo vindo do apartamento de cima, seguido pelo barulho de um corpo caindo ao chão. Em seguida, outro disparo e outro baque surdo.
Adônis se levantou apavorado e subiu as escadas correndo ainda de pijama, foi o primeiro morador a chegar ao apartamento de Adelaide, não podia acreditar no que via parecia uma cena de Pulp-fiction. A mulher jazia em sua sala sobre uma enorme poça de sangue. Ao lado, o corpo do jovem porteiro que Heráclito agredira á tarde. Era tudo de uma brutalidade inacreditável. Mas o tempo todo ele só conseguia pensar que o responsável por todos aqueles eventos trágicos era Heráclito. Sim, ele tinha certeza que o mal se mudara para o Palladium e por mais que estivesse apavorado, Adônis sentia que somente ele poderia desmascará-lo, saiu dali antes que a polícia chegasse e o impedisse. Então voltou ao seu apartamento, se vestiu e nem ao menos tomou café da manhã, subiu em uma cadeira e tateou em cima de seu guarda-roupas, rapidamente seus dedos tocaram a caixa empoeirada. Dentro dela estava o Taurus 38 que precisara usar uma única vez na vida. Conferiu se estava carregado, travou e colocou dentro de uma bolsa de couro bem anos 70. Seguiu direto à garagem e saiu com seu Jeep antes mesmo do nascer do sol, o prédio estava um alvoroço só e ele deu um jeito de ir antes que quisessem interrogá-lo, não tinha tempo a perder, pois acreditava que a vida de ísis, filha de Doca estava em perigo e agora dependia dele encontrá-la antes de Heráclito.
Adônis chegou ao pequeno lugarejo por volta de 9 da manhã e parou em uma venda para pedir informações e logo encontrou o sítio da filha de doca, mas ela havia saído cedo para o sepultamento do seu irmão, na cidade.
- Odeio ser traído! – remoia Heráclito naquela sensação de estar sendo enganado e usado novamente. Ele nunca experimentou culpa, remorso ou qualquer sentimento diante de seus atos homicidas. Era como se o ódio e a vingança fossem ações ungidas de legitimidade. Tinha sido assim desde a adolescência quando percebeu que possuía um dom especial: o de matar com a mente! Dom útil em Brasília quando chegou como um jovem e ambicioso Procurador da República. Seu poder não passou despercebido ao ilustre Senador Macieira, marido de Dona Adelaide, que logo o apadrinhou. Vieram os encontros secretos numa das mansões do Lago Paranoá onde aperfeiçoou aquele dom maldito mergulhando fundo na magia negra do vodu. Era impressionante; bastava que Heráclito fizesse seu retrato para que um desafeto tivesse seu fim. Um dom maravilhoso e extremamente útil na Capital da República!
Assim, o Doutor Heráclito teve uma brilhante carreira em Brasília em troca dos seus préstimos sobrenaturais. Temido e odiado, mas não o bastante e nem do modo adequado. As paredes de sua sala ostentavam os retratos de suas vitimas mais ilustres como troféus: o ex-presidente que não empossou, e o parlamentar. Talvez os únicos indícios de culpa que deveria ter.
Foi Dona Adelaide que lhe falou do Edifício Palladium. Havia um bom apartamento cuja proprietária estaria reticente em se desfazer, mas quem sabe mudaria de ideia com uma boa oferta? Contudo, quem encontrou no apartamento 502 foi Dona Iracema, a mesma mulher que décadas antes expulsou Heráclito e sua família de suas terras mediante grilagem. Obviamente ela o recebeu mal e o insultou ao lembrar-se que antes, Heráclito em criança, foi um de seus boias-frias. Isto o deixou inundando de ódio: assim, a vingança lhe fez justiça, sem qualquer culpa.
Depois foi a vez de Doca que não lhe trazia qualquer sentimento bom ou ruim, até o dia que Dona Adelaide contou que pela frente o recebia com sorrisos, mas fazia intriguinhas pelas costas. Foi muito fácil eliminá-lo! Depois seu filho ao lhe fazer desaforos na porta de seu apartamento. Mais um verme a menos! Contudo, algo não fechava nesta história: Por que Dona Adelaide o colocou ali sabendo do seu ódio pela mulher que tanto mal fez á sua família? É evidente que ela o estava usando. Portanto, usar aquele porteirinho traidor como vingador foi á saída mais fácil para dar fim a viúva do senador.
Este era um lado do doutor Heráclito. O outro, ainda mais obscuro e dúbio, trazia uma alma atormentada pelas culpas que não conseguia sentir, mas sabia que devia. Era evidente o monstro psicopata que se tornara; o mesmo que induziu a esposa ao suicídio ao desconfiar de uma traição. Porém, foi o mesmo que fugiu do ateliê do pobre pintor por medo que seu ódio o destruísse. Ainda havia algum resquício de algo que ele não mensurava, mas desejava: a redenção. Ele sabia como obtê-la, mesmo a custa da própria destruição, e tinha total convicção de que iria para o inferno, ou algum outro lugar reservado aos monstros, mas queria ao menos chegar lá com algum arrependimento na bagagem. No fundo, pressentia que seu fim estaria próximo.
Ísis chegou ao Ed. Palladium por volta de 11h, ela dissera a todos no vilarejo que estava indo para o velório do irmão, que na verdade nem era seu irmão. Doca a criara como filha em nome da amizade que tinha pelo senador, seu pai verdadeiro. Ela era fruto de uma relação do senador com uma garota de programa. Na impossibilidade de assumi-la, ele pedira ao porteiro que a criasse como filha e prometeu prover tudo que a menina precisasse. Doca relutou, mas acabou aceitando. O senador prometeu-lhe ainda o apartamento térreo no Ed. Palladium onde ele já morava com a esposa e o filho recém-nascido. Mas a esposa de Doca, não pôde aceitar o compromisso assumido pelo marido e o deixou, e ele, cuidou sozinho dos dois filhos. Quando Ísis ficou adulta, Doca convenceu o senador a lhe comprar um sítio, que era o sonho da moça. Doca acabou revelando ás ela toda a verdade. Apesar de gostar do pai que a adotou de coração aberto, Ísis nunca se conformou com a rejeição do pai verdadeiro.
Ela agora iria atrás do assassino do pai e do irmão, já havia aceitado injustiça suficiente para uma vida.
5
Perceber que o fim da linha está próximo era uma sensação dúbia, de alívio e medo. Não se sabe o que virá depois: talvez o nada!
Heráclito concluía mais um retrato. Colocou os pincéis de lado e contemplou o quadro, perfeito como sempre. De súbito escutou barulho na porta da frente: uma chave girando e o rangido das dobradiças; alguém estava entrando no seu apartamento.
Ele virou e se deparou com uma jovem bonita que o olhava fixo. – Olá,... Senhora ou senhorita?... Como entrou na minha casa uma vez que a porta estava trancada?
- Eu tenho a chave!
- É evidente que a tem, mas como a conseguiu?
- Eu ajudava a senhora que vivia aqui antes. Ela me deu.
- Ah, sim! A senhora Iracema: aquela velhinha encantadora com alma escravocrata! E qual seu nome?
- Me chamo Ísis! Sou filha do Doca!
- Hum; muito prazer! Se já estamos apresentados, por favor, devolva-me a chave e pode se retirar! – estendeu-lhe a mão.
Ísis atirou a chave no chão aos seus pés e falou: - Não! Ainda temos contas a acertar, seu assassino! Eu sei que foi você que matou meu pai e meu irmão!
- Oh-ho; isto é uma acusação grave! Até onde sei, seu pai faleceu no hospital, vitima da Covid, e seu irmão foi imprudente ao atravessar a rua. – deu de ombros: - Não tenho nada com isto!
- Não se faça de desentendido; foi você, eu sei! Meu irmão veio aqui falar com você naquela noite.
- Sim, de fato ele esteve aqui e conversamos. Mostrou-me uma declaração do Senador Macieira passando ao senhor Doca á posse de um apartamentinho no térreo deste prédio. Pediu-me ajuda e sugeri que procurasse a justiça. – suspirou: - Ah, mas que coisa lamentável; o bondoso Senador Macieira não passou o documento em cartório; será que esqueceu ou se esquivou da chantagem dando-lhe um papel sem valor só para enganá-lo? – riso. – Como o senador zombou daquilo! Para evitar o escândalo da filha bastarda, Macieira daria ao Doca até uma cobertura na praia, e o pateta vendeu seu silêncio a troco de uma espelunca que fede à mofo, e ainda juramentada num papel que não serve nem como papel higiênico!
- Meu pai era uma pessoa de boa fé, e acreditou!
Heráclito abanou a cabeça: - De que pai você esta falando? O porteirinho fofoqueiro, chantagista e burro, ou o porco moralista com chancela de senador que roubou milhões deste país, e colecionava amantes? Sua gênese não é muito recomendável, hein Ísis? - furiosa, ela lhe apontou uma pistola. – Hei, cuidado! Você pode se machucar moça!
- Ordinário; limpe a boca pra falar do meu pai adotivo! Era um homem bom e honesto, ao contrário de você, que é um psicopata! Ou pensa que o senador não falava de você e sua falta de escrúpulos?
Ele riu: - O senador falando de escrúpulos? Isto é o que chamo de farsa! E abaixe esta arma, está me irritando!
- Chega! Me diga por que matou meu pai e meu irmão!... Ande seu filho da puta!
- Matei porque cruzaram meu caminho! Se o senador lhe passou minha ficha, já sabe que sou um psicopata que não guarda qualquer culpa ou remorso! E se quer saber: tem gente que é tão insignificante que só consigo ter pena de ver o desperdício no espaço que esses seres miseráveis ocupam!
Ela ergueu a arma na intenção de um disparo e gritou: - Canalha...! – então de repente Isis começou a apontar a pistola para sua própria cabeça. Ela tremia a mão tentando resistir, e Heráclito aproximou dizendo: - Então a boa samaritana vinha aqui apenas para auxiliar a doce Senhora Iracema; pobrezinha! – ele chegou mais perto, suas retinas violetas reluziam: - Conte esta lorota para os desavisados. Sei bem que vinha á este prédio, e ia direto à cobertura visitar sua mãe torta: Dona Adelaide! Não é verdade? – apavorada ela assentiu: - E o que a moça ia fazer na casa da mulher que a odiava por ser filha bastarda do seu marido com uma puta?
- Eu,... Eu vinha pedir ajuda,... Por causa do apartamento térreo. Meu irmão ia precisar dele pra morar,...
- Resposta errada! – cortou-a: - Você vinha para bajular a velhota da cobertura, e ver se assim conseguia um pouquinho da herança do papai senador, porque aquele sítio que você vive é mais uma bondade sem papel passado! – ele riu: - E Dona Adelaide me confidenciou que estava toda derretida pela filhota torta. Mais um pouquinho e a moça entraria no bolo da herança! Mas o que deu errado?
- Deu,... Porque você a matou! – respondeu quase em pânico.
- Nova resposta errada! – ele abanou a cabeça: - A moça esqueceu-se de combinar isto com seu irmãozinho drogado, que é filho do porteirinho! Então ele veio falar com dona Adelaide sobre o apartamentinho. Ela ficou muito irritada e mandou-o falar comigo porque sabia que ele poderia criar caso! – riu novamente: - Aí o tolo fui eu, porque a digníssima sabe que não consigo contemporizar com insolência. Ah, este ódio que não controlo! Eu acabei fazendo o trabalho sujo do mesmo modo que fazia para o senador Macieira e, como dizem os jovens, eu passei o rodo geral para puxar a sujeira ao esgoto; é para isto que eu sirvo! – o dedo de Ísis começou a tremer no gatilho: - A moça também está me aborrecendo; o que vai me impedir agora de mandá-la ao encontro dos seus entes queridos?
- Eu vou impedir! – Era Adônis que entrara pela porta encostada, de arma em punho apontada à cabeça de Heráclito, que olhou de lado e disse: - Uau! Os mocinhos andam armados por aqui! Isto é coisa de fascistas hein?
- Cale a boca e pare de fazer isso com ela ou lhe enfio uma bala na cabeça!
Heráclito fez um gesto rápido e Isis caiu desacordada numa poltrona. – O aconteceu com ela? – perguntou Adônis aflito.
- A moça está muito nervosa, precisa relaxar! – num relance, Heráclito segurou a arma e a tomou das mãos de Adônis, que se afastou no susto.
- Se não sabe usar armas, não use! Mas este lugar é cada vez mais surpreendente; por que um pacato professor aposentado com pinta de hippie da velha guarda tem um revólver? – apontou a arma á Adônis: - Isto aqui não é coisa de gente de bem! – ele não respondeu e Heráclito continuou: - Você o adquiriu para dar cabo do amante de sua mulher, não foi?
- Não!... Quem lhe disse isto?
- O porteiro! – gargalhou: - Era muito fácil destravar a língua do seu amigo Doca; bastava eu lhe arreganhar os dentes!
-... Ele não podia ter feito isto,...
- Para você ver como as pessoas são falsas! Ele contou também que você ficou tão deprimido que tentou se matar com um tiro na cabeça,... E errou! – mais uma gargalhada: - Como se erra um tiro na cabeça? Simples: virando-se o cano da arma para o lado na hora do disparo! Ah amigo: desde que deitei meus olhos em você, só consegui enxergar fracasso e derrota. – aproximou mais: - Porém, logo que cheguei á este predinho infecto, eu notei que você me olhava muito, mas não me pareceu que era gay! – riso: - Então olhava o quê? Responde?
- Eu percebi o psicopata que se esconde por trás desta capa de sucesso! É isto que te incomodou, né? Eu estava vendo a verdade!
- Fantástico, ele percebeu o óbvio! – suspirou: - Vamos, diga-me algo que eu não sei,... Ou melhor, algo que você pensa que eu não sei! – continuaram a se encarar: - Você viu em mim o que você queria ser: rico, bem sucedido, admirado,... Não foi isto que te incomodou? É a burguesia que fede, mas pode comprar perfumes de Paris, invadindo o seu espaço!
Adônis retrucou com raiva: - Eu não sinto inveja de nada disto!... Gosto do que sou.
- É melhor gostar né? Foi o que lhe sobrou!
- Agora é minha vez: o que você veio fazer aqui no nosso prédio infecto, que ao que parece é bastante inferior ao que considera bom. Apenas para matar?
- Inferior? Isto aqui é um lixo que não passa de um mausoléu parado no tempo, repleto de gente medíocre e vazia. É uma caricatura de um passado glamoroso! Mas devo reconhecer que você é astuto: então, vamos á verdade: fui chamado aqui pela Dona Adelaide que me propôs um excelente negócio. Um daqueles que ela aprendeu com o porco do senador. – riso cínico: - Ela obteve uma informação privilegiada de que toda esta área será desapropriada pelo Governo Federal para abertura de uma malha de viadutos, mas ainda é sigiloso. – breve gargalhada: - Eles adoram esta palavra em Brasília! Então, eu adquiri este e mais dois apartamentos e dona Adelaide botaria para fora seus inquilinos. O resto eu,... Por assim dizer, persuadiria a darem o fora! Quando começassem as obras, o governo nos compraria esse pardieiro pagando o metro quadrado mais caro do que se fosse á orla do Leblon! – deu de ombros: - Alguém nos gabinetes certamente levaria uma rachadinha, para usar um termo da moda!
- Então agora eu também pergunto: O que deu errado no seu acordo com a Dona Adelaide?
- Já começou errado! – abanou a cabeça: - Quando vi Dona Iracema aqui; ah, foi como uma comporta de ódio que depois de aberta eu não consigo mais controlar. Qualquer coisinha me deixa possesso! Odeio que mintam para mim, ou me usem!
- Mas ao que parece você foi bem pago pelo uso do seu ódio, não é, senhor doutor Procurador da República?
- É verdade,... Até uns tempos atrás eu achava que sim,... Mas hoje, percebo que fiz muito barato. Muitos desafetos importantes da turma do “centrão”, eu eliminei!... Pessoas que eu admirava. – abanou a cabeça: - Me ensinaram a usar, mas não me explicaram como se controla o ódio! – olhou a arma: - Bela pistola, meio antiquada como seu dono! – olhou Adônis: - Mas será eficaz? – apontou o quadro que acabara de fazer, era seu próprio retrato: - Eis o retrato do que você odeia porque representa o mundo que repudia pela frente, mas inveja no íntimo. Eu sei o que sou: um psicopata sem sentimentos. Matar não me diz nada. E você Adônis? Sabe quem é?... Há algo além do homem recalcado e frustrado que viu a esposa se jogar para cima de um sujeito tão fracassado quanto você, e que ainda lhe olhou do mesmo jeito que faço agora; de cima? Um homem que nem conseguiu se matar? – riso: - Nem o suicídio foi capaz de levar adiante porque ficou com medo de morrer?
Adônis até tremia de ódio. – Filho da puta,... Assassino! Me dê a chance de te mostrar!
- Tome a arma! – entregou-lhe o revólver encarando-o: - Mostre-me!
Ele apontou a arma; suas mãos estavam firmes. Viu o mesmo ar de zombaria, não só do homem que sua esposa preferiu, mas de alunos e diretores que lhe olhavam com o mesmo olhar carregado de piedade e deboche por anos. Sua respiração era ofegante, e suor lhe descia as faces. O gatilho estava á espera da ordem ao disparo do projétil certeiro. Porém: - Não, Não!... Eu não sou isto!... Eu sei controlar meu ódio, não sou um doente igual á você! – abaixou a arma: - Eu sou melhor do que você, e isto é fato!
Heráclito abanava a cabeça: - Então, me ensine a controlar o ódio,... Ou acabe comigo!
- Seu tempo de aprender qualquer coisa já acabou seu monstro! – era Ísis que segurava um pincel na mão: - Eu também sou pintora! – seus olhos traziam um brilho estranho com lágrimas descendo a face quando começou a fazer retoques no retrato de Heráclito em pinceladas vigorosas: - Meu pai e meu irmão, não eram perfeitos, mas era minha única família e eu os amava! – suas retinas reluziram um tom violeta: - Você me tomou isto!... E vai me pagar! – e deu um último traço em vermelho na tela
Heráclito levou as mãos à cabeça emitindo um grito abafado enquanto seu corpo paralisava fazendo-o cair de uma vez. De suas narinas saía sangue. Isis parecia voltar de um transe, largou o pincel e gritou assustada! – Não!... Eu não queria isto!... Eu não queria!
Caído ao chão, Heráclito a olhou já sem o brilho nas retinas, e disse: - Não senhorita,... Você queria sim. – estava sem ar: -... Só lhe digo uma última coisa,... Não existe ódio do bem,... Ódio justo, ou ódio redentor,... Existe apenas,... Ódio!... E nada mais,... – e ficou imóvel no sono da morte.
Ísis chorava e foi acudida por Adônis que falou: - Vamos sair daqui!... Acabou!
Adônis e ísis, se olharam com empatia e entenderam o que precisavam fazer. Limparam suas digitais de todo aquele lugar e pegaram para jogar fora as duas armas, a tela e o pincel. Depois de limparem todo o apartamento combinaram a história que contariam para a polícia. Isis viera ao sepultamento do irmão e se desencontrara de Adônis que fora até seu sítio lhe prestar condolências. Depois do sepultamento resolvera visitar o único morador do antigo trabalho do pai adotivo pelo qual ele nutria amizade.
Combinaram o depoimento dizendo que estavam no apartamento de Adônis ouviram um barulho estranho no apartamento em frente e resolveram chamar a polícia que constatou a morte do procurador por hemorragia cerebral certamente causada pela ruptura de um coágulo.
O restante foi ainda mais fácil, como Adelaide nunca tivera filhos, bastou um exame de DNA para Ísis ser declarada como única herdeira do senador.
Heráclito foi a única variável não prevista por eles, uma variável que quase lhe custou a vida.
Ilha de Santorini, Grécia.
Já se passara quase um ano dos eventos do Palladium e Adônis esticado na espreguiçadeira, pensava em como tudo aquilo podia ter dado certo. Quando ĺsis o procurou e falou de seu plano de ficar com a herança do senador, ele não queria participar daquilo, era um sujeito meio medroso como bem percebera Heráclito. Mas fora convencido por ela. E agora aos sessenta e cinco anos estava vivendo uma vida que nem sabia que existia. Olhou em direção ao mar absurdamente azul e viu, Ísis saindo da água, ela estava linda e bronzeada.
Mas que diabos! Pensou Adônis, finalmente alguma coisa tinha dado certo em sua vida, ele devia merecer aquilo.
Ela chegou e lhe deu um Beijo salgado, depois ficaram ali sem trocar uma palavra, apenas apreciando o espetáculo do pôr do sol no Mar Egeu.
Depois voltaram ao hotel, e no mesmo instante chegava um taxi. Adônis acenou e se aproximou do homem alto e atlético que saía do carro, beijando-o a face: - E então; a viajem foi tranquila?
- Muito tranquila! Puxa vida mano; muito obrigado por este passeio. Eu sempre quis conhecer as ilhas gregas!
- De nada! Somos família! – dirigiu-se a Ísis: - Amor, este é meu irmão mais novo que te falei: Eros!
- Que nome lindo! É o Deus do amor,... Muito prazer! – respondeu Ísis.
...
Fim. (?)
Mais um conto de arrepiar. Muito bom. Parabéns a vocês pela parceria inspiradíssima!
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