Em outros tempos o noivado era o vestíbulo do esperado momento a onde as mulheres realizariam o corolário da “rainha do lar”, pouco importando se estariam apenas se evadindo da tutela do pai, passando á tutela do marido. Lembrando que falamos de épocas em que a emancipação feminina pela instrução ou pelo trabalho, e mesmo o sufrágio, ainda eram questões tabus pela sociedade.
Ana foi criada para ser esta rainha. Filha única, ela estudou em colégio interno na Suíça, voltando á casa apenas nas férias. Como era costume, a sociabilidade se dava á maneira de um clã, onde todo o circulo de amizades era familiar, cedendo espaço, no máximo á algum padrinho ou madrinha. As poucas idas de Ana á rua também eram cercadas de cuidados. Saía de automóvel direto ao destino, um passeio ou visita a parentes, e de volta á sua casa.
Até nos períodos de férias, Ana repetia as rotinas no colégio: acordar ás seis horas, tomar o café da manhã e estudar com uma preceptora até ás nove horas, quando havia a pausa para o almoço. Depois, mais lições de literatura entremeadas com piano e etiqueta. Ás quatro horas havia um lanche frugal, tendo o final do dia como recreio. Ás seis horas da tarde começava a preparação para a noite com o jantar servido ás sete horas quando se reunia aos pais para um momento de conversa enaltecendo o respeito aos valores familiares, á religião, além de elogios ao comportamento exemplar de Ana. Após este colóquio familiar, ela se recolhia ao leito, impreterivelmente ás oito e trinta da noite.
Seu destino já estava definido pelas conveniências sociais, e também econômicas: o casamento com algum varão oriundo das famílias tradicionais da cidade.
Assim, sua rotina se desenrolava de modo previsível naquilo que chamavam “jardim de inverno”; que no caso dela era mais do que uma forma de expressão, porque a abastada família vivia numa confortável vivenda num local mais afastado da cidade ao abrigo de uma fortuna composta de plantações de café e uma grande tecelagem.
O jardim da vivenda era o único momento em que Ana tinha para si, ás vezes na companhia de sua prima-irmã chamada Isabel, cujos pais não eram tão abastados. Todos os anos a garota ficava ansiosa pela volta de Ana nas férias, porque assim poderia usufruir dos luxos da vivenda.
Isabel gostava dela, apesar de achá-la meio bobinha.
Numa tarde, após o lanche, Ana saiu ao jardim levando uma de suas bonecas. Apesar de ter quatorze anos, ela gostava de brincar de mãezinha, e de certa forma encarava isto como ensaio para a vida adulta que a esperava ao encontrar seu “príncipe encantado”. Havia uma babá nem sempre atenta, que cochilava no caramanchão; então Ana aproveitou para um passeio mais longo pelo imenso bosque levando sua filha de biscuit ao colo.
Na propriedade havia casas de colonos; Justino era um rapaz que vivia numa delas e trabalhava cuidando da horta. Naquela tarde, mesmo em desobediência a recomendação de ficar longe da vivenda, ele subiu a colina cheia de árvores para ver de perto a vida de luxo dos patrões, quando escutou passos e uma voz cantarolando algo numa língua por ele desconhecida; era Ana que entoava canções francesas enquanto caminhava. Justino a reconheceu: era a filha do patrão que viu algumas vezes passando dentro do automóvel, e se escondeu para observa-la achando engraçado ver uma garota daquele tamanho carregando uma boneca como se fosse um bebê! Ana seguia alheia ao seu espião quando passava numa pinguela sobre um veio de água, que se partiu, jogando-a de encontro a um tronco caído. Ela gemeu passando a mão na perna. Nisto, Justino correu para ajudá-la. Ana se assustou ao vê-lo, mas ele a acalmou, se apresentando como colono. Ana se lembrou de tê-lo visto, e aceitou que a ajudasse á se levantar e seguir de volta á vivenda. Neste momento, Isabel chegava ao jardim e a viu, amparada pelo rapaz, que assustado saiu correndo de volta ao bosque. Ana explicou o ocorrido e lhe pediu que não contasse nada aos seus pais sobre o tombo e a ajuda que Justino lhe prestou. Isabel concordou; mas notou uma pequena mancha avermelhada no vestido da prima.
Cenira, sua mãe, a repreendeu por ter sujado o vestido de barro, e delicadamente mandou Isabel de volta a sua casa. Na verdade, ela não gostava da sobrinha.
No banho, Ana percebeu um pouco de sangue na perna, perto da virilha; mas ficou quieta. Se sua mãe visse, poderia proibi-la de passear no bosque.
Ao fim das férias, ela voltou ao internato na Suíça, e cinco meses depois seus pais recebiam uma carta onde lhe informavam sobre a menarca de Ana, mas que estava tudo bem: ensinaram-lhe como usar as toalhinhas higiênicas, além das precauções quanto aos pecados que tudo isto encerrava. Cenira deu graças a deus por ter sido poupada deste momento complicado, enquanto que João, seu pai, já pensava num noivado assim que retornasse.
Cenira foi á Suíça buscar a filha, até porque aquele seria seu último ano no internato. Levou junto uma foto do futuro noivo de Ana, que se chamava Ulisses. A garota até tremia de emoção ao ver o rosto de seu príncipe encantado em preto e branco. Ela o achou muito bonito!
De volta ao Brasil, foi apresentada ao rapaz dez anos mais velho, que beijou sua mão no pedido de noivado numa recepção na vivenda, para selar a intenção do casamento. Foi o acontecimento social do ano na cidade: duas das mais ilustres famílias reunidas pelos laços do matrimônio. Era Maravilhoso! Meio escondida junto á família, Isabel olhava tudo.
A festa de noivado estava marcada para o aniversário de quinze anos de Ana. Novo acontecimento social! No quarto, ela revelava á Isabel sua alegria com tudo aquilo, e também certa ansiedade. Os excessos de cuidados para que sua virgindade permanecesse imaculada incluía a desinformação sobre relacionamentos entre casais. Isto era comum na época, quando as mães aguardavam a proximidade do casamento para terem a famosa conversa séria com as filhas. Vendo a angústia da prima, Isabel resolveu lhe explicar algumas coisas da vida, pelo menos as que sabia, no momento em que Cenira escutava a conversa das duas por trás da porta. Imediatamente ela entrou no quarto com a desculpa que Ana iria á modista, e Isabel deveria voltar a sua casa. Depois falou ao marido que não queria mais as visitas da sobrinha. Contou-lhe o rabicho que conversa que escutou, ao que ele a cobriu de razão.
A festa, que juntou os quinze anos com o noivado de Ana foi ainda mais espetacular que a recepção no pedido de casamento. Reuniu a nata da sociedade na vivenda num festejo de ficar na história, com a presença de prefeito, presidente da câmara e até um representante do governador do Estado. O vestido veio direto de Paris; e logo após a dança da primeira valsa, onde a garota trocava suas sapatilhas por sapatos de salto, veio á oferta do anel de noivado e do dote. Ana não cabia em si de tanta alegria. Seu noivo beijava-lhe as faces, respeitosamente como convinha á um cavalheiro. Sendo membro do clã, Isabel foi convidada à festa; mas não a deixaram se aproximar de Ana mais do que o tempo de um rápido cumprimento, Ela escondeu sua mágoa, mas depois em casa, chorou ao colo de Eleonora, sua mãe.
O casamento seria marcado para o mês de maio do ano seguinte, e prometia ser um acontecimento ainda mais espetacular!
Mas, dentro da família, Eleonora estava insatisfeita com o tratamento dado á Isabel pela cunhada Cenira, e a procurou para tirar satisfações. Foi recebida com educação protocolar e explicações se esquivando de qualquer intenção de desfeita ou pouco caso. Ocorria que Ana estava assoberbada com os preparativos do casamento, e não teria tempo a visitas. E avisava que talvez aquela cerimônia se constituísse em um acontecimento social tão importante, que a festa teria que ser exclusiva as autoridades. Mas tentaria dar um “jeitinho” de obter convites, pelo menos á recepção na Igreja.
Eleonora saiu da vivenda jurando que a cunhada não perderia por esperar!
Alheia a tudo isto, Ana se via como uma princesa pronta a se casar seu príncipe consorte. O castelo seria um elegante palacete, presente do pai do noivo, havendo um pelotão de bordadeiras produzindo o enxoval da noiva. O vestido? Viria de Paris, é claro!
Isabel estava inconformada por não poder ir á festa de casamento da prima, e se atirou á cama aos prantos. Eleonora a consolava, e então Isabel lhe contou sobre o dia que viu Ana acompanhada de um colono, depois de embrenhar no mato com uma de suas ridículas bonecas, para voltar com seu vestido sujo de barro e uma mancha de sangue. Ao ouvi-la, o rosto de Eleonora se abriu num sorriso maquiavélico.
Naquele mesmo dia ela procurou João na tecelagem para alertá-lo sobre coisas que estavam ocorrendo na sua casa, debaixo de suas barbas, e ele não sabia. Contou a história do colono e da mancha de sangue que Isabel viu, e abanou a cabeça alertando sobre o escândalo que poderia ocorrer se Ulisses não encontrasse na cama de núpcias a moça pura e virgem que lhe prometeram. João ficou furioso e expulsou a irmã do seu escritório. Ela o encarou dizendo que tirasse a prova, e se estivesse errada, pediria perdão de joelhos!
Então, transtornado, ele voltou á vivenda, indo direto á filha exigindo explicações sobre o caso. Assustada, Ana confessou que teve uma queda no bosque e foi acudida por Justino.
O pai a encarou, perguntando sobre algum ferimento. Ela revelou que encontrou sangue entre as pernas, mas não tinha sido nada grave. Irritado, João fez algo que nunca fizera na vida: esbofeteou Ana chamando-a de mentirosa. Trancou-a no quarto e acusou Cenira de mãe relapsa, perguntando a onde ela estava que não via o que acontecia com a filha? Então chamou o médico da família para examiná-la, e o doutor deu o veredicto: o hímen estava rompido. João se desesperou e Cenira sugeriu que escondessem o episódio do colono. Poderia usar a justificativa do “hímen complacente”! Mas João rechaçou esta ideia, e decidira que, para evitar o escândalo, o melhor seria romper o compromisso do casamento sob a legação que Ana não estava preparada. Também seria desagradável, mas salvaguardaria a família do vexame. Cenira perguntou o que seria da filha? O pai respondeu que procuraria seus parentes na Itália; havia uma freira que poderia arranjar para que Ana ficasse no convento por um bom tempo. Talvez se interessasse pela vida religiosa.
Enquanto isto ela se encolhia na cama agarrada a sua boneca, sem compreender a razão de tudo aquilo. Foi apenas um rapaz que a ajudou; que mal podia haver nisto?
Naquela noite João procurou a família de Ulisses, informando a decisão de romper o acordo de casamento com as justificativas exaustivamente ensaiadas. Desconfiado, o pai do rapaz afirmou que aquilo também representaria o fim da amizade caso não lhe falasse a verdade. Sem saída e constrangido, João foi obrigado á revelar que sua filha não era mais virgem, mas que tudo tinha sido causado por um acidente no jardim. Ela ainda estava casta! Então o pai deixou a decisão nas mãos de Ulisses, que abanou a cabeça e aceitou o rompimento sem esboçar o menor sentimento, e até com certo desdém. Era evidente que não acreditaram.
João voltou para a vivenda, mergulhado na humilhação.
Ele mandou buscarem Justino para um acerto de contas. Mas o rapaz ficou sabendo da ira do patrão, e como não era parvo, ligou as histórias. Então fez a trouxa e sumiu no mundo.
Depois de ficar reclusa na vivenda por semanas, recebendo apenas as visitas da preceptora, Ana foi embarcada num trem para o Rio de janeiro junto com Cenira, e depois ao navio que as levaria á Nápoles, onde sua parenta freira a levaria ao convento. João não se despediu da filha, mas chorou escondido na adega da vivenda o desgosto daquela decisão que foi obrigado a tomar. Era o mínimo de se esperar de um homem honrado.
Mas a permanência de Ana no convento italiano foi mais breve que esperavam. É daqueles momentos que a história atropela todos os dramas, pois no ano seguinte ocorreu a “quinta-feira negra” no crash na bolsa de Nova York, em 1929, com desdobramentos nos negócios de João, que incluíam atividade cafeeira e sociedade em empresas de exportação de café, que foram à bancarrota. Havia hipotecas e empréstimos bancários a honrar, levando-o a abrir mão de sua parte na tecelagem. Em outras palavras: a fortuna se foi.
Numa tarde cinzenta, Ana retornava a cidade. A acolhida no convento cessou assim que terminaram as doações à ordem religiosa que, em verdade, era uma espécie de mensalidade disfarçada.
Porém, a vivenda não era mais seu jardim de inverno em meio á um imenso bosque, mas uma casa despojada dos luxos do piano, tapeçarias e pratarias, tudo penhorado. Seu pai saíra de casa rumo á um restinho de terra que sobrou para cuidar da criação de gado. Quanto a sua mãe, a recebeu com olhares acusadores, pois acreditava que o casamento os teria resguardado daquela penúria. Ana era uma jovem envelhecida e desiludida, que se encolheu á cama no seu quarto de moça sonhadora, como se acreditasse ainda numa redenção. Era o que lhe restava.
Mas isto não aconteceu, e a solidão foi sua companhia pelos anos que vieram. Cenira faleceu, e algum tempo depois João a acompanhou.
Ana permaneceu morando na vivenda, alugando as antigas casas dos colonos, e ministrando aulas de francês para se sustentar. Seu quarto de moça ainda guardava as memórias do casamento desfeito em baús repletos dos panos bordados de seu enxoval, jamais usados.
Veio um inverno muito frio e Ana adoeceu de pneumonia. Num espécie de pedido de perdão, sua prima Isabel cuidou dela nos momentos derradeiros, quando ouviu seu último pedido: que fosse sepultada com o um vestido de noiva, branco como a castidade que nunca perdera.
E assim foi.
A vivenda ainda existe, e segundo uma lenda, ao final da tarde é possível ouvir a doce voz da menina Ana entoando antigas canções francesas pelo jardim no farfalhar das árvores ao vento.
FIM
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