domingo, 9 de maio de 2021

LILIA

 

 

No decorrer dos séculos XVIII e XIX eram editadas coleções de livros populares, que na França recebiam o nome Bibliothéque Bleue, que consistia em pequenos livros encadernados em brochuras com capas em azul, vermelho ou marmorizado e preços modestos. Através das personagens femininas dessas obras populares crio-se o estereótipo da mulher romanticamente idealizada cuja redenção viria pelo resgate de um “príncipe encantado”. Portanto, se pensarmos no imaginário construído nesta estrutura de contornos patriarcais, o casamento se constituiria na única maneira aceita pela sociedade das mulheres saírem da casa dos pais de modo lícito; e mesmo que a união não se tornasse um casamento feliz, ainda era melhor do que ficar solteirona na casa dos pais aprisionada no humilhante papel de “titia”.

Naqueles tempos do governo de Getúlio Vargas, os trinta e poucos anos que Lilia carregava nas costas já encerrava esta sentença. Ainda era uma mulher bela, mas passada! Na juventude chegou a ensaiar um noivado, que ficou apenas na promessa. Houve mais uns flertes de canto de olho, porém, nada mais ocorreu.

Como não era rica e nem estudada, Lilia abraçou a profissão de costureira; coisa que fazia com extremo capricho. Sua fama corria pela região, e não lhe faltavam freguesas.

Era comum as residências terem “quarto de costura”. Mas não eram exatamente para a donas da casa exercitassem seus dotes, e sim para que costureiras contratadas fizessem as roupas de cama mesa banho roupas intimas e as de “ficar em casa”, mais confortáveis.

Um fazendeiro da região procurou Lilia para esta função. Era viúvo e seus três filhos, que estudavam na capital, voltavam ao lar nas férias, e não havia sequer um lençol, toalha ou mesmo guardanapo decente na casa!

A fazenda era longe, assim Lilia teria que pernoitar para poder fazer o serviço. Era comum costureiras se hospedarem na casa de seus contratantes.

O homem se chamava Romero, e estava no meio dos quarenta. Era muito sério e calado, sofrendo a viuvez que levou cedo sua amada esposa.

No entanto o desvelo que Lilia demonstrava na tarefa de coser panos corriqueiros, pensando em bordados e bicos de crochê, lhe tocou o coração. Tanto que inventou mais serviço para que retornasse.

Aquele jeito de um carinho até um tanto rude de Romero, fazia-a ver tanto amor represado no peito premido nas suas camisas e coletes, que seu coração também se abriu. 

Foram muitos olhares e fios de conversa, que logo se tornaram uma torrente de confidências, até que Romero se muniu de coragem, e se abriu num pedido de casamento.

A cerimônia foi contida na medida certa para coroar aquela união abençoada pelos três filhos, que nunca tinham visto seu pai com olhar tão cândido.

Mas a felicidade não foi tão duradoura como o sonho. Ao fim de quatro anos, Romero adoeceu dos pulmões. Mas como convinha ao homem da casa, ele escondeu sua fragilidade, não havendo mais tempo aos parcos tratamentos disponíveis quando a doença tomou seu corpo. Romero se foi numa nublada manhã.

Lilia agora experimentava o sabor da solidão na fazenda centenária. Contudo, tomou para si a missão de prosseguir a obra do seu amado.

Um dia, uma surpresa! O filho mais velho, que se chamava Daniel, retornou á fazenda. Não se seu bem com as leis; decidiu abandonar o direito e seguir os passos do pai. Foi recebido como um filho pródigo.

 Mas em pouco tempo Lilia descobriu que sua desilusão não era apenas nos estudos, mas na vida que atirava Daniel numa sufocante encruzilhada de dúvidas. Assim, ela percebeu suas próprias dúvidas. Foram longas conversas compartilhando suas almas, de certa forma, maculadas. Foram longos olhares que perpassaram as retinas, tocando-lhes seus âmagos. Foram longos corredores até aquele beijo.

Não se pode negar certo escândalo naquela união de madrasta e enteado. O casal com quinze anos de distância nas idades fazia ouvidos de mercadores a maledicência, porque seus olhares eram só amor e cumplicidade.

Mas parecia que os casamentos de Lilian eram como mandatos parlamentares, que duram quatro anos. Daniel preferia viajar ao volante do seu automóvel aos trens; e foi numa curva em velocidade que a direção lhe escapou.

Novamente Lilia experimentava a amargura da viuvez, e a imensidão da cama noturna. Isto destruiu sua fé, e seus cuidados. Passou a ser comum vê-la de cabelos desgrenhados presos com grampos e calçando chinelas puídas a cuidar dos afazeres da fazenda.

O filho do meio se chamava Evandro, e era padre. Seu pai dizia que era bom ter um advogado, um padre e um médico na família, e Evandro ficou na segunda opção. Nas suas visitas à fazenda, compungia-lhe a alma vê-la quase maltrapilha, a maldizer a sorte e os santos. Não podia ser! Então, pediu licença das suas funções numa paróquia próxima, para ficar mais próximo de Lilia na missão de resgatá-la.

Não foi fácil penetrar no cipoal de mágoas que envolvia seu coração. Foi preciso persistência para fazê-la ver novamente alguma luz. E foi maravilhoso vê-la retornar á vida, e aos cuidados com sua aparência. Então surgiu uma mulher madura e linda, que tocou o sentidos do sacerdote num local totalmente proibido! Por sua vez, Lilia passou a ver na beleza daqueles olhos cor de âmbar, algo mais do que um salvador, que também lhe tocava os sentidos de uma maneira totalmente pecaminosa.

Evandro saiu da fazenda, e retornou á paróquia e ao seu rebanho. Mas não era mais o mesmo homem que sabia controlar seu corpo quase virgem. Agora seus impulsos lhe escapavam!

Numa volta á fazenda, que ele nem se deu conta de como seus passos o levavam, encontrou-a na varanda com a luz resplandecente da manhã dourando-lhe os cabelos soltos, como Madalena.

Não é possível mensurar aqui o tamanho do escândalo que foi a união do padre que largou a batina, com sua madrasta. Tentaram ocultar, casando-se no Uruguai; mas foram descobertos!

Então decidiram viver no anonimato da cidade grande. Ela costurando, e ele lecionando.

A maldita praga dos quatro anos, sempre ela; pois a metrópole também trouxe tentações à Evandro, que não soube resistir a revoada de mariposas que rodeavam suas retinas cor de âmbar como se buscassem lâmpadas no inverno. Era irresistível!

Lilian descobriu a traição, quase no mesmo dia que Evandro perdeu sua vida numa punhalada por dinheiro num beco sórdido da cidade grande. Mas ela não conseguiu odiá-lo. Sentiu o pesar da traição, sim; mas também se apiedou de sua alma tão ingênua á maldade mundana.

De volta à fazenda e aos afazeres, estava disposta a virar esta página. Cabelos brancos eram argumentos suficientemente fortes.

O terceiro filho, o caçula, se chamava Caio, e fugira ao desejo paterno por um médico na família, preferindo as armas. Era militar, e também o mais distante da fazenda.

Terminava a Segunda Grande Guerra, de onde Caio não saiu incólume. Uma batalha na Itália amputou-lhe uma perna e ceifou sua ascensão na carreira militar. Deu baixa com honrarias que, no entanto, não mitigaram a frustração. Seu casamento também acabou numa separação cheia de rancores. Então decidiu voltar à fazenda.

O encontro de Caio e Lilia foi mais seco que as areias do Saara!

Ele não encontrou a madrasta metida em vestidos caseiros da sua memória, mas uma mulher velha de faces pintadas. Parecia-lhe uma rameira. Por sua vez, Lilia não simpatizou com aquele homem coxo de olhos pequenos e pontudos, que lembrava os olhos de um rato. Mas teriam que viver sob o mesmo teto administrando o espólio familiar.

E quantos atritos não ocorreram. A discordância era cotidiana e por qualquer coisa. Café forte ou fraco? Banco do Brasil ou Caixa Econômica? Borrachinha na muleta ou penico no quarto para não fazer barulho no corredor fora de hora?

Um dia, Caio voltava a sede da fazenda. Lilia tinha ido á missa no povoado; que alívio! Ele sentou no sofá da sala, largando a muleta ao lado, quando sentiu algo sob a almofada: era um pequeno caderno escolar que já tinha visto nas mãos da madrasta. Abriu-o com desdém esperando encontrar apenas contas naquela sua letra feiosa, mas não foi isto que encontrou nas suas pautas. Eram poemas muito simples, que falavam de longas noites entremeadas de curtos dias repletos de tarefas para fazê-los ainda mais curtos, e de amores perdidos. “... Os dias que me restam, são como gotas numa fonte; que esvaziam a nascente, e transbordam no poente.”. Eram versos que se não primavam pela literatura, exprimiam emoções autênticas. Caio devolveu o caderno ao seu esconderijo. Dele, surgiu outra mulher que não era sua mãe postiça.

Como é difícil transpor muralhas por nós mesmos erigidas. Caio tentava aproximação com gentilezas, e recebia em troca frases e olhares desconfiados. Parecia inútil.

Um fim de tarde quando Lilia voltava do povoado, encontrou um papel meio amassado jogado numa mesa. Era uma carta da mulher de Caio, aparentemente em resposta a outra missiva por ele enviada, e repleta de impropérios: “... eu estou casada novamente e teu filho agora tem um pai de verdade, e não um aleijado como tu que não presta mais para nada, nem para a cama. Suma de nossas vidas!”. Lilian escutou o barulho da muleta e largou o papel na mesa antes de sair da sala. O viu entrar, apanhar a carta e chorar. Ela nem sabia o que fazer, pois nunca tinha visto um homem em prantos. Talvez os julgassem incapazes disto.

O olhar de Lilia se encheu de compaixão á aquele homem que parecia ter perdido tudo. E pensando bem: com ela mesma não foi assim também? Então se abriu ás aproximações e gentilezas. Os olhares se tocaram sem haver necessidade de palavras, como se ambos estabelecessem um elo secreto de solidariedade.

Mas numa tarde de chuva intensa, mesmo com as dificuldades da muleta, Caio insistia na tarefa de fechar o portão do celeiro que oscilava ao vento, mas foi atirado ao chão. Conseguiu rastejar até o alpendre quando foi visto por Lilia, que correu em seu socorro.

Sentiu-se humilhado e incapaz.

Foram dias sem palavras, num silêncio ruidoso, até que ele chamou por Lilia e lhe disse que iria embora da fazenda. Era um estorvo que só atrapalhava. Apreensiva ante ao retorno da solidão, ela rogou que ficasse. Caio disse-lhe que não aceitava piedade e o deixasse partir com dignidade, ao que ela suplicou que não a abandonasse apenas com as lembranças fugazes de vidas que não se completaram. Pediu-lhe que a deixasse completar a vida dele. Então Lilia viu lágrimas correndo na face de Caio. Seus corações se abriram, e os dois se abraçaram.

A intimidade dos lençóis demorou um pouco, pois se de um lado Lilia temia não ter mais o viço da juventude, Caio receava assustá-la com a visão do seu corpo com perna amputada. A encrenca durou até o dia que Lilia lhe revelou seus poemas. Foi como uma senha que destrancou o cadeado do desejo e tudo aconteceu ao momento certo, sem cobranças, e com muito carinho.

Decidiram não se unirem oficialmente, até porque já devia ser público e notório na região o caso da viúva que passou de pai para filhos como um negócio de família! Os dois davam de ombros.

Foram felizes. Caio levou Lilian numa viajem á Paris para que ela visse a torre de ferro no meio de uma praça, a moça com sorriso enigmático no museu mais famoso do mundo, e o trem que corria em túneis, e era chamado metrô.

Contudo, desta vez não foi o homem a sair de cena aos quatro anos de mandato. Lilian contraiu câncer nos seios – logo eles, que considerava sua parte mais bonita?

Ela partiu silenciosamente numa madrugada enluarada.

Caio sofreu muito. Mas continuaria na fazenda, e nas memórias que cada parede emanava daquele curto tempo de felicidade.

Um tempo depois, um alento veio na forma de uma carta de seu filho único. Já na maioridade, Júnior decidiu conhecer melhor seu pai cujas lembranças eram esparsas.

Era preciso preparar para a chegada da importante visita! Caio correu os olhos, e não havia sequer um lençol, toalha ou mesmo guardanapo decente na casa!...

 

 

FIM

 

 

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