domingo, 23 de maio de 2021

CONTOS DE MAIO - HELÔ.

 

“Quando Heloísa chegou á igreja, todos se emocionaram. Em frente ao altar ela encontrou Antonio Maria quando o órgão da pequena igreja tocou a marcha nupcial. O padre levantou a mão fazendo o sinal da cruz e cumprimentou os noivos; Antonio Maria e Heloísa eram então marido e mulher. Uma enorme multidão se aglomerou á frente da igreja. O casamento do ano foi assistido por centenas de pessoas; era o fim de uma espera de 10 meses de novela e centenas de capítulos gravados no maior sucesso da TV brasileira em 1969.”

Dona Neusa tinha lágrimas rolando as faces quando assistia ao último capítulo da novela “Antonio Maria” que, depois de inúmeras reviravoltas e intrigas, unia o casal protagonista da trama no altar – naquela época, todas as telenovelas terminavam em casamentos. Emocionada ao ver o “FIM” na tela da televisão, ela sentia como se fosse uma despedida dos personagens que acompanhara por dez meses, e ao mesmo tempo suspirava pelo final feliz.

Mas havia um detalhe que a encantou: o figurino do vestido de noiva de Heloísa.

Dona Neusa tinha uma filha também chamada Heloísa, ou Helô, que estava de casamento marcado, mas sendo uma moça moderna, não mostrava maiores interesses no vestido – por ela, casaria de minissaia! – Então o deixou ao encargo de sua mãe.  

Helô não assistia á novelas, assim, quando Dona Neusa lhe descreveu o vestido, não compreendeu exatamente do que se tratava. Mas reiterou a confiança no gosto da mãe na escolha. Ela sorriu.

A revista “O Cruzeiro” trouxe reportagem sobre o sucesso da trama da TV Tupi com várias fotos coloridas da atriz Aracy Balabanian – que interpretava Heloísa – e seu vestido. Dona Neusa correu á banca para comprar a revista, e o mostrou á Helô, que espiou disfarçando a estranheza. Como a corrida espacial estava na pauta do dia, o traje parecia se inspirar no foguete “Apollo 11”. O corpo do vestido era um cone num tecido armado e prateado. As mangas eram compridas e leves, em contraste com a rigidez do vestido. A cabeça era coberta por uma espécie de capsula cônica, fixa aos ombros e colo, com abertura oval em debrum de flores para a face da noiva. A verdade é que Helô o achou muito esquisito, em contraste com o entusiasmo de Dona Neusa, que já teria arranjado uma costureira para fazê-lo. Mas sorria deixando que sua mãe realizasse aquele sonho de noiva. - No seu casamento, Dona Neusa teve que usar vestido emprestado por que não havia dinheiro para mandar fazer um novo. Vida dura! - Até o figurino do noivo estava decidido: um terno também em tecido brilhante que podia ser comprado nas afamadas lojas “Bemoreira-Ducal”!

Logo, a revista “Manequim” trouxe o figurino do vestido da novela em moldes, explicando passo a passo como fazê-lo. O cone que armava o vestido teria que ser produzido em tecido encorpado, que deveria ser engomado, assim como a cápsula da cabeça. Parecia mais uma obra de engenharia do que vestuário. Beto, seu irmão mais novo ria perguntando se a lua de mel ia ser na lua mesmo!

O dia do casamento estava próximo; era a última prova do vestido. Helô se olhava no espelho do ateliê de costura, ajeitando o corpo naquela verdadeira armadura de pano, exigindo que ficasse ereta para não amassar.  Dona Neusa se emocionou ao ver Helô tal qual a heroína da novela, e lágrimas lhe rolaram á face.

Porém, aquele traje de contornos espaciais trazia um probleminha, digamos operacional:

Na gravação da novela, a atriz foi vestida num camarim montado num trailer ao lado da igreja; assim ela teve que caminhar apenas alguns metros até o set de gravação no interior do templo. Só que a casa da família de Helô era longe da igreja onde se casaria. Teria que ir de carro, mas como fazer isto usando um vestido que a impossibilitava de sentar? Beto zombou sugerindo que fizessem a contagem regressiva, acionando os retro foguetes, e Helô iria voando á jato para a igreja. Dona Neusa o reprendeu! Foi Argemiro, seu pai, que deu a solução. Pediria emprestado o ônibus que usavam nas pescarias entre amigos; assim, poderiam utilizá-lo como um camarim improvisado, cobrindo os vidros com jornal. – Perfeito! – exultou Dona Neusa beijando o marido. Helô só conseguia pensar: - Meu deus!

 

E chegou o dia do casamento ás dezesseis horas. Nelson, o noivo, beijou Helô e seguiu á igreja no seu Fusca enquanto a família aguardava a chegada do ônibus. Beto foi convocado por Neusa para carregar o vestido: era um garoto alto o bastante para segurá-lo no cabide á uma altura segura para não o encostar ao chão.

Logo o ônibus virou a esquina e parou em frente á casa. Era bem velho e tinha os vidros tapados com jornais.  Argemiro o dirigia, e abriu a porta para todos entrarem. Helô já estava maquiada, faltando apenas colocar o vestido; a costureira iria junto para auxiliar nesta operação. Todos acomodados, Argemiro engatou a marcha e seguiram á igreja. Beto falou que o ônibus fedia a peixe e Helô temeu que o cheiro impregnasse no vestido; então ordenou ao irmão para erguê-lo bem. O garoto obedeceu, mas reclamou por ter que ir em pé. Dona Neusa não parava de sorrir!

No caminho, o motor morria á cada parada nos sinais, enquanto que Argemiro coçava a careca dizendo que tinha acabado de sair da revisão! Mas conseguiu chegar á igreja. Porém, havia um aclive no acesso ao adro que o ônibus não teve fôlego para galgar. Tentaram três vezes, e todas elas o veículo subia até o meio, e voltava de ré ao começo. Beto tinha que se agarrar nos estirantes do teto com uma das mãos enquanto a outra segurava o cabide do vestido no alto. Então o motor parou, ficando fora de combate, e Argemiro concluiu que teriam se subir á pé. Dona Neusa tomou as rédeas das ações: primeiro passo seria preparar Helô! Não foi uma tarefa das mais fáceis encaixar a noiva naquele casulo de panos engomados no exíguo espaço no corredor do ônibus, sem se encostar aos bancos que exalavam odor de peixe, apesar de Argemiro jurar que foi tudo lavado para a ocasião. Ajeita daqui e dali; se coloca os sapatos, a cauda, e as flores de tule do buquê. Dona Neusa olhou o relógio e estavam em cima da hora da cerimônia. Então se prepararam para sair; mas havia outro problema: o ônibus era alto, e a guia as calçada muito baixa, fazendo com que o vestido se encostasse aos degraus da escadinha. Ficaria amassado! Nova correria para achar solução. Beto viu uma tábua largada nos restos de uma obra, que podia ser usada como rampa. Assim fizeram, e Helô saiu do ônibus equilibrando naquela prancha até a calçada, e subiu o aclive com passos curtos evitando que a barra do vestido raspasse o chão na subida. Dona Neusa coordenava tudo como um manobrista.

Um garotinho na calçada puxava a saia da mãe ao perguntar: - Por que aquela moça tá vestida de foguete?

Enfim chegaram á entrada principal da igreja. O noivo, seus pais e padrinhos já aguardavam no altar.

Dona Neusa ajudava Helô nos últimos detalhes enquanto a costureira arrumava o casal de crianças que seriam seus pajens adiante da noiva e seu pai.

Então Helô apertou os lábios, e disse. – Ih!... Deu vontade de fazer xixi.

- O quê? – perguntou Dona Neusa.

- Eu estou com vontade de ir ao banheiro. – respondeu. – Na igreja tem banheiro, né?

A costureira abanou a cabeça: - Ah, minha filha; você teria que tirar o vestido ao usar o vaso para não amarrotar. Ia demorar!

Dona Neusa completou: - Já estamos atrasados, e tem outro casamento marcado para depois! Esse padre é rigoroso nos horários.

- Mas o que vou fazer mãe?

- Você está muito apertada Helô?

- Um pouquinho.

- Filha! – olhou-a. – Este é o momento mais importante de sua vida, e a cerimônia não será longa.

- O que a senhora está querendo dizer mãe?

- Que você segure a vontade!

- Mas mãe... Vou ter que ir dançando até o altar; não dá! Que vestido complicado a senhora me arranjou!

Os olhos de Dona Neusa ficaram úmidos ao dizer. – Ah,... Desculpe filha. Eu,... Eu só queria que seu casamento fosse especial.

Helô se comoveu e segurou suas mãos ao dizer: - Perdão mamãe! O vestido é maravilhoso; meu casamento vai ser muito especial sim! – olhou Argemiro. – Vem pai!... Vamos!

Dona Neusa sorriu e limpou os olhos; depois seguiu ao altar junto ao filho enquanto o cortejo se preparava para entrar. Um músico começou a tocar a marcha nupcial, e o casal de crianças entrou, com o menino levando as alianças numa almofadinha de veludo vermelha, seguidos de Helô e seu pai. Nelson a aguardava no altar metido num terno prateado mais brilhoso que seu vestido

Ela sorria a cada passo, sentindo sua bexiga estourar, enquanto as pessoas olhavam para os lados procurando a origem daquele estranho cheiro de peixe. Mas ao ver o olhar de encantamento de sua mãe, esse fio de vergonha se desvanecia. Contudo a preleção do padre fazia cada palavra parecer um testamento. Suas pernas estavam coladas debaixo do vestido como que tentando represar uma torrente. E ainda havia a cara de deboche de seu irmão, que não perderia por esperar!

Enfim o padre chegou á pergunta se era de livre e espontânea vontade que um aceitasse o outro. Helô falou “sim” com muita vontade! E finalmente, após a troca de alianças, o padre falou que o noivo podia beijar a noiva. Então Heloísa se virou á Nelson, e se esqueceu de se segurar por um instante, que foi fatal. Ela arregalou os olhos ao sentir a urina descer pelas pernas, ensopando as meias e sapatos. Então buscou a bochecha de Nelson simulando outro beijo e sussurrou ao seu ouvido: - Acabei de urinar na roupa! – então o casal se virou ao padre para a benção, e depois ela ficou estática olhando para Dona Neusa com olhar aflito. Ela entendeu e aproximou da filha, que cochichou: - Urinei na roupa, e agora? – ela respondeu: - Fique quieta no mesmo lugar! – e olhou para um arranjo de rosas num vaso ao lado do altar; apanhou-o e começou a despetalar as flores aos pés de Helô, que se afastou. Despejou um pouco da água para disfarçar a pequena poça; o padre olhou arregalado e Dona Neusa falou: - São pétalas de amor e água pura para dar sorte! – depois sussurrou de novo: - Vai andando enquanto vou despistando! – Helô e Nelson seguiram ao salão paroquial para receber os cumprimentos, enquanto Dona Neusa ajuntava as pétalas no chão com os pés pra cobrir a poça, e sorriu ao dizer: - É uma tradição da nossa família!

O fotógrafo fez as fotos e os noivos receberam os cumprimentos. As pessoas ainda procuravam pelo cheiro de peixe, jamais imaginando que viesse do vestido da noiva.

 

Assim foi o casamento de Helô e Nelson, que foram felizes até que o divórcio os separasse.

 

Muitos anos depois, o tempo se encarregou de apagar as memórias daquela novela de TV, um estrondoso sucesso que certamente inspirou muitas cópias do figurino daquele vestido de noiva espacial.

O vestido de Helô mudou de guarda-roupas e baús muitas vezes enquanto esteve na guarda de Dona Neusa. Depois passou á malas e sacolas, até ser esquecido no quarto de despejo junto a uma infinidade de bugigangas e móveis quebrados após a mudança de Beto da antiga casa da família.

Os novos proprietários, que herdaram as tralhas, não entenderam o que era aquele traje puído de traças e mofo. Imaginaram ser uma fantasia de carnaval e o jogaram fora na caçamba de entulho.

 

FIM

 

 

 

Foto da Revista “O Cruzeiro” de 01 de maio de 1969 trazendo a atriz Aracy Balabanian como Heloisa junto ao ator Elísio de Albuquerque, no papel de seu pai Dr, Adalberto.

 

Antonio Maria foi uma telenovela brasileira produzida e exibida pela antiga TV TUPI ás 19hs, entre 11 de junho de 1968 a 03 de maio de 1969, com autoria de Geraldo Vietri e Walter Negrão que narrava a história do imigrante português Antonio Maria D’Alencastro Figueroa, que vai trabalhar na casa de um empresário como motorista particular, e se apaixona pela sua filha Heloísa. Na verdade Antonio Maria era um milionário que buscou o Brasil como fuga de sua madrasta, que era louca por ele. Uma trama cheia de intrigas amores e reviravoltas que conquistou o Brasil. No elenco estava o ator Sergio Cardoso no papel de Antonio Maria, e Aracy Balabanian no papel de Heloísa, além dos jovens iniciantes Tony Ramos, Antonio Fagundes e Denis Carvalho, e ainda Lima Duarte.

2 comentários: