VIGÁRIO Marion
VIGARISTA: do latim vicarius, aquele que passa o conto do vigário.
Foi tudo tão repentino.
O padre Marion atravessou a avenida apressado sem prestar atenção ao carro que vinha em velocidade e o colheu, atirando-o a mais de dez metros como se fosse um boneco de pano com a cabeça direto na quina da calçada.
Pessoas se ajuntaram em torno do corpo retorcido do padre com sangue jorrado de uma enorme ferida na sua cabeça. Chamaram a ambulância do SAMU, e os paramédicos constataram que não havia o que fazer. Padre Marion estava morto.
O carro do IML recolheu seu corpo enquanto pessoas consternadas com a tragédia choravam. Outros rezavam e se perguntavam pela Irmã Teresa que era sua auxiliar na paróquia. No IML, Dra. Eliana, a legista, iniciou o trabalho de necropsia. Havia uma grave fratura exposta no crânio, inclusive com perda de massa encefálica; certamente causa da morte. Mas é de praxe examinar o corpo todo, e ao retirar calça e roupa de baixo ensanguentada do padre, ela se espantou: - Hei! Isto aqui está errado! Este não pode ser o padre! – apontou á região pélvica: - Este corpo é de uma mulher!
Então ordenou que coletassem as impressões digitais do cadáver, além de sangue para exames, Quando vieram os resultados, não havia dúvidas sobre sua identificação: era o padre Marion!
Quando a discussão no IML estava no clímax, inclusive com a presença do padre Charles, enviado ás pressas pela Cúria para averiguar o caso, uma funcionária entrou procurando pela Dra. Eliana dizendo que havia chegado uma freira chamada Irmã Teresa.
A freira era uma mulher pequenina embrulhada no hábito que lhe parecia largo. Seus olhos estavam avermelhados pelo pranto e trazia um lenço ás mãos: - Meu Deus, que coisa mais horrível isto! Ela não merecia este fim tão triste.
- Ela? – perguntou padre Charles. – Mulheres não podem ser ordenadas sacerdotes!
- Sim padre, eu sei disso. É uma história complicada que precisa ser elucidada. Por isto estou aqui.
Teresa começou a contar que conheceu Marion quando faziam “escola normal”, e logo perceberam uma importante afinidade, pois ambas estavam resolutas em abraçar a vida religiosa. Queriam se tornar irmãs de caridade, ou melhor: esposas de Jesus!
As duas amigas faziam planos do que pretendiam fazer. Ser missionárias levando auxilio e a palavra de Deus para quem precisasse em lugares longínquos do continente Africano, no sertão nordestino e mesmo na selva amazônica. Teresa se emocionava ao se lembrar disto!
Contudo, havia algo que deixava Marion profundamente inconformada: a proibição das mulheres praticarem os ofícios religiosos de modo igual aos homens. Por mais que se argumentasse, ela continuava achando isto injusto, pois se Deus criou homens e mulheres, por que negar ás filhas de Eva o poder de ministrar os sacramentos? Uma velha freira que as aconselhava advertiu Marion de que eram regras da Igreja, inquestionáveis, e que a rebeldia não combinava com o hábito. Isto poderia até ser encarado como blasfêmia!
Como o sonho da vida religiosa era absoluto, ela se conformou em aceitar esta limitação.
Já terminavam o curso Normal quando Marion providenciou sua carteira de identidade. Quando a recebeu, não percebeu um erro naquele momento, só notado mais tarde quando estava no seu quarto: a informação sobre seu sexo constava como “masculino”. No dia seguinte, teria que corrigir isto! Mas não o fez.
O padre e Eliana trocaram olhares: - Como assim, não fez?
Teresa explicou que Marion não lhe contou a razão e saiu da cidade, apenas dando-lhe um telefonema dizendo que Deus lhe abriu o caminho para a realização do seu sonho, e que aguardasse.
- Aguardasse o quê? – perguntou Eliana.
A freira deu de ombros porque não compreendeu, e seguiu nos seus planos. Entrou para uma ordem religiosa e se tornou irmã de caridade como sempre desejou. Ás vezes pensava em Marion, que não deu mais notícias. Nem sua família sabia!
Mais tarde Teresa ingressou numa Missão em Uganda, também como sempre sonhou, a onde trabalharia junto a um padre recém-ordenado, por coincidência, chamado Marion! E qual não foi sua surpresa ao encontrar a amiga dos tempos da escola normal, usando batina e coordenando uma paróquia.
Padre Charles abanou a cabeça quase na menção de um palavrão, enquanto Teresa explicou que Marion saiu da cidade e seguiu ao Sul do Brasil onde, de posse da carteira de identidade tendo seu sexo como masculino e se aproveitando do seu físico com seios muito pequenos, conseguiu ingressar num seminário, cumprindo todas as etapas até ser finalmente ordenada na Catedral de Porto Alegre! Ela riu ao se lembrar dos apuros que Marion passou no seminário para não ser descoberta, como tomar banho de madrugada mesmo no inverno com porta trancada e mil estratagemas para fugir á qualquer exame médico.
- Impressionante! – exclamou Eliana.
Então Teresa abaixou a cabeça ao dizer que o tempo era um juiz implacável, e a consciência de Marion começou a lhe cobrar a conta daquela mentira, completamente contrária ás regras da Igreja Católica, conspurcando os sacramentos que ministrava no altar ás vistas de Deus. Tinha sido um erro de garota que foi longe demais! – Ela decidiu revelar a verdade diretamente ao Arcebispo, e arcar com as consequências. Certamente seria excomungada!... Mas pouco importava. Ela conseguiu uma audiência com Sua Excelência hoje pela manhã. Mas não deu tempo!... – segurou o lenço nos olhos e chorou.
Padre Charles a consolou: - Fique calma irmã: Foi uma fatalidade que não devemos de forma alguma encarar como castigo de Deus. Ela estava disposta a reparar seu erro, e certamente teria a misericórdia do Senhor.
- Eu também errei padre! Não poderia pactuar com essa mentira. Também devo ser punida.
Então chegou um jovem padre á porta, pedindo licença para entregar a Charles uma pasta. – Ah, sim; obrigado! Por favor, aproveite para levar a Irmã Teresa. – olhou-a. – A senhora terá que conversar com o Arcebispo: está preparada Irmã?
- Sim; também preciso aliviar a alma deste peso, e estou pronta a aceitar a punição que me for imputada.
O jovem padre ajudou-a, e saíram da sala.
- Minha nossa! – exclamou Eliana. – Que história fantástica! Mesmo sendo contra as leis da Igreja, Marion foi muito audaciosa!
Charles seguiu á porta, e a fechou. Depois se sentou diante de Eliana e falou: - Doutora. O que a Irmã Teresa falou não corresponde á realidade! – abriu a pasta buscando um papel. – Infelizmente irmã Teresa é portadora de demência senil; tenho aqui exames que comprovam esta triste condição da religiosa.
Eliana leu e comentou: - Ela parecia tão segura!
- Sim, mas eu garanto que a maior parte do que ela relatou, são fantasias. A verdade é que Irmã Teresa se impressionou pela condição de Padre Marion, e a demência a fez criar uma espécie de explicação que lhe parecesse lógica ao que não mensurava.
- Condição? Do que estamos falando?
Charles buscou outro papel na pasta, e respondeu: - Padre Marion possuía má formação congênita, não possuindo testículos e pênis externos. Algo extremamente raro em homens.
Ao ler o laudo médico, Eliana se espantou: - Padre Marion era transgênero?
- Esta não é uma denominação aceita pela Igreja, mas pode-se dizer que sim. Ele foi criado como menina até á adolescência, quando então descobriram sua anomalia. Pelo que pudemos constatar em antigos exames, sua condição era, como disse, extremamente rara, pois sua compleição física se tornou masculina, mas como seria de se esperar num caso desses, os genitais masculinos não se desenvolveram naturalmente na sua puberdade.
Ainda espantada Eliana argumentou: - Sim, eu conheço esta patologia, que poderia ser corrigida com procedimentos cirúrgicos. Por que ele não o fez?
Charles abanou a cabeça e falou: - Neste ponto precisaremos entrar no âmago da pessoa do padre Marion. Ele não quis!
- Por quê?
- A explicação para esta negação á intervenção cirúrgica tangencia o místico! Sua vocação religiosa se manifestou desde a infância, quando ainda supunha ser uma menina e seu desejo era realmente ser freira. Familiares relataram isto, e neste ponto algo mencionado pela Irmã Teresa pode ter fundo de verdade, pois Marion não se conformava pelo fato das mulheres não poderem celebrar os ofícios da Igreja Católica, como os homens. Assim, quando se descobriu homem, viu isto como uma espécie de sinal advindo de Deus, para seguisse firme na sua vocação!
- Eu entendo,... Mas a recusa em fazer a cirurgia teria relação com sua vocação religiosa?
- Bem doutora; isto nós não podemos revelar porque é segredo de confissão, mas lhe asseguro que foi motivado por questões de fé!
Eliana ainda estava um tanto perdida em meio aos laudos, e disse. – Só posso dizer que nunca tinha visto de perto um caso tão especial.
- A equipe de necropsia chegou a realizar exames nas partes intimas de Padre Marion? - perguntou Charles.
- Eu toquei superficialmente. No inicio, chegamos a supor troca de cadáveres! Estamos aguardando nosso legista especialista em obstetrícia para examinar o corpo.
- Doutora. – falou Charles ao se aproximar quase em posição de súplica. – Isto é mesmo necessário ao laudo da causa mortis? Por favor, doutora, pense bem. Padre Marion foi uma personalidade ímpar na Igreja. Seria útil á sua memória, a revelação desta condição? Eu asseguro que isto não lhe trazia sofrimentos, pois Marion creditava tudo á vontade de Deus!
Eliana pensou um pouco e falou. – De fato não tem relação com a causa mortis. Mas não é uma decisão que caberia inteiramente a mim. Há a equipe de legistas e o próprio diretor do IML.
Padre Charles respondeu: - Quanto ao diretor, se permite; eu me encarrego de lhe explicar o caso. – sorriu. – Sabemos que ele é católico, certamente se sensibilizará! Quanto á equipe, podemos contar com sua discrição?
- Prometo que farei o possível!
- Muito obrigado doutora Eliana, em meu nome e da Igreja! Vou lhe deixar o laudo de Padre Marion.
- Sim,... O que será da Irmã Teresa?
- Vamos encaminhá-la a um convento que mantemos especialmente á religiosos com enfermidades mentais, que não tenham família, como nossa querida Irmã Teresa! Quanto ao que ela relatou, vou solicitar á doutora que releve por conta de sua enfermidade mental. Não há lógica supor que seria emitida carteira de identidade com erro no seu sexo!
Eliana ainda trazia expressão de dúvida no semblante, quando Charles segurou suas mãos ao pedir: - Solicitamos que a peculiaridade deste caso não seja levada á divulgação da mídia. Padre Marion teve rara retidão na sua missão evangelizadora, tanto no seio da Igreja, quanto nas comunidades que serviu, e lamentavelmente este tipo de coisa poderia se transformar em circo de horrores por jornalistas sem escrúpulos. – fez sinal de prece com as mãos. – É possível manter sigilo disto em nome da memória de Padre Marion?
- Sim,... Também não nos interessa servirmos de fonte a especulações sensacionalistas.
- Mais uma vez, obrigado doutora Eliana, em meu nome e da Igreja!
Então se despediram. Padre Charles já marcava encontro com o diretor do IML, enquanto Eliana buscava sua equipe para uma reunião a portas fechadas.
O sepultamento do Padre Marion Smith reuniu uma multidão ao cemitério, todos consternados com aquela tragédia. O próprio Arcebispo compareceu, proferindo sermão onde exaltava sua vida e obra em palavras emocionadas.
Ao colocar a urna no jazigo destinado aos clérigos, ocorreram orações e salvas de palmas. Já se falava na sua beatificação!
A imprensa não emitiu uma só linha a respeito da anomalia física que o acometia.
Ao saírem da cerimônia, Padre Charles seguiu junto ao Arcebispo, e entraram no carro.
- Ah! Que nojo! – reclamou o Arcebispo. – Eu ainda tive que elogiar aquela vadia. Minha vontade era cuspir no caixão!
Charles abanou a cabeça: - A que somos obrigados a suportar em nome da Igreja. Eu precisei quase me ajoelhar aos pés daquela doutorazinha para lhe convencer a manter o segredo!
- Você foi astuto ao levar a freirinha ao IML. Aquela cara de Madre Teresa de Calcutá amolece qualquer coração! – riu o Arcebispo.
- Não é difícil convencer quem já está previamente amaciado! Irmã Teresa já embarcou?
- Sim, mandei-a á missão mais difícil que temos nos confins da África. Se pudesse, eu colocaria aquela imbecil no avião com um pontapé nos fundilhos, pessoalmente! Ah,... Que pesadelo a mentira daquela vadia nos obrigou a passar, mas conseguimos contornar, graças a Deus!
- Sim, de fato Vossa Excelência, mas fico aqui pensando: ao corroborar farsa de colocá-la como transgênero perante os médicos do IML, e depois sepultá-la como padre, com todas as honras, não estaríamos de certa forma glorificando seus atos?
- Sim Padre Charles, há um pouco de verdade nisto. Porém, se pensarmos nos embaraços que traria a revelação de que uma mulher solapou os postulados da Igreja ao ser ordenada como padre, não havia outra coisa a fazer. Além do mais, durante anos essa vadia atuou como vigário de algumas paróquias, celebrando missas, além de fazer batizados e casamentos; como ficaria isto? Teríamos que anulá-los a todos!
- Realmente. Seria um transtorno.
- Seria um belo escândalo de proporções bíblicas isto sim! Já enviei oficio ao Arcebispo de Porto Alegre solicitando que notifique ao seminário que a aceitou. Isso foi no mínimo falta de atenção e cuidado. Ele ficou indignado; cabeças vão rolar por lá!
- Se me perdoe um comentário Vossa Excelência: será que não sabiam mesmo que Marion era uma mulher?
- É uma hipótese, padre Charles! Eles vão investigar. Ufa, para mim chega deste assunto; preciso de sossego. Vamos ao palácio episcopal para um merecido momento de relax! Acompanha-me num conhaque?
- Obrigado. Eu aceito!
E o carro seguiu.
Enquanto isto no IML, Eliana estava furiosa.
Ao ser alertada por um de seus assistentes, que lhe mostrou as roupas intimas manchadas de sangue do Padre Marion, veio á desconfiança; então passaram aos exames, e era sangue menstrual.
- O que vamos fazer doutora?
Ela deu de ombros: - Nada! Assinamos o laudo da necropsia como sendo um indivíduo do sexo masculino, sem maiores exames. Como fui estúpida, aquele padre me enganou!
- Mas doutora: sabendo disto, não estaremos pactuando com a mentira ao ficarmos calados?
- Mas se revelarmos, como ficará nossa reputação héim? Ah,... Fomos enredados nesta farsa por minha culpa. Agora só posso ficar mais esperta para não cair mais em contos do vigário!
FIM.