VIGÁRIO josué
VIGÁRIO: do latim vicarius, aquele que substitui o outro.
Certa vez numa cidade pequena, destas que tem um mandatário com alcunha de Coronel que mantém seu povo no cercado do curral, sempre ao aguardo do segundo pé da botina na próxima vitória eleitoral, veio a ser vigário na igreja matriz um padre chamado Josué. No dia da sua chegada foi recebido na estação do trem com a reverência que o momento pedia. O Coronel mostrou-lhe um sorriso por trás do bigode enquanto o olhava por cima, deixando óbvia a hierarquia do mando no lugar.
A princípio o acordo entre o trono e a igreja parecia selado. Mas ao percorrer sua paróquia, não passou despercebido a Josué, a miséria e a ignorância do povo. Então ele decidiu montar uma escola no salão paroquial com intuito de apresentar as letras aos que não lhes foi dado este conhecimento em tenra idade.
Não se demorou em que Josué fosse alertado para a inutilidade daquele saber em mãos acostumadas ao cabo da enxada. O lápis, mais roliço e leve no traço das letras, palavras e frases, poderia trazer a perigosa noção da liberdade.
Sem ter como levar adiante o sonho da escola, pois precisava das esmolas dos altíssimos para manter ao menos as migalhas ao alcance do ofertório, Josué foi persuadido a desistir.
Não restando outra tribuna senão o púlpito da igreja, o jovem vigário passou a utiliza-lo nas suas pregações de dissimulada rebeldia, onde buscava seus argumentos no grande Padre Vieira, cuja oratória seiscentista era sob medida a aquele arremedo de século XX.
...“Não me admiro tanto que o Senhor permita tantos afrontas e agravos a pessoas que querem simplesmente viver! Pode haver coisa mais sagrada do que viver plenamente, com respeito e dignidade? Mas a mão do senhor parece atada a ordens inferiores que querem oprimir através do medo de algo, que se faz forte, mas são apenas ilusões como sombras na parede que crescem quando o corpo se aproxima da luz para fingir ser maior do que é!”.
Josué se valeu das licenças poéticas no uso e abuso dos famosos sermões de Vieira, que pareciam ser assimilados por ouvidos acostumados apenas ás ordens. No adro da matriz e na praça, as pessoas começaram a trocar impressões sobre aquelas palavras revestidas de algum floreado, mas recheadas de algo que ainda não mensuravam: a humanidade que lhes era negada.
Não podendo privar a tribuna da casa de Deus ao vigário, que possuía sua procuração divina, o Coronel decidiu apelar ao mais fácil.
Era costume dos mandatários também dissimular as ordens aos seus jagunços. O Coronel passou pelo alpendre da fazenda com o guarda chuva ás mãos, virado para cima, como senha ao seu mais fiel pistoleiro, que deveria se colocar no térreo, perto de onde ficava a senzala, abaixo da varanda. Então, o Coronel se sentou na sua cadeira de balanço, acendeu um charuto e disse: - Este padre fala muito bonito. Mas fala demais! – e deu três batidas com o salto da bota no chão de tábuas. Estava feita a encomenda.
Na parte de trás da igreja havia uma pequena mata, onde davam as janelas da sacristia. O jagunço, sujeito medonho que tinha um olho preto e outro castanho, esperaria Josué terminar a missa das seis da tarde, quando seguiria á sacristia para guardar os paramentos nas gavetas de uma cômoda. Era só esperar o padre se colocar ali, de costas ás vidraças das janelas, para lhe desferir o disparo perfeito na nuca. Sem testemunhas, mas com mensagem bem dada a quem se metesse á herói!
Então, terminada a missa, Josué seguiu á sacristia, colocando-se exatamente na mira do jagunço que já roçava o dedo no gatilho da espingarda fechando seu olho preto para aguçar a pontaria. Mas subitamente o padre deixou sua estola cair ao chão e se abaixou para buscá-la no exato momento que irrompeu o estampido, seguindo o projétil acima de sua cabeça, direto no quadro do Sagrado Coração de Jesus á parede acima da cômoda, certeiro no peito do Cristo.
Vendo o buraco da bala no coração de Jesus, o jagunço se ajoelhou em desespero ante ao pecado que acabara de cometer ao ferir a imagem do salvador, e começou a rogar ao padre que intercedesse ao seu favor junto aos santos. Recobrando-se do susto, Josué se aproximou e lhe prometeu o perdão divino, contanto que revelasse quem lhe encomendou sua morte. Mais desesperado ainda ante a escolha de quem trairia - o senhor do céu ou o da terra - o jagunço tornou a se embrenhar na mata, e desapareceu sem nada dizer.
Nunca mais foi visto. Dizem que se matou.
O Coronel se limitou a abanar a cabeça ao acusar o padre de não medir suas palavras á pessoas de miolo mole que entendiam tudo errado, e dava de ombros ao dizer: - Tá até na Bíblia: nunca deve se jogar pérolas aos porcos; só farelo!
Dias depois Josué foi obrigado a deixar a cidadela por ordem da Cúria, que prometeu ao Coronel um vigário mais consciente da sua missão evangelizadora, e mais afeito a ordem estabelecida no lugar.
O Coronel sorriu por trás do bigode.
FIM.
(nota) o texto entre aspas foi inspirado no “Sermão do Bom Sucesso”, do Padre Antonio Vieira do ano de 1640.
Cada vez melhor!!!
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