quarta-feira, 15 de setembro de 2021

CONTOS DO VIGÁRIO #06 - CAPÍTULO FINAL.

 

VIGÁRIO LINEU

 

Mathias entrou no foyer do Hotel Ritz e foi conduzido á uma sala onde o homem de óculos grossos e cabelo grisalho o aguardava. Aproximou-se, o homem o olhou e perguntou: - Mr. Agamêmnon Mathias?

- Yes, I am!...

- Podemos falar em português. Durante anos fui missionário nas colônias de Portugal na África, e domino bem o idioma. Por favor, sente-se para conversarmos.

- Sim, Mr. Lineu. – respondeu com certo alívio e sentou-se. Então o clérigo perguntou: - O senhor é comissário de polícia, certo?

- Sim; eu sou detetive da policia civil.

- Hum, foi o que eu entendi. Bem, eu fui enviado ao Brasil e á esta cidade assim que recebemos seu telegrama falando da morte de Jacob Stein.

- Sim. Jacob foi assassinado e como tínhamos encontrado o seu telegrama, eu achei melhor enviar outro informando de sua morte.

-Isto eu compreendi, senhor comissário, mas acredito que tenha acontecido um engano. John Curtiss Taylor é o nome do meu filho adotivo que viveu nesta cidade e me enviou uma carta onde manifestava vontade voltar á viver em Londres, eu respondi enviando o referido telegrama. Quanto á Jacob Stein: era empregado da sede da congregação anglicana.

- Mas, não foi Jacob que lhe enviou a carta?

- Claro que não! Como eu disse, foi meu filho adotivo que a enviou!

- Quando seu enteado a enviou?

- Três meses atrás! Eu respondi que o receberia como um filho, e ele voltou a Londres!

- Ele está lá?

- Sim!

- Quando ele voltou?

- Faz dez dias! Então recebi seu telegrama, mostrei aos meus superiores que resolveram me enviar aqui para ver por que mataram Jacob! – ocorreu uma pausa sem que Mathias conseguisse organizar as ideias, e Lineu falou: - Mr. Agamêmnon; eu vim á sua cidade apenas de passagem, porque depois de amanhã, eu seguirei ao Mato Grosso para conhecer o Pantanal. Eu sonho com esta viagem há anos, mas antes preciso fazer um relatório á Congregação, porque Jacob foi um empregado muito querido de todos!

- Oh sim. Na verdade nós descobrimos este telegrama durante as investigações do assassinato e Jacob. Se não se importa, a propósito disto eu Poderia fazer algumas perguntas?

- Sim. No que eu puder ajudar a polícia brasileira na solução deste crime, eu farei.

- Obrigado. Eu gostaria que falasse um pouco sobre as atividades do seu enteado John. Por acaso ele trabalha ou trabalhou com empréstimos de dinheiro á juros?

Lineu abaixou a cabeça e falou: - Eu tinha medo que fizesse esta pergunta, senhor comissário, por que isto foi o motivo da nossa discórdia. Vou explicar...

Mais tarde na delegacia.

No gabinete, Mathias relatava seu diálogo com padre Lineu ao delegado e á Josélio.

 - O reverendo Lineu revelou que John nunca primou pelo caráter. Era um swindler, ou vigarista em bom português! Então, ele prosseguiu contando os frequentes atritos com o enteado, que trabalhava de forma clandestina escondendo dinheiro que não podia aparecer em contas na Europa. Haveria cidadãos de origem judaica ou mesmo ciganos, temerosos que no caso de um domínio nazista na Europa, seu dinheiro fosse confiscado. Quando começou a guerra, John desapareceu de Londres temendo ser convocado para o exército. Em 1945 o reverendo viu John pela última vez, e permaneceu vinte e cinco anos sem saber do seu paradeiro até ele lhe enviar a carta dizendo que desejava voltar a Londres.

- John Curtiss está em Londres?

- Sim Josélio! O reverendo até me mostrou uma passagem de um voo do Rio de Janeiro á Londres em nome do enteado confirmando a data!

- Por que o reverendo trazia esta passagem já usada pelo enteado? – perguntou novamente Josélio.

- Ele disse que ficou esquecida no bolso do casaco emprestado do enteado. Mas, será que Jacob e John se encontraram aqui no Brasil? Mas porque mentiu á Miss Michael ao dizer que John morreu nos bombardeios sobre Londres em 1940! Perguntei ao reverendo sobre a relação amorosa entre seu enteado e Jacob, e ele preferiu não opinar nas decisões pessoais de John.

- Vai ver que Jacob não o encontrou e supôs que estivesse morto. - sugeriu Josélio.

- Ou então Jacob mentiu para Miss Michael! Mas porque faria isto se eram amigos?... Ou mais um pouco que isto. Ah, mas no que essas coisas acrescentam qualquer coisa á nossa investigação?

- Puxa vida doutor: não sei como é na Igreja Anglicana, mas devia ser chato para o reverendo ter um filho homossexual, mesmo sendo adotivo, né?

- Sim, acredito que devia ser embaraçoso. O reverendo disse que estava de passagem em Juiz de Fora; mas, será que?... – então Mathias parou de falar, ficando em silêncio por um tempo com as mãos fechadas. - Será que isso seria motivo para matar?

- O doutor está achando que o Reverendo tem algo a ver com o assassinato de Jacob? - Perguntou Clóvis.

 Subitamente Mathias abriu os braços e falou: - Esse filho da puta inglês veio aqui só para bater carimbo de bobo na cara da gente!

- Como assim doutor?

- Então aquele vigarista veio para Juiz de Fora, se fazendo de pobre para angariar simpatias, e montou seu negócio de agiotagem se valendo da identidade do outro?

- De que outro você está falando? – perguntou Clóvis.

- Eu falo de coisas que não encaixam! Esses filhos do senhor Jacob não viram que o homem que estavam sepultando não era seu pai?... Espere. – ocorreu uma pausa e ele olhou para os lados com expressão de dúvida: – Em momento algum eu disse em que lugar encontramos o telegrama, e o reverendo também não perguntou! – ele colocou o dedo indicador nos lábios e divagou: - Como podia não saber?... Ou saber!

- Quem não sabia o quê doutor? – perguntou Josélio.

- Esta é a pergunta, detetive: “o quê?”. E mais um monte de “porquês?”. Ás vezes, nós nos perdemos nas investigações porque não fazemos as perguntas corretas. Então, não conseguimos as respostas certas de volta! – Clóvis e Josélio trocavam olhares enquanto ele prosseguia. – Outras vezes, nós não fazemos as perguntas nos lugares certos, até alguém dar a dica. – virou-se e pegou o telefone, mas desistiu falando: - Vai ser inútil daqui! – levantou-se e falou á Josélio: - Volte ao cortiço e pergunte á dona Amália sobre as pessoas que ela viu ao lado de Charles, ou o procuraram no seu quarto.

- Homens?

- Não! Qualquer pessoa! Mas não a pressione; vá puxando conversa como quem não quer nada.

- Saquei doutor!

- Enquanto isto eu vou á nossa boa e velha Telefônica Municipal S/A para tentar fazer uma ligação nas cabines, ali pertinho das telefonistas!

- É ligação interurbana?

- Um pouco mais para longe Clóvis! Quem sabe a nossa Telemusa hoje está de bom humor e atende á minha solicitação?

E saiu deixando-os pasmos até Clóvis ordenar: - O que está esperando para ir ao cortiço, detetive Josélio?

- É pra já!

Na tarde do dia seguinte, Hebe servia uma xícara de chá ao reverendo: - Espero que esteja de acordo. Que chique este chá das cinco!

Ele provou um pouco e disse: - Está sublime, senhora! Vê-se bem que é uma lady de gostos refinados.

- Decerto! – olhou em torno: - Esta casa nem sempre foi esta pocilga cheia de goteiras!

- Longe disso lady! É uma bela vivenda com bonitos detalhes vitorianos. – elogiou sorvendo mais um gole de chá.

- O senhor não acha que se arriscou ao procurar o detetive?

- Absolutamente! Eu precisava saber o que ele sabia; e era quase nada! – riu. – A polícia daqui é mesmo uma piada! Se eu não me servisse de amigos em Londres a me informar do telegrama que o detetive enviou, nós poderíamos ter problemas!

Hebe sorriu meio sem graça e disse: - Ainda acho que foi arriscado. Mas, lembre-se do nosso acordo héim? Assim que os filhos de Jacob voltarem á Londres eu ficarei como procuradora da casa de empréstimos!

- É evidente senhora Hebe. Já conversei com o advogado, doutor Fonseca, e ele está ciente. – bebeu mais golinho de chá. – Quero dizer; o senhor Miranda conversou com ele!

- O que vai acontecer com o senhor Miranda depois?

Deu de ombros: - Não sei! – riso: - Eu vou passear no Pantanal!

- Eu nem consigo imaginar de onde o reverendo tira coragem para fazer essas coisas! - ela olhou para trás e perguntou num cochicho: - E quanto aos dois filhos do judeu? Não criarão caso para deixar-me como sua procuradora?

Ele abanou a cabeça ao responder: - Assinarão o que lhes ordenar! Não passam de dois infelizes quase analfabetos e cheios de traumas de guerra á pensar que realmente enterramos o pai deles!

- Mas me diga uma coisa: quem é Jacob Stein na verdade, e a onde está?

- Não preocupe sua cabecinha com isto, my darling! Jacob Stein era apenas um verme que não vai mais importunar.

- Por que diz “era”? - Então bateram á porta, Hebe foi espiar por trás de uma cortina, e voltou assustada: - Oh céus, é o detetive Mathias!

- Bull shit! – exclamou: - Ele não pode me ver aqui!

- Saia pelos fundos e se esconda na loja de peles;  aqui está a chave da porta do beco! – falou Hebe, ao que ele concordou e seguiu ao corredor, até uma porta que dava no quintal. Ela ainda aguardou um pouco que ele passasse pela abertura no muro por trás dos burgos ilês e foi atender á porta da frente.

- Olá doutor Mathias, que surpresa! Por favor, entre!

Ele entrou, mas antes fez um gesto com a mão ás costas. – Boa tarde senhora Hebe, não vou me demorar, é rápido! Seu sobrinho disse que a senhora ficou um tanto agastada com minha visita á sua casa?

- Mas que bichinha fofoqueira ele é! Ah, doutor; polícia visitando a gente pode espantar as pessoas, não é?

- Hum, a senhora está com hóspedes agora?

- Ehr,... Sim, estão no quarto! São estrangeiros.

- Que interessante!...

Então subitamente se ouviu tiros na peleria ao lado e Hebe se assustou: - Ai meu Deus, o que foi isto?

Rapidamente Mathias abriu a porta da frente e alguns policiais entraram na casa. Ela protestou: - Ora, mas que absurdo é esse; o que está havendo?

Mathias a segurou com delicadeza, mas falou enérgico: - Por favor, senhora Hebe, me acompanhe á delegacia! – ela obedeceu, mas ainda pôde ver os filhos de Jacob sendo trazidos á sala muito assustados, junto á um intérprete explicando-os no idioma polonês o que estava acontecendo.

Hebe foi colocada no banco traseiro de uma viatura enquanto Mathias seguiu á peleria no momento que efetuavam a prisão do homem que se escondeu na loja. Policiais o aguardavam, ele reagiu e feriu Josélio no braço com um disparo. – Você está bem? – perguntou Mathias.

- Sim doutor,... Foi de raspão!

- Vá direto ao pronto socorro! – depois olhou dois policiais trazendo o homem algemado. Mathias o olhou e disse: - Boa tarde, Mr. Lineu! – fez um gesto de cabeça e falou: - Coloquem no camburão!

Ele gritou: - Sons of bitches!

O dia seguinte raiava, e era grande a confusão de pessoas na delegacia central de Juiz de Fora em busca de informações sobre a reviravolta no caso do assassinato do agiota.

Lineu permanecia calado ao lado do advogado, que reclamava ao limpar seus óculos com uma flanelinha. – Que absurdo esta detenção arbitrária! – olhou seu cliente que continuava em silêncio.

Então o delegado Clóvis entrou acompanhado de Mathias. O advogado tornou a reclamar: - Espero que tenham subterfúgios para efetuarem a prisão de um cidadão britânico que além do mais, é um religioso!

Clóvis respondeu: - Bem, doutor Fonseca; seu cliente atirou em um policial! E se isto não bastar,... – pegou uma pasta: -... Temos este dossiê enviado via telex direto de Londres, falando de investigações feitas pela Scotland Yard sobre atividades ilícitas praticadas pelo Reverendo Lineu Curtiss Taylor!

O advogado olhou o camalhaço enquanto Lineu passava a mão na testa.

Clóvis prosseguiu: - Inclusive o Reverendo Lineu está afastado das suas atividades religiosas por dúvidas na sua conduta! – encarou o advogado: - Espero que seu cliente tenha lhe dado ciência disto!

- Eu preciso de tempo para examinar esta documentação! – falava meio perdido enquanto abanava a cabeça em desaprovação.

- Nada disto impede que façamos algumas perguntas ao reverendo Lineu, que foi preso em flagrante ao ferir um policial no cumprimento do dever! – Clóvis perguntou á Lineu: - O senhor vai cooperar?

- Fuck you! Eu não tenho nada o que falar aqui!

Mathias tomou a palavra: - Hum, então o reverendo prefere ser extraditado para Londres e responder perguntas por lá?

- What?

- Sim! – mostrou um papel: - Há uma investigação sobre o desaparecimento do cidadão polonês Jacob Stein, que foi visto pela última vez na companhia do Reverendo Lineu Curtiss á beira o rio Tâmisa e,..., Que tragédia! A polícia encontrou o corpo do senhor Jacob boiando nas águas do rio há uns dias!

O advogado apanhou o papel; olhou Lineu e perguntou: - O que mais o senhor ocultou de mim?

Mathias prosseguiu: - Ocultou mais do que o doutor imagina! Sugiro que aconselhe seu cliente a cooperar. De nada vai adiantar o silêncio; vamos acabar descobrindo a história cedo ou tarde.

Lineu riu e falou com deboche: - Esta polícia de merda não consegue descobrir nada.

Clóvis se exaltou ensaiando uma agressão, mas Mathias o deteve: - Calma! É isto que ele quer! – depois encarou Lineu: - Preste atenção, reverendo: o senhor apostou que sua gênese anglo-saxônica fosse mais esperta do que nós, pobres sul americanos subdesenvolvidos, tanto que me chamou ao Hotel Ritz para tentar descobrir o que eu sabia! – deu de ombros: - Como eu nada sabia, sua aposta foi vitoriosa, certo? – deu um risinho: - A presunção é má conselheira,... Oh, quero dizer: presumption is bad counselor. É assim que se diz em inglês?

- Em péssimo inglês! – respondeu Lineu.

- Ok, realmente não é dos melhores! Mas, independente do idioma, isto me trouxe uma dúvida: o reverendo afirmou que ficou sem contato com seu filho adotivo desde 1945. Nunca teve curiosidade de procurá-lo no Nepal, no Alasca ou na Ucrânia? – chegou perto: - Por que nunca investigou seu paradeiro?

- E por que eu faria isto? Pensava que ele estaria bem, e não precisava de mim!

- De fato; é o pragmatismo anglo-saxão, certo? Então, John enviou uma carta dizendo que queria voltar a viver em Londres ao lado do seu papai adotivo! Foi isto?

- Sim, Não lembra que eu lhe disse isto, senhor comissário?

- É claro que lembro! Porém, equivoquei-me, e imaginei que o reverendo estivesse à espera do senhor Jacob, por que encontramos a resposta á sua carta no bolso de um casaco que ele usava quando foi assassinado. Uh, eu lhe falei disto?

- Sim, falou!

- Certo. Aí o senhor pegou o primeiro avião para fazer uma viagem turística ao Pantanal do Mato Grosso; mas antes teria que vir á Juiz de Fora para elaborar um relatório sobre a morte,... Ou melhor, assassinato do senhor Jacob, para a Congregação Anglicana de Londres. Hum, esqueci alguma coisa?  

- É isto mesmo comissário!

- Puxa vida; mas Jacob não era só um empregado da Igreja? Porque fazer uma viagem de mais de vinte horas para averiguar a morte de um simples empregado? Ou ele era mais do que isto?

- Somos cristãos, caro comissário! Não é porque fosse um reles zelador que deixaríamos de investigar!

- Mas, não seria mais prático á Congregação nos enviar um pedido de esclarecimentos sobre o crime via telex ou mesmo em correspondência expressa? – subitamente Mathias socou a mesa, espantando á todos, e falou ríspido: - Vamos deixar de subterfúgios e mentiras? Acorde reverendo! O corpo de Jacob Stein está mofando na geladeira de um necrotério em Londres e há testemunhas que viram o reverendo ao seu lado á beira do rio Tamisa um instante, e no outro instante ele não estava mais! Quanto tempo a polícia londrina vai se demorar para vir atrás do reverendo Lineu Curtiss Taylor, suspeito de assassinato de Jacob Stein? – deu de ombros: - Então, se é assim, o melhor que a policia de Juiz de Fora tem á fazer é esperar o pedido de extradição por parte da policia londrina para que o reverendo Lineu responda pelo assassinato de Jacob Stein na justiça britânica! Que tal delegado?

- Pode ser uma boa! – respondeu Clóvis: - Vamos tratar de informar á Scotland Yard e á Interpol que o vigário Lineu está detido aqui, á espera do avião que vai despejá-lo no xilindró londrino!

Mathias abanou a cabeça: - E a polícia de Londres não é uma porcaria como a nossa né? Será que a pena capital ainda poderia ser aplicada lá em caso de homicídio?

- Não!... Oh shit!... – houve uma pausa e Lineu abanou a cabeça: - Ok! Game over. – fez mais uma pausa para tomar fôlego e disse: - Está bem o que querem saber?

- Vamos começar pela sua relação com John Curtiss Taylor e Jacob Stein. O primeiro era seu filho adotivo, e o segundo era o namorado dele?

Lineu riu e respondeu. – John realmente era um pervertido que gostava de homens, e não bastasse isto, era um escroque! Pessoas o procuravam para enviar dinheiro á outros países para escapar dos fiscais de renda. John conseguia outras pessoas que assinavam como se o dinheiro fosse delas,... Eu não sei como chamar isto em português, mas eram pessoas que ele usava só o nome.

- Aqui chamamos de “laranjas”, que se espreme o suco e depois joga fora o bagaço!

- Yes, oranges! – riso: - Isto é exatamente o que Jacob Stein era: um judeu polonês simplório e fácil de usar para isto.

- Hum; quem o usava?

Lineu fez um sorriso sarcástico ao responder: - Eu o usava! John enviava para bancos suíços dinheiro que eu tomava emprestado da congregação em nome de Jacob! – fez um gesto de prece: - A Igreja tinha tanto que não faria falta se eu pegasse um pouco!

Mathias ficava impressionado com seu cinismo, mas perguntou: - 

O que deu errado? A guerra?

- Não seja tolo, comissário. Na guerra é que se ganha mais dinheiro! Aconteceu que duas coisas não saíram do jeito esperado: a família de Jacob tinha permanecido na Polônia, e ele foi buscá-los. Então o imbecil foi preso e enviado ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau junto com sua família, e eu fiquei sem o meu orange! A segunda coisa é que meu enteado se aproveitou daquele momento de desorientação de minha parte para me roubar! Ele já se passava por Jacob Stein nas transferências de banco, com a sua documentação verdadeira. Assim, como dono da conta ele podia movimentar o dinheiro do jeito que quisesse! – chegava a arfar de ódio. – Ele se aproveitou da minha confiança!  

- Como ele fez isto? – perguntou Clóvis.

- John retirou todo o dinheiro de um banco e passou á outro, e depois á outro protegido pelo sigilo da Suíça, e sumiu de Londres! Eu não tive como descobrir para onde ele tinha ido, e nem o que fez com meu dinheiro!

- Mas John voltou á Londres em 1945 para transferir mais dinheiro ao Brasil! – observou Mathias. – O reverendo não ficou sabendo?

- Não, por que a congregação estava devotada ao auxílio aos pobres no pós-guerra, e eu fui convocado para atuar nisto. John me escapou pelos dedos!

Clóvis perguntou: - Se ele usava o nome de Jacob Stein, o senhor teria como investigar pelo nome!

- Não me tome por imbecil; eu o procurei nos quatro cantos do mundo! – riso: - Só nunca imaginei que John viesse para essa cidade medíocre neste país de merda até o dia que recebi uma carta dele se dizendo arrependido, querendo voltar a Londres e prometendo me devolver o dinheiro que me roubou. Sentimentalismo estúpido!

- Mas se seu enteado estava disposto a lhe devolver seu dinheiro, porque não aceitou? – perguntou Mathias.

- Por acaso ele conseguiria devolver-me também o tempo e a humilhação que passei? - abanou a cabeça: - Isto não podia ficar sem resposta!

- E a resposta foi assassiná-lo?

- Sim! É assim que se faz com os vermes!

Mathias debruçou na mesa encarando-o: - Mas diga-me quem era o verme a ser eliminado aqui? – O reverendo ficou estático e o detetive continuou: - Se o reverendo recebeu a carta com pedido de perdão, enviada á Londres pelo seu enteado John, porque encontramos o seu telegrama em resposta, dizendo que aceitava as desculpas, no bolso do paletó de Jacob?

- Não sei,...!

- Então, podemos concluir que, como John e Jacob eram namorados, ele só poderia estar aqui o tempo todo! – Mathias falava rápido: - Céus, ele deve ter assassinado Jacob, talvez numa briga de ciúmes ou por dinheiro, e depois fugiu para Londres; precisamos informar isto á Interpol!

- Não!... Quem matou John foi Charles, o segurança! – respondeu ansioso. – Quero dizer, quem matou Jacob,...

Mathias cortou-o: - Quem matou John, foi o jovem Charles, disto não temos dúvidas! Motivos? Ganância, alcoolismo e uso de remédios antidepressivos para segurar a barra de rejeição da família por ser homossexual. Certamente ele precisava de ajuda espiritual, pobre ovelha perdida! Então surgiu o reverendo para ajudá-lo a resolver seus problemas em troca de apoio,... E o que mais? – aproximou-se. – Ou fala, ou é o avião para a cadeia londrina!

- Oh my God! – abanou a cabeça. – Está bem,... Foi por dinheiro, e foi tão fácil atraí-lo com promessas de que o levaria comigo para Londres. – riso; - Eu iria lhe mostrar a Abbey Road e o estúdio dos Beatles!

- Então o induziu a se matar depois?

- Não fui eu, comissário: foi a sweet granny Hebe! Foi ela que me falou das angústias daquele verme rejeitado pelo outro verme, e se ofereceu para deixá-lo cheio de raiva antes e culpa depois! – e riu;

Mathias pensou: - puta que pariu! – mas perguntou: - Foi assim com o outro verme Jacob Stein Também?

Lineu olhou-os: - Exatamente!

- Por que fez isto? – perguntou Clóvis: - Ele não era o orange perfeito?

- Exatamente; era! Quando acabou a guerra, Jacob era um farrapo humano com dois filhos que lhe restaram. Sua mulher e os outros três filhos morreram em Auschwitz! Então imaginei que seria bom tê-lo como um servo obediente e grato por eu ter lhe estendido á mão. – risinho: - Eu precisava mostrar que era bondoso para a Igreja e para os fiéis! Mas suponho que o segredo dos bancos Suíços tinha frestas que os nazistas podiam espiar, e Jacob começou a se perguntar por que quando estava preso, lhe cobravam pelo dinheiro que achavam que ele tinha, e o espancavam para confessar? Como ele não sabia, quase morreu também. – suspirou: - Então o judeu foi ficando perguntador demais e isto me aborreceu! – deu de ombros: - Foi fácil leva-lo a beira do Thames para lhe dar um chute nos fundilhos direto ao fundo do rio.

- Mas encontraram o corpo! – falou Clóvis.

- Yes! Fezes flutuam, e seguem o curso do rio. – respondeu irônico.

Mathias disfarçou o nojo e fez gesto afirmativo com a cabeça: - Que pena, era uma historinha perfeita: o reverendo Lineu veio ao Brasil para saber da morte de Jacob Stein, o empregado que está morto e enterrado. Só que não era ele no caixão, mas John Curtiss, estranhamente sem evidências documentais de ter vivido no Brasil em qualquer tempo; mas então, o que aconteceu a John? – abriu os braços: - É evidente que permaneceu em Londres desde 1939! Muito apropriado á sua finalidade.

- Do que está falando?

- Simples! – respondeu Mathias: - O reverendo não veio aqui apenas para eliminar seu enteado, que usava o nome de Jacob Stein, além de resgatar seu dinheiro, mas para também dar sumiço ao vigário Lineu, que, como se diz no Brasil, está mais sujo em Londres do que pau de galinheiro! – Lineu olhava-o assustado, - A polícia londrina viria atrás do reverendo Lineu Curtiss Taylor, suspeito de assassinato de Jacob Stein, e também de outros crimes, como roubo, e não o encontraria aqui, e nem no Pantanal! A diferença de idade entre o senhor e seu enteado era de apenas doze anos; nada que uma boa plástica não resolvesse! – Lineu até bufava enquanto Mathias prosseguia: - É bom aprender com quem sabe fingir outra identidade, não é? John Curtiss Taylor seria apenas um cidadão britânico que nunca pôs os pés no Brasil, e poderia curtir a vida na Europa com nome limpo e bolso cheio! E quanto ao reverendo,... – fez um muxoxo: - O Pantanal de Mato Grosso é muito perigoso, e o reverendo poderia engolido por uma anaconda!

- Vocês não têm provas de nada disto! – esbravejou Lineu enquanto Mathias concluía: - Provas a gente arranja! Bem, doutor Fonseca e delegado Clóvis; agora é com vocês! – olhou Lineu e repetiu: - presumption is bad counselor, seja lá o jeito certo de falar isto em inglês! – e ia saindo da sala de interrogatório, mas parou e falou ao advogado. – O doutor precisa de novos óculos. Não notou que o reverendo e o senhor Miranda são a mesma pessoa? – Fonseca fixou o olhar no seu cliente e exclamou: - Puta merda!

Com uma tipoia no braço ferido, Josélio aguardava no corredor junto á Miss Michael que perguntou: - E então doutor, como foi?

- Depois falo, preciso ir ao banheiro para vomitar!

Mais tarde Mathias lhes explicava: --... E foi desta maneira que ele fez. Ah, honestamente, eu não canso de me espantar com a perversidade humana. Ele usou Jacob Stein, um judeu premido pelo medo do holocausto, assustado e ingênuo, para roubar. Usou um jovem perturbado como Charles para matar John, sem sujar suas mãos. E usou o ódio da senhora Hebe na execução do seu plano, além dos dois filhos de Jacob, tão marcados pelos abusos sofridos em Auschwitz que parecem dois zumbis!

Miss Michael suspirou e disse: - Charles costumava almoçar na casa de tia Hebe, junto às prostitutas. Algumas vezes ele tentou falar comigo, e o recusei. Eu tinha ciúmes dele com Jacob... Quero dizer, John. Talvez se eu o tivesse lhe dado atenção para compartilhar suas angústias pela sua opção sexual, nada disto teria acontecido.

- Não pense deste modo! Canalhas do tipo do reverendo Lineu sempre acham um jeito de persuadir os outros, tocando nas suas susceptibilidades.

- Eu sei! – olhou-o: - Minha tia está bem encrencada, né?

- Muito! Ela foi coautora do assassinato de John ao conduzir Charles á brecha no muro para matá-lo. Foi ela também que fermentou o ressentimento de Charles á John por não levá-lo consigo para Londres! Foi aí que o reverendo, se passando por Manuel Miranda entrou em cena lhe oferecendo a viagem dos sonhos á Londres em troca do homicídio. Foi sua tia que deu cloridrato de amitriptilina á Charles para deixá-lo ainda mais confuso. Sabia que este remédio pode levar ao suicídio?

- Sim, eu sei. Faço uso deste antidepressivo para suportar a barra! Oh deus, Manuel Miranda também foi mais um disfarce do reverendo! Esta pessoa existe de fato?

- Segundo a Scotland Yard, é alguém que teve contato com o reverendo Lineu quando foi missionário na África. Devia ser mais um laranja que foi eliminado; eles estão investigando. O reverendo veio ao Brasil usando a identidade de Miranda quando veio planejar o crime e arranjar cúmplices.

Miss Michael completou: - E foi então que conheceu minha tia, que lhe abriu o caminho. Eu nunca imaginei que a raiva pela perda do status e do dinheiro levasse minha tia ao fazer parte desta coisa nojenta! Mas, apesar de saber do desprezo que ele tem pelo seu sobrinho viado, eu não posso abandoná-la. Acho-a muito infeliz! – houve uma pausa e ele perguntou: - O reverendo será mesmo extraditado de volta á Inglaterra?

- Bem; a justiça inglesa vai solicitou sua extradição pelo assassinato de Jacob Stein e provavelmente do cidadão português Manoel Miranda, além dos roubos na Congregação Anglicana, que já o expulsou dos quadros dos clérigos. Aqui ele é acusado de falsidade ideológica, uso de documentação falsa, e como coautor e mentor do assassinato do cidadão britânico John Curtiss Taylor. Estou torcendo para que a justiça brasileira o envie de volta a Londres embrulhado para presente; isto é tudo que ele não quer!

- Que vá para o inferno! – falou Michael. – Mas tem uma coisa que tenho certeza; John não mentiu! Ele realmente tinha alguém em Londres. Um amor! Eu vi como ele sofreu ao saber que morreu nos bombardeios. Até usava duas alianças como um viúvo!

Mathias respondeu: - Penso que poderia ser um caso clandestino, talvez um homem casado pulando a cerca que John abandonou por lá quando fugiu para o Brasil, e que de fato morreu nos bombardeios sobre Londres! Nunca saberemos. – então alertou: - Sei que não teve nada a ver com o crime, mas como teve contato com o reverendo disfarçado como senhor Miranda, talvez tenha que prestar esclarecimentos também. – deu de ombros. – Sinto muito, mas; não saia da cidade, ok?

- Eu não pretendo fazer isto! – preparou para sair: - Preciso voltar ao salão. Com licença. – e se retirou.

Josélio o esperou sair e perguntou: - Será que ele está totalmente inocente nisto?

- Não creio que Miss Michael tenha participado do plano. Mas isso agora é com a justiça! – passou a mão na testa. – Estou tão cansado. – olhou seu relógio. – E ainda são dez da manhã! – olhou o teto. – Por que a luz está acesa de dia?

- O pessoal esquece! – respondeu Josélio. – Vou apagar. Como diz minha avó; luz acendida durante o dia é só pra quem é sócio da “Mineira!”.

E riram.

 

FIM!

 

 

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