sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

UM ENCONTRO NO NATAL

 


Juvenal era Papai Noel; não o verdadeiro, é claro, mas o bom velhinho das festas de fim de ano de empresas, associações sindicatos, e particulares. Preferia festas de adultos porque eram mais rentáveis. Papai Noel de shopping? Nem pensar!

Era madrugada quando conduzia seu vetusto VW Santana, ainda com seu traje de Papai Noel, depois de mais uma festa num clube cheinho de empresários bêbados, assim como ele, que carregava o perfume de uma mulher que absolutamente embriagada o arrastou para um canto, dizendo: - Quero ver o que tem na sacola do Papai Noel! – ele riu e respondeu: - Tá meio vazio, só tem um boneco!

Festa boa e bem paga, regada a uísque e mesa farta; assim Juvenal conduzia seu possante entoando a canção “Happy Xmas” de John Lennon num inglês bem fuleiro. O para brisa do carro começou a embaçar e ele tentou limpá-lo esfregando a manga do casaco tornando-o ainda mais turvo. – Droga!... Limpa, porcaria! – reclamou enquanto ia ficando nervoso, e pisando mais fundo. Então o carro começou a seguir em zigue-zague sem ele dar conta. Adiante havia uma rotatória, a qual o veiculo galgou num salto, seguindo aos solavancos. Juvenal não conseguia ver adiante e nem deter o carro sem direção até se chocar em algo. Agarrado ao volante, ele olhou através do para-brisa embaçado; havia luzes piscando. – Ih!... Será que eu bati numa árvore de Natal? – ao abrir a porta viu que se tratava do giroflex de um carro patrulha e dois policiais olhavam-no com cara de poucos amigos. Juvenal saiu do seu carro aos tropeços e num ato sem noção lhes disse. –... Feliz Natal. – e vomitou em seguida.

Foi detido por direção perigosa, embriaguês ao volante e dano ao patrimônio público.

Dias depois estava na audiência com o juiz, que dizia ao seu advogado: - Seu cliente caprichou; poderia ter resultado numa tragédia!

- Meritíssimo; - respondeu: - Meu cliente está ciente da gravidade do seu erro e está disposto a arcar com as consequências. – Juvenal o cutucou: - Peraí, não! Assim você vai me ferrar! – ele respondeu: - Cala a boca idiota!

O juiz interveio: - Por favor, senhores, vamos parar com esta audiência paralela! Já decidi o veredito: - olhou Juvenal firme: - Eu o condeno ao pagamento de uma multa de cinquenta salários mínimos, ou reclusão por um ano!

- O quê?... Eu não tenho este dinheiro, e não quero ser preso...

O advogado interviu: - Meritíssimo; meu cliente é réu primário! Esta multa não poderia ser revestida em trabalho comunitário ou doação de cestas básicas?

O juiz sorriu: - É evidente doutor! – olhou Juvenal: - O senhor é Papai Noel de festas; certo? Todos os anos há dificuldade em encontrar pessoas que façam Papai Noel em escolas públicas e outros locais de auxilio á crianças carentes. Faltam vinte e um dias para o Natal; então eu proponho como pena alternativa, que o senhor faça o Papai Noel em vinte festas em diferentes locais da cidade.

- Festas... Para crianças? – perguntou Juvenal.

- Sim!

-Oh Meritíssimo. – falou o advogado: - Meu cliente fará com todo o carinho e dedicação!

Juvenal só pensava: - Que droga!

Assim, sem ter escolha, naquela mesma tarde ele seguiu á uma escola municipal num bairro de periferia. Um lugar que Juvenal nem sabia que existia! Arranjaram-lhe uma poltrona ao lado de uma árvore de natal magrinha de enfeites e uma fila de crianças. Ele entrou com o tradicional “Ho, ho, ho” e se sentou. As crianças vinham com pedidos diversos: de carrinhos e bonecas, passando por vídeo games e notebooks chegando a cestas básicas e empregos para os pais. Alguns mais atrevidos puxavam sua barba e ele odiava isto.

 Juvenal tinha sido garoto rico com várias idas á Disney; assim, aquele universo de periferia lhe parecia estranho e incômodo. Ouvir pedidos de pacotes de arroz ou que livrasse o pai da cadeia o colocava em contato com a miséria só conhecida em adulto depois que seu pai faliu e a bonança acabou. Isto congelou seu coração; não achava justo! Contudo, Seu biótipo de homem de meia idade branco, cabelo e barba grisalhos, olhos azuis e cintura fora de forma, o levou a buscar no papel do bom velhinho um bom reforço no orçamento de fim de ano. Assim, começava a deixar crescer a barba alva em setembro, e a aparava em janeiro. No fundo, não gostava daquilo; era pelo dinheiro. Portanto, fazer aquele papel de graça ainda que por obrigação judicial, não lhe parecia justo!

As filas eram intermináveis e a cada festa vinha o desejo que aquilo acabasse rápido. Ás vezes não sabia o que era pior: os pedidos impossíveis das crianças, ou as tiradas cretinas das suas mamães e papais!

E finalmente veio a última festa no último centro comunitário no bairro onde o vento fazia a curva. A última criança saiu e ele olhou no relógio: dezessete horas; á noite teria mais uma festa de adultos. – Pronto, acabou! – levantou da cadeira com a perna esquerda dormente de servir á banco á tanta criança. Deu uma alongada e tirou o gorro, limpando a testa escorrida de suor com as costas da mão. Já ia saindo quando escutou uma voz: - Ele ainda tá aí pai?

- Sim, filho, ele ainda está aqui! – era um homem magro, trajando uniforme de trabalho e trazendo seu filho pela mão.

Ao se aproximarem, Juvenal, cansado e ansioso para ir embora, abanou a cabeça ao falar: - Sinto muito, mas... - o homem lhe lançou um olhar de súplica que parecia dizer: “por tudo de mais sagrado, atende a gente?”. Então se apiedou e concluiu: -... Oh, sim, sim! – colocou o gorro e se sentou: - Ho, ho, ho! Venha aqui no Papai Noel, garoto! – abrindo os braços.

O homem conduziu o filho que buscou o braço de Juvenal e o segurou. Ele o pegou o pôs sobre a perna: - Upa! Você é um meninão! Como se chama?

- Fábio!

- Oh, Fabinho! Quantos anos você tem?

- Tenho sete! Faço oito anos em março!

- Você estuda, está em que ano?

- Segundo ano! Faço contas e já sei ler em braile!

- Braile? – olhou o pai do menino fazendo um gesto indicativo que Fábio era cego. – Ah,... Sim, que coisa boa! – respondeu notando que os olhos castanhos do garoto não estavam direcionados a ele. Era assustador, mas ele se segurou: – Hum,... Você tem cara de levado! Tem obedecido ao seu papai e sua mamãe?

- Minha mãe morreu; mas eu obedeço, não é pai?

- Sim; meu filho é um bom garoto e estudioso. O senhor precisa ver as notas dele!

- Mas que beleza! – Juvenal respondia em meio á varias emoções: – E... O que você quer ganhar de presente de Natal Fabinho?

- Uma bicicleta!

- Bicicleta?... Mas,... Você sabe andar de bicicleta?

- Não! – riu. – E nem dá, né Papai Noel? Eu caio, não vou poder andar!

- Ora, então porque você quer uma bicicleta? Tem muito brinquedo que você pode brincar.

- Ah, mas eu posso montar nela parada mesmo. – riu: - Meu pai disse que põe o ventilador na minha frente, aí fica parecendo que estou andando! - Juvenal achou aquela lógica ingênua e tocante. - Só de eu saber que ela está ali, já tá bom!

- Sim Fabinho, de fato! – mas se perguntava: “será que o pai desse garoto pode comprar?”.

Então o pai falou: - Fábio; eu acho que o Papai Noel deve estar cansado! Vamos embora?

- Só mais uma coisa! – virou-se á Juvenal: - Posso pedir um negócio?

- Claro meu filho! O que é? – riu: - Mas só pode pedir um presente!

- Não é presente não! Eu posso pegar sua barba?

- Sim, pode! – delicadamente ele buscou as mãos do garoto, e levou-as a sua barba. Fábio a tocou como quem tocasse algo sagrado: - Pai! É macia que nem algodão!... É de verdade!

Era um toque suave e carinhoso. As mãozinhas foram subindo e começaram a lhe contornar as linhas do seu rosto: boca, nariz, olhos, sobrancelhas e testa onde pendia uma franja por baixo do gorro.

Juvenal sentia-se tomado de uma emoção muito forte, como se tudo aquilo estivesse envolto numa aura de magia e ternura. Logo ele, que nunca deu importância ao papel que desempenhava além do pagamento. Agora ele recebia de graça um carinho que poucas vezes tivera, e menos ainda oferecera.

- Agora chega Fábio. – falou seu pai: - O Papai Noel precisa descansar, e nós também!

- Sim pai! – ele sorriu: - Posso te dar um beijo Papai Noel?

- Sim!... Venha aqui! – e lhe deu a face recebendo o beijinho.

- Venha filho! – o pai buscou-o pela mão, e Juvenal pensou: “Já vão?... Fiquem mais!”.

- Tchau Papai Noel!

- Tchau, meu filho!

O pai de Fábio olhou-o com uma gratidão infinitamente superior a aquilo que foi dado em troca. Ainda ouviu o menino dizer antes de saírem: - É de verdade pai! É macia que nem algodão!

Juvenal ficou sentado na cadeira; a perna nem doía mais. A dor agora era outra; da solidão, do abandono e do arrependimento. Então ouviu a voz de uma mulher: - O senhor está bem?

Ele a olhou: - Ah,... Sim estou. Quem é esse homem, pai do garoto cego?

- O nome dele é Marcos. Coitado,... Trabalha muito e ainda cuida do filho cego, sozinho!

- O que o Fabinho tem na vista?

- Não sei direito, mas parece que não nasceu cego; Foi uma doença. – suspirou: - Bem. O senhor vai embora com esta roupa?

Deu de ombros: - Não sei!... Acho que não.

 

Na noite de Natal a comemoração era modesta na casa de Marcos e seu filho.

- A dona da padaria nos deu um bolo de laranja; tem guaraná e castanhas.

- É bom, pai. – falava Fábio mexendo no carrinho que ganhou na festa da escola.

- Que foi filho? Você está calado.

- Ah... É que, aquele dia que a gente foi no Papai Noel, eu acreditei que ele existia. Mas sei que é de mentira, né?

Marcos coçou a cabeça em busca de uma resposta: - Olhe Fábio; Não é que não existe de verdade; existe como vontade,... Sabe; vontade de acreditar!

- Como assim pai?

- É a vontade de acreditar que as coisas boas, existem!

- Então se eu acreditar com força, Papai Noel existe?

- Em algum lugar, sim, meu filho.

- Então eu vou acreditar com muita força! – e fechou seus olhinhos cegos.

Marcos segurava a vontade de chorar quando alguém bateu á porta: - Ho, ho, ho! Tem gente em casa?

Fábio abriu os olhos e disse: - É o Papai Noel! Ele veio! Abre a porta pai!

Um tanto perdido, ele correu para abrir a porta: - Pensaram que eu não vinha?

- Papai Noel! – exultou Fábio se levantando: - Onde o senhor está?

- Aqui! Venha! – ele foi ao seu encontro guiado por um guizo que o bom velhinho balançava, e o abraçou forte: - Oh, Fabinho, que abraço gostoso!

- Eu fiquei com medo do senhor não existir!

- Bem,... Eu existo, tanto que vim aqui, e trouxe o presente que você pediu!

- A bicicleta?

- Sim! Está aí na porta!

Confuso, Marcos se aproximou e sussurrou: - O senhor é o Papai Noel da festa, não é?

- Sim, e de muitas outras festas! Mas venham ver!

Na entrada da casa de vila onde viviam, havia uma bicicleta de dois lugares, com selim traseiro especial dotado de cintos. O Papai Noel conduziu Fábio ao presente, que o tocou. – É de verdade!... Minha bicicleta!

- Sim! – pegou-o no colo o colocou no selim. Prendeu o cinto e ajudou-o a colocar capacete e protetores se joelhos e cotovelos. O garoto segurou firme o guidão e alcançou os pedais. – Que irado! Mas eu vou poder andar?

- É evidente! Seu pai irá ao lugar da frente guiando, porque você não tem carteira de motorista! – e riu.

O pai se aproximou: ainda estava incrédulo: - Não sei o que dizer,... E nem como agradecer.

- Eu é que tenho muito a agradecer á vocês dois! Agora coloque o capacete, monte na bike e vá levar esse menino maravilhoso para seu primeiro passeio!... Ah, mais uma coisa: - tirou um cartão do bolso: - Ligue para esse médico; é um oftalmologista muito bom! É só dizer que é o amigo do Papai Noel que ele consultará Fabinho de graça e depois fará o que for preciso!

- Meu Deus,... Papai Noel então existe!

- Bah! Agora vá, Fabinho está esperando!

Marcos montou na bicicleta e falou: - Segure-se filho! – e começou a pedalar a bicicleta, primeiro devagar para acostumar, depois seguiu pela vila sob o aplauso de vizinhos e com a criançada correndo atrás. Fábio vibrava de alegria.

Emocionado, Juvenal olhava-os. Poucas vezes se sentiu tão leve e gratificado. Então foi cercado por crianças que o abraçaram e tocaram sua barba.

Finalmente ele encontrou algo que julgava perdido: a sua fé!

 

Fim.