quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O PORÃO - SEGUNDA PARTE - 2

UM CONTO DE RAMÓN BRANDÃO E MARCELO ESPINOLA.

João nem precisou pedir ajuda, pois ouviu a porta sendo aberta: era Clóris com Penny no colo, que lhe perguntou: - O que está fazendo aí?                                           

Ele saiu imediatamente e respondeu sem graça: - Erh,... A porta estava aberta, e eu entrei.   

 - Hum; e o que tem de interessante aí?                     

 - Nada de especial; Curiosidade. Aí a porta emperrou e não consegui abrir.   

 - Oh; abriu tão fácil!              

 - Bem, Pode ter sido falta de jeito! - João apagou a luz e fechou a porta; abrindo-a e fechando novamente constatando que não estava agarrando. Clóris suspirou e falou: - O senhor Avelino está mostrando o apartamento ao lado do seu a um homem que quer alugar. 

 - O 102? Uai, mas não ia alugar para um casal?                

 - Não sei. Agora me deixe ir. Vou levar esta mocinha ao pet shop para o banho! Adeusinho. - seguiu à portaria dizendo ao bichinho: - Não adianta fazer cara feia; cachorrinha porca não dá!      

João riu. Ainda deu uma olhadela no piano coberto com lona antes de subir.

Chegando ao seu andar, Avelino acabava de sair do apartamento acompanhado de um homem alto de cabelos grisalhos e óculos escuros: - Então vamos seguir ao escritório para as formalidades. O senhor poderá fazer o pagamento da caução comigo mesmo! - o homem assentiu com gesto de cabeça enquanto Avelino apontava à João: - Ah, este é o vizinho do apartamento 101: senhor João!               

O homem tirou os óculos e olhou para o seu novo vizinho, com uma genuína empatia, suspeitava que ele já estivesse sendo afetado pelo mistério que o trouxera de volta ao lugar onde vivera os melhores e mais assustadores anos de sua vida; e se apresentou:                 

- Me chamo Leonardo, mas meus amigos me chamam de Léo. É um prazer conhecê-lo. Vou incomodar vocês pouco; o meu trabalho me faz viajar bastante. Seremos bons vizinhos, tenho certeza.

 Despediu-se com um aperto de mão, percebendo que João estava trêmulo e pálido. Definitivamente o novo vizinho já estava sentindo o mesmo que ele á quarenta e poucos anos atrás. Então recolocou os óculos Rayban e seguiu pelo corredor com Avelino.

Naquela mesma tarde a caminhonete de uma loja de móveis que ficava ali perto entregou uma cama, uma pequena estante, um microondas e uma geladeira no apartamento 102.

 

Léo já havia comprado algumas roupas de cama. E era o que precisava, ajeitou mais ou menos suas roupas e olhou pra pequena marreta que estava no fundo da mala, riu sozinho ao imaginar qual seria a reação de alguém que o visse tirar aquilo do fundo da mala.

Tomou um banho e se deitou, mas o sono não chegava.

Léo nunca havia se esquecido do que viveu na antiga casa número194 da Rua Amâncio Penna. E que nos 20 anos que viveu ali nunca deixou de ouvir os barulhos que vinham do porão, e muito tempo depois quando soube que a casa fora demolida se encheu de coragem e foi até sua cidade natal para conferir. Isso tinha acontecido há cerca de dois anos, era um domingo de sol depois do almoço ele pegou o carro e foi até a antiga cidade que ficava a uma hora da sua.

Foi um choque não ver a antiga casa, a varanda com balaústres, o portão de ferro e a escada com os ladrilhos 1 9 0 7. Havia uma cerca de arame fechando a passagem, que ele pulou sem muita dificuldade, e começou a caminhar pelo terreno e se lembrar da posição em que tudo ficava antes. A garagem, o jardim, a escada e o porão, parou em uma posição que tinha certeza ser exatamente onde ficava a porta do porão, já era final da tarde e ele ficou parado ali por alguns instantes. De repente um barulho familiar de porta, batendo uma porta pesada. Seus pelos ficaram, arrepiados, ele instintivamente correu, em direção a cerca como à 40 anos atrás.

 

Para João aquele foi um dia cheio, levando esposa e filho aos seus compromissos entre idas e saídas do Fórum. A noite ainda teve uma ultima saída para comprar pão; coisa mais comezinha possível, e ao voltar deu de cara com a senhora Clóris sentada no sofá da sala conversando com Débora. Em nome da boa educação ele driblou o cansaço com um cumprimento cordial: - Boa noite senhora Clóris.

- Boa noite senhor Steinberg!

Era estranho alguém lhe chamar pelo sobrenome; isto ocorria apenas no Fórum onde era o doutor Steinberg.

Débora perguntou: - Encontrou a padaria aberta amor?

- Sim! – respondeu lhe entregando a sacola. A mulher seguiu á cozinha e João sentou-se numa poltrona diante do sofá. Clóris sorriu ao dizer: - Sua esposa é adorável! O senhor tem muita sorte.

Ele assentiu pensando: - Que saco visita a essa hora. – ela prosseguiu: - Sua esposa disse que está grávida! Parabéns; isto é uma alegria! Uma criança sempre trás renovação e esperança.

Débora voltou á sala: - Estou passando um café fresquinho! Dona Clóris; a senhora é ou foi casada, tem filhos?

- Oh não! – riu: - Namorei bastante, mas escolhi demais e acabei solteirona! Mas gosto assim. – olhou João: - Sua esposa disse que o senhor é judeu. – encarou-o: - Também sou judia.

- Débora exagera! – respondeu irritadiço: - Na verdade eu tenho antepassados judeus, mas sou cristão.

- Sim. O seu sobrenome é Steinberg; sabe o que significa senhor João?

- Quer dizer “montanha de pedras”. Certo?

- Exatamente! Stein: pedras. Berg: monte!

- Sim senhora; mas não é um nome hebraico; é alemão!

- Hum,... Judeus convertidos ao cristianismo adotavam nomes ligados ao trabalho ou á alguma característica do seu local de origem. – piscou o olho: - O Monte Sinai na Terra Prometida também é uma montanha de pedras!

Débora se surpreendeu: - Ah João, você nunca me disse isto! – ele corou as faces e ela continuou: - Fale mais sobre isto dona Clóris! Meu marido nunca fala.

A senhora olhou para o alto levantando o dedo: - Receio que não poderei. Estou ouvindo as patinhas de Penny sapateando; ela deve estar sentindo minha ausência! Coitadinha; é como uma criança, minha filhota! – levantou-se: - Boa noite senhor Steinberg! – ele sorriu forçado enquanto Débora a levou á porta e depois voltou comentando: - Que senhora bacana! Ela me disse que Débora era uma das sibilas de Jerusalém e eu nem sabia!

- Que ótimo! O que ela veio fazer aqui á esta hora?

- Ela veio perguntar se tínhamos jornal velho para Penny; aí ficamos conversando. Que interessante é a história dos judeus. Por que você nunca fala disso?

- Por que é passado,... E eu nem vivi na religião judaica para me considerar como um judeu! – levantou-se: - Vou tomar banho; estou pregado.

Ela o abraçou: - Desculpe amor; eu sei que este assunto não lhe agrada! Vá tomar um banho bem gostoso e venha lanchar. Quero falar dos exames; nosso bebê está ótimo, e terei uma gravidez muito tranquila!

Ele a beijou: - Isto sim me interessa, Hum,... Desculpe-me se fui grosso.

- Não tem que desculpar. Vá logo ao banho e volte bem cheirosinho!

- Não vou demorar! – e correu ao banheiro.

Mais tarde,...

“... o menino Johannes olhava os dedos de sua avó deslizando no teclado de um lindo piano; o móvel mais imponente da casa. Ela lhe pôs no colo e mostrou que cada tecla representava uma nota musical, como se fossem letras de uma frase! Então ele correu á sua mãe falando sobre as sete notas da música, mas não a encontrou na cozinha. Ao se virar, não tinha mais o piano e nem sua avó.”

João despertou com um aperto na garganta muito grande, e seguiu á suíte, fechando a porta.   Então abafou o choro com a toalha. Sempre que sonhava com a avó, chorava, embora mal a tenha conhecido. Acalmou-se e lavou o rosto. Então escutou um barulho vindo pela báscula, como batidas numa parede ecoando na garagem. Temeu ser algum invasor, um ladrão!  Então voltou à sala com o celular na mão, informando a Avelino. 

Os dois desceram à garagem que estava totalmente deserta, apenas com os automóveis no lugar e portas fechadas. - Tem certeza que o barulho veio daqui? - perguntou Avelino sonolento.                  

 - Sim; eu ouvi pela janela da suíte. Pareciam pancadas na parede!             

 - Não tem nada aqui! Pode ter vindo da rua. - bocejou: - Vamos voltar pra cama, senhor João.        

 E seguiram de volta aos seus apartamentos.   

 João voltou para a cama, cuidando para não acordar Débora. Estava tão exausto que logo adormeceu.

No quarto ao lado, Caíque abriu os olhinhos, e falou baixo: - Eu falei que não era para sair!

Enquanto isto no apartamento ao lado...

“No meio da madrugada a terra começou a tremer, o porão se abriu e sugou todo o prédio para suas entranhas levando junto seus moradores, carros e pertences. Quando acabou de consumir toda a edificação de concreto e aço, a terra se fechou recompondo o terreno. Em cima dela começou a surgir uma estrutura de tijolos maciços com paredes grossas e telhado colonial, depois portas e janelas de madeira. Em seguida os balaústres, a varanda, por fim o jardim na lateral da casa e os ladrilhos da entrada, 1 9 0 7.”

Léo acordou suando e por um momento acreditou estar em seu antigo quarto de novo, chegando a ouvir Faísca, sua mascote na infância, arranhando a porta. Demorou um pouco a entender que tudo tinha sido um pesadelo. Sentiu muita vontade de ir embora dali logo que o dia clareasse, e não voltar mais. Porém, tinha sido assombrado por aquele lugar a sua vida inteira e sabia que precisava descobrir de uma vez por todas o que estava naquele baú. Que estranhamente tinha certeza que ainda estava lá no fundo do "sub-porão".

 

A luz matinal matizava o quarto de dourado, quando Débora acordou, e procurou João ao lado; e ele não estava. Havia cheiro de café no ar, e ela seguiu à cozinha. Antes conferiu o quarto de Caíque, ainda adormecido.                             

João estava á mesa posta para o café matinal; Débora entrou e disse: - Bom dia amor! - beijaram-se: - Hum, que delícia café prontinho e torradas!             

 - Acordei cedo e resolvi adiantar a rotina. Hoje é sábado, estou pensando em fazermos um passeio, talvez á Tiradentes. A gente pode andar na Maria Fumaça até São João Del Rei. O que acha?

  - Mas ainda tem tanta coisa para arrumar!               

 - Ah Débora, como dizem por aí: foda-se! Merecemos um descanso!        

 Ela riu e disse: - Tem razão: foda-se! - os dois riram e João falou: - Ótimo. Já tomei café, vou a garagem dar uma conferida no carro. Levar no posto de uma vez. - levantou-se e a beijou antes de sair.

 Na garagem, viu Avelino dentro da pick-up, que o cumprimentou: - Bom dia!                                          - Bom dia. - viu sacos com entulhos na caçamba do veículo. - Desculpe a perturbação ontem à noite!                           

 - Sem problemas. É bom ficarmos atentos mesmo! Eu vou na casa de parentes na roça aí perto e só volto amanhã. Ok?                            

 João assentiu e Avelino saiu pela porta da garagem. Depois seguiu ao seu carro e notou farelos raspando na sola das botas. O chão estava cheio de pequenos trincados no cimento. Ele abaixou para ver; era superficial, mas estranho num prédio novo.

 Débora acabou de lavar a louça do café e seguiu ao quarto de Caíque, que dormia. Ela sorriu; daí a pouco o despertaria. Então viu um frasco de cola branca caído ao chão com respingos grossos da cola pelo chão perto do baú amarelo. Ela chegou perto e sua tampa tinha sido colada. Havia pegadas de cola na direção da cama de Caíque. Ela levantou a manta e viu cola nos seus pezinhos.

Depois, enquanto arrumava Caíque, ela perguntou: - Filhinho; por que você colou a tampa da caixa de brinquedos?                             

 - Para ele não sair!                      

- Quem não vai sair?                           

 - O menino! Ele não pode sair.                                            

 - Porque o "Ben 10" não pode sair? Você gosta tanto dele!                                         

 - Não é o Ben; é outro menino. Ele chora muito!                                    

 - Porque ele chora?                       

Caíque deu de ombros: - Não sei! Eu colei a tampa pra não ouvir.                               

 Então João ligou dizendo que podiam descer; estava tudo pronto para o passeio.                                        

 Quando a Eco Sport saiu levando a família, Clóris espiava pela janela com o celular na mão. Fez uma ligação e disse: - Já saíram!

 

Léo nem pensou duas vezes, estava esperando essa oportunidade desde o dia em que se mudara. Desligou o telefone, e enquanto tomava uma xícara do café que acabara de fazer, procurou no fundo da bolsa a marretinha que usaria pra abrir o cadeado quando encontrasse o que estava procurando. O baú que o assombrava á tantos anos.

Desceu a escada para a garagem vazia, onde apenas seu carro estava estacionado; e começou a dar pequenas batidas contra o cimento liso pintado de cinza. Tinha certeza que em algum momento ouviria o barulho tão característico de um grande espaço aberto abaixo do piso, só que isso não aconteceu, chegou a hora do almoço e ele foi atraído por um cheiro muito familiar. "Clóris" na verdade Dona Cida o esperava com o almoço pronto como nos velhos anos 70 e 80!

Nem precisou bater na porta quando chegou ao andar do apartamento de "Clóris" já avistou a porta aberta e foi guiado pelo delicioso aroma que não sentia a tantos anos.

A velha babá o recebeu com um abraço de genuína afeição, sabia o quanto Léo fora assombrado por aquele mistério durante toda a sua vida, e queria ajudá-lo a desvendar o mistério. Por isso o ajudou desde o começo com o plano.

Léo comeu com gosto, como não fazia desde os tempos de criança, ao terminar deu outro abraço em sua velha babá, e desceu para continuar sua busca.

A tarde caía rápido e ele não queria continuar até a noite, foi testando toda a extensão do piso em direção ao fundo do terreno. De repente uma batida oca, Léo sentiu o coração acelerando e o sangue correndo forte nas veias, deu mais uma batida e sentiu aquela parte do piso ceder um pouco. Bateu então com força, e sentiu a marretinha quebrando uma parte do piso com um barulho seco. Abriu-se um buraco de aproximadamente 15 centímetros de diâmetro. Mas a tarde estava se tornando noite e Léo não ousaria mexer em mais nada depois do crepúsculo. Guardou então a marretinha na mesma bolsa que a trouxera, cobriu o buraco cuidadosamente com um com uma placa de ardósia da escada que encontrara.

 Estava andando em direção á escada para voltar ao seu apartamento quando ouviu de novo; só que desta vez o barulho foi muito alto como se uma pesada porta de metal batesse contra o batente também de metal. Ele tomou um susto tão grande que o coração quase parou. Nem olhou para trás. Voltou ao seu apartamento e resolveu esperar até o dia seguinte para recomeçar sua busca

O passeio foi longo e muito divertido para a família Steinberg. Era noite quando entravam de carro na garagem do edifício; tudo certo até que o carro foi detido num forte solavanco e inclinou. Caíque acordou chorando com o susto sendo acudido por Débora que gritou. Saíram rapidamente do carro para ver o que tinha acontecido: a roda dianteira esquerda tinha afundado num buraco que se abriu no chão da garagem. João abaixou para ver; e parecia ter afundado parte do piso numa espécie de galeria subterrânea.

Débora subiu ao apartamento levando o filho ainda assustado ao colo, que apontava ao buraco, enquanto que João tentava ligar á Avelino, uma vez que a pick-up não estava na garagem.                                    

 Em instantes Clóris veio: - Escutei um barulhão, o que foi?                       

 João apontou ao chão: - Foi isso aí! Quando cheguei de carro o chão afundou!                                     Ela ficou tensa, pois era exatamente o lugar onde Léo tinha feito o pequeno rombo. João falava com Avelino cobrando explicações.                

 Clóris afirmou ter ouvido Penny sozinha no apartamento e retornou enquanto João falava ao celular: - O senhor não está entendendo, vou falar de novo: eu estava chegando e abriu um buraco que engoliu a roda do carro; deu pra entender agora? Venha logo então, vou esperar antes de chamar bombeiros ou a defesa civil! - e desligou nervoso olhando seu carro adernado no buraco. Ele abaixou para ver melhor o estrago, temendo quebra na manga do eixo e avarias na suspensão do carro. Com sua cabeça dentro do buraco, constatou que se abriu um vão suficientemente grande para um homem passar. João buscou uma lanterna no carro e iluminou o buraco, que realmente parecia uma espécie de galeria. Mas não havia fedor de esgoto e nem estava molhado; apenas exalava aquele cheiro de mofo característico de lugares fechados. Não era tão alto, e mesmo não tendo alta estatura, João poderia descer; e foi o que fez. Parecia um túnel ferroviário em miniatura com paredes de tijolos em arco abobadado. Ele apontou a lanterna adiante, e havia uma porta.

 

Continua...

 

2 comentários: