EVANGELHO
Ir à Praça da Estação levar a palavra de Deus aos transeuntes era como uma missão para o pastor Marcio.
Evangélico por genuína fé, quando encontrava brecha no seu ofício de marceneiro seguia á praça levando Bíblia e megafone para suas pregações. E era eloquente, além de ter uma bela voz de tenor ao entoar os hinos em louvor ao Senhor.
Recebia pouco em troca. Alguns olhares desatentos; outros com ar de deboche; mais recentemente, insultos; uns em busca do sagrado ou apenas para espantar o tédio. Porém nada disso o demovia da missão que ele mesmo se impôs, houvesse chuva ou sol.
Suélen era uma vendedora de doces que percorria as ruas empurrando um carrinho cheio de cocadas produzidas em família. Vida dura apregoando sua mercadoria com uma potência vocal de fazer inveja. No carrinho havia um pequeno para choques com os dizeres: “Vendendo doces eu amargo a vida”. Isso veio de herança do antigo dono do carrinho.
Era comum que os horários de Suélen e Marcio coincidissem, mas ela sempre passava reto, negando-lhe atenção não por pouco caso, mas por faltar atenção para lhe dar.
Ele sempre á via passar. Algumas vezes comprou-lhe uma cocada para tapear a fome e o encontro terminava com um: - Na paz do Senhor irmã! – e ela respondia: - De nada!
Foram alguns anos neste encontro desencontrado, até o dia em que o chinelo de Suélen arrebentou a tira, fazendo-a parar perto do local onde Marcio fazia sua pregação. Ela se sentou maldizendo a sorte, e ficou olhando ao léu como que buscasse a salvação.
Marcio estava empolgado no seu êxtase particular: -... Pois o Evangelho, onde vamos encontrar a palavra do Senhor, nos traz toda a sabedoria e a fé dos apóstolos, que tiveram a graça de conhecer Jesus, e assim puderam compartilhar sua glória! É somente buscando no Evangelho que encontraremos aquilo que é bom e justo! – nisto, Suélen parou de massagear seu pé calejado e prestou atenção ao que aquele homem de cabelo cheio de gel penteado para trás e terno debaixo do sol quente dizia: - Vamos encontrar em Marcos, 12:30,31.: “Visto que amamos Jeová, nosso Deus, de todo o nosso coração e de nossa alma, mente e força, e ao próximo como a nós mesmos, não estamos nacional, racial ou socialmente divididos!” E seguindo ainda as palavras do Evangelho: “Somos amplamente reconhecidos por causa do amor que se manifesta entre irmãos e irmãs em todas as nações!” Esta é a palavra do senhor que nos chega através do Evangelho!
Ele ia falar mais, porém Suélen o interrompeu; - Hei. Moço!
- O quê? – olhou em volta.
- Aqui ó! Eu! – ela levantou acenando.
- Oh sim, minha filha!
- Posso fazer uma pergunta?
Ele ficou feliz, era a primeira vez que alguém o interpelava. – Lógico minha filha! Estou aqui para conduzi-os á senda da verdade!
- Héim?... Me conduzir á venda? Não, eu quero é fazer uma pergunta!
- Hum,... Sim. Pode perguntar á vontade, minha filha!
- Por que o senhor fala o tempo todo no Evangelho?
- Ora,... Falo porque é no Evangelho que vamos encontrar a verdadeira palavra de Deus!
- Cumé que é?... No Evangelho?
- Sim! Evangelho que dizer “o bom caminho”!
Ela riu. – Qual o quê? O Evangelho é lá bom caminho? – riu de novo. - Desculpa, mas o senhor só pode estar doido! O Evangelho nunca foi bom caminho pra ninguém!
- Que absurdo! – mostrou a Bíblia: - Perdoai-a Senhor; ela não sabe o que está dizendo!
- Sei sim. O senhor é que não sabe a ponta de aterro que aquele traste é!
Então Marcio a encarou: - Traste? Como assim?
- Uai. O senhor taí dizendo que o Evangelho é bom caminho. Mas não foi caminho que presta pra nenhuma menina lá do Arado! Ele passou o rodo e depois caiu no trecho!
- Espere!... O Evangelho que a senhora fala, é uma pessoa?
- É uai? O senhor pensou que fosse o quê?
Marcio coçou as têmporas: - Quer dizer que a senhora conhece um homem chamado Evangelho?
- Ó se conheço! Evangelho dos Santos. Aquela ponta de aterro é meu primo, mas ó; num vale nada!
- Por que ele tem esse nome?
- Foi tia Arminda que ouviu no rádio e achou o nome bonito! – deu de ombros: - Não é um nome feio não.
- Minha filha,... Sua tia era Evangélica?
- Crente? Não, ela era da umbanda, dessa de bater tambor; mas era amigada com um crente! Mas ele largou dela, e depois ela morreu. Tão nova tadinha! Aí o Evangelho foi morar com a avó. Hum! Deu no que deu, porque sujeito criado com avó nunca dá coisa que presta.
Marcio ficava até tonto com aquilo, mas se mantinha altivo. – Minha filha; seu primo carrega o nome da palavra de Deus, que está na Bíblia sagrada; e isto é uma benção!
- Eu não sabia que o nome dele tava na Bíblia. Mas ó: ele tá longe de ser benção! – e riu.
- Onde ele está agora?
- Tá preso!
- Na cadeia?
- É! – riu: - O senhor pensou que fosse onde?
- O que ele fez para ir á prisão?
- Não pagou a pensão pra Britney, filha dele com a Gizlaine!... Uma menininha tão fofa, o senhor precisa ver.
- O... Seu primo Evangelho foi preso só por isto?
- Não. Ele já teve preso por tráfico, tava na condicional; aí prenderam ele de novo por causa da pensão da Bri.
Marcio nem sabia o que dizer, e ela prosseguiu: - Eu fiquei com pena da Giz e da Bri, e levei elas para morar comigo. – deu de ombros: - Sou largada do marido mesmo, aí elas me fazem companhia. – deu de ombros de novo: - O pessoal do bairro fala que a Giz não presta, até o Evangelho chama ela de piranha e diz que a filha não é dele! A Giz não quis fazer DNA, mas a Bri é a cara o pai, nem tem como fugir!
- A senhora então abriga mãe e filha mesmo desconfiando que a menina pudesse não ser filha do seu primo?
- Sim! No fundo a Giz é boa moça. – apontou o carrinho: - Ela que faz as cocadas; tem uma mão boa que só vendo! To querendo que ela aprenda a fazer doce pra fora, e ganhar um dinheirinho. – riu mostrando falhas nos dentes: - O Evangelho, depois eu dobro ele pra curtir a filhota.
Marcio ficou um tempo sem ação. Não que aquela fosse uma realidade distante de sua vida, pois conhecia inúmeras histórias parecidas; mas aquela mulher lhe passou algo tão forte. Então ela falou:
- Posso fazer outra pergunta?
- Sim, claro minha filha!
- É que,... Eu passo aqui todo dia, e vejo o senhor aí, falando a palavra da Bíblia. Acho bonito e não sabia que chamava Evangelho, que nem meu primo. Só que vejo o senhor sempre falando sozinho, sem ninguém parar para ouvir.
Ele sorriu: - Sim; faço isto sempre que posso.
- Por que teima, se ninguém dá ideia?
Ele pensou um pouco e respondeu: - Minha filha. Deus disse que há um tempo para semear, e um para colher. E também que devemos sempre lançar sementes; porém, umas cairão na água, outras nas pedras e na areia. Estas não vingarão. Mas algumas cairão na terra; germinarão e poderão dar frutos, e mais sementes. – suspirou: - Eu tenho fé inabalável de que algumas sementes que lanço nesta terra seca de respeito e fé poderão germinar! – e sorriu.
- Ah!... É que nem eu faço com a Giz: todo mundo fala que ela não vale nada; mas eu acho que lá dentro dela tem uma pessoa muito boa que só precisa de quem acredita nela. – riu. – Vai ver que é a semente que to plantando né?
Marcio olhou-a: - “Esta entende melhor o Evangelho do que muitas obreiras que conheço.” - pensou.
O celular de Suélen tocou, e ela falou em altos brados: - Ah, então tu saiu do xilindró seu traste? Vai lá ver tua filha!... É tua sim e você sabe; mas se relá a mão na Giz, vai se ver comigo héim?... Tá bem. Te cuida! – desligou. - Tenho que ir embora, mas antes eu vou ali na loja comprar um chinelo! – abriu o carrinho e pegou uma cocada; - Pega aí: é baiana do jeito que o senhor gosta! – ele ia pegar a carteira e ela falou: - Não! Essa é presente. – piscou o olho: - Olha o carrinho pra mim em quanto vou comprar o chinelo?
- Sim senhora.
Ela saiu e ele ficou ali, em silêncio, saboreando a cocada da Giz, e torcendo para que de fato ela fosse terra para a boas sementes daquela guerreira chamada Suélen.
FIM
Muito bom! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado
ExcluirGrande lição! Na simplicidade dela, praticava aquilo que o Pastor tanto pregava, a caridade e fé no outro. Parabéns 👏👏👏
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