quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O PORÃO - TERCEIRA PARTE.

 

O PORÃO – TERCEIRA PARTE.

UM CONTO DE RAMÓN BRANDÃO E MARCELO ESPINOLA

Clóris batia insistente na porta de Léo. - Abra depressa!       

           

 Ele abriu a porta ainda esfregando os olhos, enquanto ela gritava: - Não ouviu o barulho? Aquele buraquinho que você fez no chão da garagem cedeu e o carro do vizinho afundou. E agora? - ele a puxou para dentro e fechou a porta.  

      

Débora estava no seu apartamento perto da porta e ouviu Clóris chamando o vizinho. E pensou: - Foi esse cara que fez o buraco na garagem; que gente doida é esta? Hum; espera só o João saber disto! – depois seguiu á cozinha ainda assustada com o incidente, quando Caíque gritou no quarto. A mãe foi acudir e encontrou o garoto sentado no chão agarrado ao baú amarelo. - Mamãe!... Ele quer sair!

- Quem quer sair, filho?

- O menino!... Ele quer sair!

Nervosa ela levou as mãos aos cabelos: - Caíque, por favor,... Estou com dor de cabeça e cansada!  Pare com isto.

- Mas mãe,...

Irritada ela lhe tomou o baú e disse: - Sabe por que ele quer sair? Porque não está gostando de ficar preso e quer se juntar dos seus amigos! – abriu a tampa e despejou o boneco perto dos outros brinquedos.

- Não, mãe!... Ele não pode! – correu apanhando-o e tornou á colocá-lo no baú, tampando-o novamente.

Débora abriu os braços e falou: - Ah Caíque, desisto; faça do jeito que quiser!... Vou á cozinha tomar um comprimido. – e saiu.

O menino abriu um pouco a tampa do baú amarelo e perguntou: - Você ainda tá aí?

 

Na galeria, atrás da porta arrebentada quando o carro afundou, havia um cômodo pequeno com uma espécie de tampa de ferro muito enferrujada no chão cobrindo um alçapão. João se aproximou; parecia a boca de um poço ou cisterna. Tentou abri-la, mas estava presa. Sem ter o que fazer voltou ao lugar onde seu carro afundou temendo que seu peso pusesse tudo abaixo, pois as paredes estavam cheias de trincas. Já ia procurando maneiras de subir quando olhou ao lado oposto da galeria; tinha uma pequena escada para onde apontou sua lanterna e seguiu. A escadinha era estreita passando por pequenos cômodos escuros e aparentemente vazios, quase um labirinto. – Que lugar é este?... Ah senhor Avelino: há muita coisa a ser explicada aqui! – a escadinha fazia uma curva chegando á uma parede de madeira ainda cheirando á nova. João a forçou, fazendo-a ceder com pontapés. Dava exatamente no quartinho de vassouras. - Ora,... Que diabo de prédio um em cima do outro o Avelino fez? - seguiu á porta, que abriu fácil. Ao sair viu Clóris e Léo na garagem abaixados olhando o buraco. Aproximou-se devagar e escutou Clóris dizer: - Ele o encontrou antes de nós; e agora?                  

 Eles não perceberam a presença de João que perguntou: - Eu encontrei o quê antes de vocês?

Ainda agachados os dois se entreolharam por alguns segundos, ela estava claramente apavorada. Mas Léo não, e se levantou calmamente; olhou nos olhos de João e disse com firmeza: - Preciso te contar um segredo que guardo ha 40 anos: tem alguma coisa embaixo deste prédio além de aço e concreto, e eu acredito que ela não quer mais ficar enterrada!

- O quê; coisa enterrada? Que doideira é esta; o que tem é um buraco que quase tragou meu carro! – respondeu irritado.

Clóris tentou contemporizar: - Ora, senhor João; também estamos preocupados, pois também moramos aqui e, encontrar um buraco onde não devia haver, realmente é algo preocupante!                               

 - Fico feliz em ver que a senhora também está preocupada!  Mas vamos deixar de sandices e ir direto ao ponto: eu entro na garagem e encontro um buraco no chão, aberto por vocês! Minha esposa grávida e meu filho estavam comigo, e me apavora pensar que isto poderia ter levado á um acidente muito grave para mim e minha família! Portanto, não estou a fim de embromação, e quero respostas claras. - Clóris e Léo se olharam e ele prosseguiu: - Avelino está vindo aí; foi ele construiu essa porcaria em cima de outra porcaria como já pude constatar; então, antes que eu chame a polícia, os bombeiros e o iscambau, respondam-me: que merda é essa?

- Olha João, eu morei na casa que aqui existia dos 8 anos, até me casar aos 28. Nunca pensei que um dia fosse voltar, mas quando eu completei 49 anos exatamente na noite do meu aniversário eu tive pela primeira vez o pesadelo que me persegue a mais de três anos. Nele eu chego aqui e não há a casa onde morei nem este prédio, apenas mato e árvores nos lugares onde estavam em minha infância e a porta do alçapão, mas nem no sonho eu consigo abri-la; ela sempre se fecha fazendo o barulho seco e alto que ouvi junto com meu cachorro quando era garoto e ousei entrar no porão. – abanou a cabeça: - Este pesadelo me tirou tudo, acabou com meu casamento, me tirou um ótimo emprego e quase me enlouqueceu. Foi então que decidi que eu precisava descobrir o que há dentro do baú, então eu encontrei o telefone da Clóris ou Dona Cida, e lhe pedi que alugasse um apartamento no prédio e descobrisse o que pudesse até eu poder vir também. Aproveitei que vocês viajaram para começar a procurar o que de fato vim para descobrir.

Infelizmente seu carro caiu bem no buraco que abri na garagem e que aparentemente não leva a lugar nenhum!  A propósito, vocês nunca ouviram nada de estranho aqui?

- Baú? – João riu: - Mas o que é isto, tesouro de pirata? Aluguei um apartamento e vim parar num hospício? - Léo ia argumentar, mas João o cortou: - Espere porque não acabei!  Você diz que está procurando uma coisa que o atormentou numa casa que viveu na infância, no lugar que agora está este prédio. Para isso, cava um buraco no chão da garagem em busca de algo que nem está mais aqui? Que tipo de doido é você?... Aliás, os dois, porque a senhora, já nem sei mais como se chama!

 Ela respondeu: - Meu nome é Clóris Marie Sidashmaniam: como era muito complicado, eu mesma me apelidei Cida! E sou judia e nasci na Armênia!

- Que ótimo, muito prazer, senhora Sidashmaniam! Que beleza: já não chega os loucos que temos no Brasil, e ainda importamos mais!

- Acalme-se, o senhor está sendo grosseiro!

-Desculpe-me senhora! - olhou Léo. - Olhe senhor: não sei o que veio procurar aqui, e não estou nem um pouco interessado! Não ando atrás de passado.

Léo esperou até que João parasse de esbravejar: - Realmente você não está entendendo. O que quer que esteja embaixo deste prédio está lá á muitos anos; a casa que estava aqui antes do prédio foi construída em 1907 e tenho certeza que isso já estava lá antes! Acredito que o antigo proprietário tenha feito paredes de pedras e o pesado portão de ferro para guardar algo muito estranho!

- Guardar o quê?- Perguntou João.

- Eu também não tenho certeza. - continuou Léo. - Mas sei que precisamos descobrir. Essa coisa seja lá o que for se comunica comigo, e eu tenho a impressão que está começando a se comunicar com seu filho também!

- Hei, alto lá! - aproximou. - O que meu filho tem a ver com isto? - colocou o dedo em riste: - Metam-se com minha família para verem!

 Clóris interveio; - Acalme-se; Léo não soube se expressar bem! Ele quis dizer que é uma coisa que afeta todos os moradores, e crianças são mais sensíveis!

- Chega disso; não sei o que vocês são, mas isso aqui agora é caso de polícia! - se afastou buscando seu celular no momento que ele tocou; era Débora assustada: - João!... Me leve para o hospital, estou com uma cólica muito forte!                    

- Como é?... Cólica?               

 - Começou de repente, venha depressa!                        

- Estou indo!  - desligou apavorado.

- O que houve? - perguntou Clóris.                    

 - Débora está passando mal com cólica! - apontou o dedo antes de sair e ameaçou: - Só pode ter sido por causa do susto! Se algo acontecer ao bebê ou a minha mulher; por Deus, vocês dois vão me pagar! - e correu á escada.                

 Clóris colocou as mãos no rosto e disse: - Meu Deus; está acontecendo de novo!

 

 Débora o aguardava na sala, pálida e com as mãos na barriga. Estava chorando. João a acudiu: - Nós já vamos!  Cadê Caíque?

- Está no quarto,... Ai! Rápido, estou com medo João!

- Calma querida, tudo vai dar certo! Caíque! – chamou-o duas vezes, então correu ao quarto do menino, que estava agarrado ao baú amarelo. O pai puxou-o pela mão. - Mamãe está passando mal, e vamos levá-la ao hospital! - o menino continuava agarrado ao baú. - Pai,... Ele saiu...            

 - Deixe isso aí e vamos! - pegou o filho no colo, fazendo-o largar o baú.

Eles desceram as escadas com muito custo. Por sorte passava um táxi e João o chamou. O motorista ajudava Débora enquanto ele olhava para os lados: - Caíque? – o garoto estava á porta de acesso á garagem andando na direção de Clóris e Léo. – Que droga Caíque... Vamos!

- Pai,... O menino...

- Pare com essa bobagem! – falou e o agarrou no colo, entrando no táxi que saiu á toda.

Léo e Clóris olhavam-nos.  Ele tinha um semblante assustado. Clóris apontou ao buraco dizendo: - Não há tempo a perder! Desça lá e abra a porta de ferro; o baú deve estar naquele lugar secreto.                     

 Rapidamente ele se esgueirou pelo rombo perto do carro. Mas antes ela falou: - Espere! - apanhou algo: - Leve isto: é um amuleto!

 

No hospital, Débora foi levada à emergência, deixando João apavorado. Ele sentou ao lado de Caíque, que perguntou: - Mamãe vai morrer?                                 

 - Não!... Mamãe só ficou dodói um pouquinho, mas é melhor ver o que é no hospital, né filho? - o menino assentiu, e João tentava controlar o pânico para não assustá-lo.

Então se lembrou de uma fala de Léo: "a casa foi construída em 1907". Ele se referia à casa que houvera naquele lugar. Isto lhe trouxe uma memória estranha: quando criança, vivendo no Rio de Janeiro com sua mãe e avó, certo dia ele encontrou dentro de um livro, uma foto antiga de um casal e uma garota diante o portão de uma casa. Parecia sua avó jovem, como viu noutras fotos. O homem estava de casaco, chapéu e usava bigode, e a garota de cabelos caídos nos ombros também usava um casaco Na calçada, próximo á soleira, havia um número no chão: 1907. Na época ele não compreendeu o que poderia significar. Então mostrou a fotografia á sua avó, perguntando quem eram aquelas pessoas e que lugar era aquele. Ela se assustou, tomou a foto e a rasgou dizendo: - Scheisse! Onde acho isto?

- No livro! Quem é vó?

- Non é ninguém!... Entendeu? Nada que valha a pena lembrar! - E nunca mais tocaram no assunto.

Ele abanou a cabeça: - Não,... Isto é absurdo!... - então a doutora veio explicar que sua esposa foi medicada e estava tudo bem com o bebê. Aparentemente tinha sido uma crise hipertensão.         

 - Mas Débora não é hipertensa, ao contrário, tem pressão baixa!... Hoje levamos um grande susto. Pode ser isto?                             

 - Sim, é possível. Sua esposa ficará em observação.                         

- Eu posso vê-la?                    

 - Sim, claro!

João sorriu aliviado e olhou para trás: - Viu, mamãe está bem,... - mas o garoto não estava ali. João andou pela recepção chamando-o: - Caíque?... Não brinque assim; onde você está? - levou as mãos à cabeça: - Caíque!

 

Na garagem, Clóris entregou para Léo uma pequena estrela de Davi entalhada em madeira, que tinha na parte de trás uma inscrição numa língua que ele nunca vira e também a marretinha, que ele pegou instintivamente quando ela o chamou.

As rachaduras na parede lateral que apoiava o automóvel inclinado pareciam aumentar mostrando instabilidade na estrutura, assim era preciso ser rápido. Ele chegou ao diminuto cômodo, e lá estava o alçapão no chão lacrado com uma porta de ferro; a única coisa que o separava de desvendar um segredo de toda a vida. Totalmente enferrujada, a porta não estava trancada, mas como o umbral metálico se deformou, acabou agarrando-a. Seria preciso força para abri-la. Então, no afã de entrar, Léo começou a dar pontapés até fazê-la ceder. Nisto, a estrutura da galeria estremeceu e o carro caiu inteiro de lado no buraco, desabando parte do piso da garagem com grande estrondo. Clóris conseguiu correr para não ser tragada pelo rombo, e ao baixar a poeira, o chamou: - Léo!... Você está bem?

Léo ouviu Clóris chamando seu nome como se ela estivesse atrás de uma parede, e de fato estava, pois uma parte do piso da garagem havia desabado fechando o caminho por onde tinha entrado. Limpou a vista da poeira, olhou na direção do alçapão e viu que a porta tinha cedido, ele lembrava-se claramente da força que fizera para abri-la junto com Faísca quando entrara ali da primeira vez; desta vez, estranhamente, ela abriu facilmente. Léo pegou a marretinha que tinha deixado cair e acendeu a lanterna do celular, entrou no alçapão e começou a descer a escada com muito medo, a cada degrau olhava para trás para se certificar que a porta não se fecharia sozinha.

 

CONTINUA...

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