O jovem correu para entrar no elevador.
Tinha um homem dentro que não pôs a mão no vão para deter o fechamento da
porta, mas ele foi rápido e conseguiu entrar. O homem apenas olhou-o. Estava de
terno, sem gravata e usava um boné. O jovem devolveu-lhe o olhar: – Tá olhando
o quê? – ele respondeu: - Nada!
Subitamente a luz apagou e o elevador
parou: - Que porra é essa? – reclamou o jovem. – Calma, rapaz, daqui á pouco a
luz de emergência acende! – Falou o homem quase ao mesmo tempo em que uma luz
fraca acendeu, iluminando o elevador. – Viu? Deve ter havido uma suspensão no
fornecimento de energia. – olhou a expressão de dúvida na face do jovem, e
corrigiu. – Foi embora a luz. Formou? - o rapaz se recompôs e falou. – Tô
ligado! – esfregou as mãos. – Será que essa porra vai demorar a voltar?
- Difícil saber! – respondeu o homem
olhando a aflição do jovem dentro do elevador, apalpando as paredes e andando
em círculos. – Que foi, tem claustrofobia?
- O quê?... Que merda é essa?
- É medo de lugar fechado!
- Tenho medo de nada não!... Essa porra
pode cair com a gente?
- Esperamos que não, né?
- Tem graça não! – bateu nas portas com
os punhos fechados. – Ei, tem gente presa aqui! Abre essa merda!
- Calma!... Não adianta socar a porta.
Temos que esperar a luz voltar.
- Aí ô branquelo: não tô perguntando
nada. Fica de boa! – e socou novamente a porta. O homem abanou a cabeça e
disse. – Você não gosta de ficar preso por que lembra outros tempos, não é? - o
jovem encarou-o, e olhou fixo nos seus olhos azuis quase transparentes. – Tu
falou o quê aí? – ele respondeu sem desviar o olhar: - Que isso aqui lembra
outro tempo, quando esteve detido na Unidade Sócio Educativa do Menor. Seu nome
é Jobson Carlos Almeida, acertei? Não sei se você vai se lembrar de mim.
- Fala aí pra ver se eu lembro?
- Meu nome é Frederico Monteiro, e sou
defensor público.
- E que porra isso quer dizer?
- Quer dizer que sou o advogado que
trabalha gratuitamente para quem não pode pagar um defensor particular. Eu
trabalho na Defensoria Pública do Estado, e me lembro de você por que prestei
serviços á Delegacia do Menor acompanhando alguns inquéritos,...
- Aí ó! – cortando-o. – Não dá para
falar isso em língua de gente ao invés desse caô de mané? – ele concordou e
falou - Beleza! É o seguinte brother: Eu sou o mané que tenta livrar a cara de
vocês da cilada, no 0800, quando fazem muita merda e vão parar no xilindró dos
“menor”. Se ligou brou? - Jobson olhou-o desconfiado. E Frederico prosseguiu. -
E me chamaram para ver as merda que tu aprontou,e foi só parada ruim!... – o
rapaz riu e o interrompeu. – Pode parar que querer falar a língua da
comunidade, que tá mandando muito mal! Fala na língua de mané mermo! –
Frederico assentiu: - Ótimo; isto facilita para mim. Então, me chamaram para
examinar seu prontuário e eu procurei por atenuantes que pudessem aliviar seu
delito. Mas era tráfico de drogas, coisa pesada. Aí eu não tive muito o quê
fazer senão devolver o processo ao juiz de menores... - cortando-o - Ah, filho
da puta, foi tu que me mandou pra cana? – se aproximou agressivo ao que
Frederico prosseguiu: - Eu consegui uma penalidade mais leve com atenuante
porque você era primário, e suei para isto! Mas não fui eu que te “mandou pra
cana”; foi você mesmo ao procurar andar com quem não prestava achando que era
mais esperto do que era!
- Te encho de porrada aqui, héim
branquelo! – ameaçou-o. - É mesmo? Estou morrendo de medo! Durante toda a vida
eu vi muitos como você Jobson: uma fila de “Jobsons”, todos muito espertos e
descolados, e não entendia porque estavam ali, fudendo com a própria vida!
- Tu não sabe de nada da vida da gente
pra ficar julgando!
- Tem razão Jobson: eu não sei como
começa esse caminho, mas sei como acaba! É isto que eu via todo dia e não podia
fazer nada senão tentar atenuar um pouco as consequências. Ah,... Vocês tem
tudo que eu não tenho mais: juventude, saúde, uma vida pela frente,... Dá pena
ver como tudo isto é jogado fora! Vocês é que não têm ideia de como a vida e
curta,... E pode acabar assim, ó! – ergueu a mão e estalou os dedos.
- Que papo sinistro é esse?
- Sinistro?... Você não tem a menor
ideia do que isto quer dizer Jobson!
- Diz aí então?
Frederico encarou-o e disparou. – Já
ouviu falar de câncer?... Isto é sinistro! Pode crer.
-... E tu tá com esse negócio aí?
Ele tornou a olhar á frente e respondeu.
- Sim, eu estou com câncer. Meu sangue é ruim! - ocorreu silencio no recinto
até Frederico desafiar. - E aí? Não vai falar que é menos um filho da puta
branquelo no mundo? - novo silêncio até Jobson perguntar. - Qual é o seu
câncer? – ele respondeu: - Câncer linfático,... No sangue.
- Isso dói?
- Se dói?... Sim, dói muito. O corpo dói
demais á qualquer movimento. O tratamento é complicado e também doloroso, a
gente vomita tudo que come. Não pode mais trabalhar. É Tudo de ruim.
- Todo câncer é assim?
Deu de ombros. – Acho que sim. Não
sei,... Eu só conheço o meu!
- Como é que chama quando a doença
começa a esparramar pelo corpo?
- Metástase!
- E aí acontece o quê?
- O tratamento fica mais complicado e
costuma não ter mais cura.
- O seu está assim,... Senhor Frederico?
- Sim!... Sim, está. Eu demorei a
descobrir que estava doente. Homem não gosta de ir ao médico, né? E eu não fui
exceção.
- Quando essa mastá,... Matártase
acontece, dói mais?
Riso. – Você errou a grafia, mas acertou
o sentido: matár-tase! A doença começa a matar a gente de verdade. Aí á dor
física vem outras dores. A dor saber que, possivelmente você não vai ver o
final da novela e nem assistir á próxima temporada da série! – riso. - Que a
vida ficou curtinha de repente. Dói saber que não vai ver seu filho crescer. E
dói ver que a sua mulher está cansada de cuidar de você, mas ainda te ama,...
Então, dói saber que ela e o seu filho vão sofrer muito depois que você se for.
– ele abaixou a cabeça; e depois se dirigiu á Jobson. – Por que está
perguntando essas coisas?
Jobson respondeu meio reticente: - A tia
Rosália ta internada aqui! Foi ela que me criou depois que a mãe morreu de
cachaça e droga. Ela está com câncer no seio. - Frederico olhou Jobson, e
perguntou. - A doença dela está no começo? – o rapaz falou encolhendo os
ombros: - Não. A tia teve esse negócio aí que tu falou e a doença espalhou no
corpo.
- Então você estava com ela até agora, é
acompanhante?
- Não!
- Foi só visitar?
- Não! Só olhei da porta e meti o pé!
- Ela está sozinha no quarto, tem outros
parentes com ela?
- Não! Meu pai tá preso na Bahia, e o
resto da família mora longe e não pode vir.
- Por que você só olhou sua tia da
porta? São brigados?
- Não! A tia foi a mãe que eu num
tive!... Sou amarrado nela!
- Ora,... Então por que você não entrou
no quarto para ficar com ela?
- Porque eu não posso!
- Não pode, por quê? Você está
trabalhando?
- Não!
- Então você teria tempo para isto?
- Tu tá perguntando demais ô,... Senhor
Frederico.
Ele abriu os braços: - Se sua tia está
internada aqui em estado grave, eu imagino que precise de cuidados o tempo
todo! Imagino também que ela está na enfermaria geral porque é carente, e nesta
condição não tem como ter cuidadoras á disposição. Você diz que gosta da sua
tia, que é amarrado nela, mas quando ela precisa você foge! Maneira esquisita
de gostar, né?
- Eu não fico com a tia,... – pausa
buscando palavras: - Porque não quero ver a tia Rosália morrer!
- Então, você está fugindo?
- Tô!... E pensa que eu acho isso bom? –
abanou a cabeça. – Mas eu não,... – ele não prosseguiu a frase, e Frederico a
completou: - Mas não consegue! – ele olhou em torno e disse. – Eu também não
consigo ver o sofrimento na face das pessoas que eu amo enquanto me vêm morrer.
– engoliu um soluço abafado. – É como se eu as estivesse matando também. Eu me
faço de forte,... Mas,... – baixou a cabeça, e Jobson completou: - Mas o senhor
só finge que é forte né? Eu não aguento ver a tia fazendo de conta que é forte,
fingindo que não tá doendo só pra eu não sofrer,... Aí, dói mais ainda. É por
isso que eu fujo. – Olhou Frederico, e perguntou. – Tu tá internado aqui
também?
- Estou.
- Tu tá mal?
- Sim. Eu nem sei como estou aguentando
aqui em pé.
- Tua mulher e teu filho tão aí?
- Minha esposa está me acompanhando. Meu
filho está com a minha sogra.
- Ela viu tu sair?
- Não. A Carmem dormiu de cansada na
cadeira, e não me viu sair do quarto.
- E tu tá fugindo pra onde?
Ele deu de ombros. – Não sei,... A gente
até que tenta, mas não pode fugir da gente mesmo, né Jobson!... Então,... Eu
não sei! – riso. A luz voltou e o elevador ficou ativo novamente. Os dois se
olharam, mas não falaram nada, e quando chegou ao térreo e porta abriu, Jobson
olhou-o e perguntou: - O que o senhor vai fazer?
- Vou voltar para o quarto. Acho que eu
prefiro partir para o outro mundo levando o rosto da minha esposa como última
lembrança desta vida,... Se houver outra vida! - a porta começou a fechar
levando Frederico de volta ao seu quarto enquanto Jobson saiu andando pelo
saguão do hospital rumo á saída.
Quinze dias depois, Jobson estava numa casa que servia de boca de fumo,
mas a polícia chegou numa batida de surpresa. Como ele estava na parte dos
fundos, conseguiu fugir pulando o muro e depois andando por um telhado até
chegar á rua por onde fugiu o mais rápido que pôde. Os policiais não o viram,
porém, o medo de ser preso novamente o fez correr.
Após um tempo, escondido atrás de uma
caçamba de lixo, Jobson tentava se acalmar e saiu do seu esconderijo. Passou um
carro da polícia na rua e ele mais que depressa apanhou um jornal no lixo,
fingindo ler. A patrulha se afastou sem que os policiais o interpelassem. Um
alívio! Antes de descartar a folha, seu olhar foi atraído por um nome no obituário:
“Frederico Monteiro Dodsworth: com pesar a
família comunica seu falecimento,...” - É o doutor? – olhou a data: oito de
agosto. Um dia depois do seu encontro no elevador.
Ele ficou um tempo parado ali, inerte, e
veio o medo de não ver sua tia Rosália viva nunca mais, junto á culpa por tê-la
abandonado. Ele respirou fundo e seguiu rumo ao hospital torcendo para não ser
tarde demais.
Ele andou rápido pelo corredor do
hospital, chegando ao quarto e entrou; mas no leito onde sua tia Rosália devia
estar havia outra senhora desconhecida. Jobson perguntou ás outras internas,
que não souberam responder. Mais assustado ainda ele correu á porta quase dando
um encontrão numa enfermeira que entrava; e sem espera perguntou: – Onde está
minha tia Rosália que estava ali naquela cama? – apontou. - O que aconteceu com
ela moça?... Fala logo! – a enfermeira respondeu: - Seu nome é Jobson, né? Sua
tia está bem. Foi transferida para um quarto particular há quinze dias! Venha
comigo, vou te levar até ela.
Jobson acompanhou a enfermeira por
corredores, cruzaram uma porta de vidro até chegarem a um corredor largo e
muito limpo. Ele ia espiando pelas portas dos quartos enquanto passava, e eram
acomodações bem confortáveis. – Moça; como é que a tia veio pra cá se até os
remédios dela a gente tem que pegar no SUS ou arranjar grana com amigos pra
comprar?
- Não se preocupe com isto Jobson. Uma
senhora está custeando tudo: quarto remédios e até uma cuidadora. Sua tia está
tendo um tratamento de primeira; oh, quem dera que todos pudessem usufruir
disto aqui!
- Quem é essa mulher que tá pagando
tudo?
- O nome dela é Carmem Monteiro! - ele
parou por um instante. – Carmem?
- Sim! Venha, o quarto da sua tia é
aquele ali. - chegaram á porta: era um quarto iluminado; com ar condicionado;
uma cama extra e um leito grande onde sua pequenina tia Rosália quase sumia em
meio á cobertores e toda a parafernália de monitores e sondas. Ele a olhou, e
estava dormindo com uma expressão tão plácida. Então perguntou. – Me explica aí
o lance do quarto particular?... Tem uma dona aí pagando? - a enfermeira se
aproximou. – Sim, a senhora Carmem Monteiro tomou para si o custeio de todo o
tratamento da senhora Rosália Maria Almeida. – suspirou. – Ah, é uma história
interessante: O marido dela, o doutor Frederico Monteiro, estava internado
neste hospital com câncer linfático já em estado terminal. Sua esposa estava ao
lado da cama, e então, subitamente, aconteceu algo incomum num paciente
naquelas condições: ele abriu os olhos e a chamou. Ela se debruçou na cama e
ele lhe falou coisas ao ouvido. Depois ele acariciou seu rosto, e se foi! A
senhora Carmem pediu uns instantes a sós com o corpo do marido, mas deu para
ouvi-la chorando! Então veio a mim, perguntando quem era a senhora Rosália que
tinha um sobrinho de nome e Jobson, e solicitou que providenciássemos sua
transferência para um quarto particular com todas as despesas por conta dela.
Depois me disse que foi o último pedido do seu marido, o doutor Frederico.
Espantado; Jobson falou: - Eu vi ele no
elevador e falei da doença da tia! – a enfermeira interrompeu: - Oh não! –
abanou a cabeça: - Você não pode tê-lo visto fora do quarto. Isto seria
impossível porque ele já chegou aqui em estado de coma!
Então se ouviu um fio de voz. – Acho que
estou ouvindo meu sobrinho falar!
- Tia? – Jobson seguiu á beira da cama;
beijou-a e falou. – Tô aqui tia!
- Mas que bom!... Menino levado. Tu
sumiu, e eu até achei que não ia mais te ver. Ah meu filho,... O filho que eu
não tive, mas Deus me deu! Você não tá aprontando nada aí na rua não né?...
Daqui a pouco vai ser só tu sozinho!
- Fala isso não tia! A senhora vai longe
ainda.
- Sim,... Eu sei. – falou e segurou sua
mão com toda a pequena força que ainda dispunha. Ele sorriu largo para que ela
visse. Mas depois virou o rosto para que não percebesse sua tristeza.
Jobson ficou ao lado de Rosália no hospital
todos os dias e noites. Ás vezes lembrava-se da conversa no elevador com o
doutor Frederico: “impossível”, segundo a enfermeira. Assim decidiu que o
melhor á fazer seria guardar aquilo para si. Talvez fosse outro homem, com nome
e história igual. Quem sabe? O fato é que se sentia privilegiado por ter visto
o “impossível” de perto.
Dias depois ele comemorou seus dezoito
anos naquele quarto, junto á Rosália, que parecia até apresentar pequenas
melhoras.
Como dizem: foi uma última visita da
saúde antes do final.
Numa tarde clara no inicio da primavera,
tia Rosália, acolhida nos braços de seu querido sobrinho Jobson, se foi.
O vento de setembro tremulava flores de
plástico desbotadas, plantadas em vasos de cimento ou pedra em cima dos túmulos
do cemitério, junto ao farfalhar dos ciprestes e ás folhas rodopiando em
pequenos rodamoinhos. Jobson caminhava pela alameda com um ramalhete de flores
do campo na mão e uma sensação de gratidão no coração, que o elevava.
Parou diante do túmulo, simples, com um
vaso contendo flores naturais, já um tanto murchas. Ele se posicionou num sinal
de respeito e reverencia, e olhou fixo naquele rosto sorridente impresso no
pequeno medalhão circular fixo ao túmulo. Jobson sorriu; deixou o ramalhete
sobre o túmulo e falou baixo.
- Oi doutor Frederico. Eu não sei falar
bonito e nem recitar poesia. Mas,... De todo coração: Valeu! O doutor nunca foi
sangue ruim. Era sangue bom! – fez o gesto com o polegar para cima.
Ele ficou ainda uns instantes numa atitude
contemplativa. Olhou o céu, as nuvens, e pensou: - “Impossível!”.
Colocou seu boné, e partiu.
muito bom
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirShow !!!
ResponderExcluirObrigado! este feedback é importante.
ExcluirMaravilhoso!!!!
ResponderExcluirChorei!!!
Obrigado!
ResponderExcluir