Há
lugares que não são apropriados para se falar em fantasmas, e o Instituto Médico
Legal certamente é um deles porque lá a morte é tão cotidiana como beber um
copo d’água ou calçar uma meia.
Os
cadáveres não são zumbis prontos a se levantarem, mas conseguem dizer de que
maneira a vida lhes foi tomada examinando-se seus corpos inertes, apenas isto;
e este era o lema da doutora Eliana. Quantas vezes uma decisão judicial não
dependeu da sua eficácia na identificação da causa da morte de um indivíduo? Portanto,
era preciso muita objetividade no seu cotidiano profissional e isto se aplicava
também a qualquer coisa minimamente sobrenatural, caso contrário simplesmente
não daria para trabalhar ali!
Ela
chegava á sala azulejada até o teto onde pairava o indefectível cheiro de
formol para um trabalho complicado da identificação de um corpo naturalmente
mumificado disposto numa mesa e com um detalhe incomum: estava sem cabeça. –
Meu deus! Onde encontraram este cadáver? - seu assistente Zenon respondeu: - A
polícia o encontrou num terreno baldio no bairro Santa Cruz, e deduziram ser
desova de traficantes porque o decapitaram como costumam fazer para dificultar
identificação. – ela pôs as luvas observando o cadáver esquelético que apresentava
conservação quase perfeita de pele e musculatura, e após examiná-lo, fez um
rascunho do prontuário: - “Cadáver de um indivíduo do sexo masculino; idade
aproximada indeterminada que devia ter grande porte.” - apontou os ossos da
clavícula. – “Ombros largos, e estimando as dimensões do crânio, devia medir
mais de dois metros”. Veio algum vestuário? – Zenon respondeu: - Só uns trapos
que o perito vai examinar. – Eliana olhou mais um pouco e prosseguiu. – “Devido
ao processo de mumificação natural do indivíduo só poderemos precisar a data da
sua morte com exames químicos”. Ele deve ter permanecido em algum lugar
altamente seco e calcário por um bom tempo para proporcionar esta conservação.
– Zenon perguntou: - Identificação quase impossível, não é doutora?
-
Sim! – fechou a pasta com os papéis concluindo: – Sem o crânio, não há nem como
examinar arcada dentária ou o palato. – suspiro: - Mais um cadáver que não
conseguiremos identificar e depois será enterrado como indigente; como tantos
outros!
-
A doutora sempre fica tão mal quando não conseguimos identificar um corpo.
-
É lógico! Qualquer cadáver, por mais deteriorado e mutilado que esteja ainda é
um ser humano e pode haver pessoas á procura dele: pais, irmãos, amigos,... E
nós impotentes para lhes dar a resposta que tanto procuram! Eu sei que fazemos
o possível. Só que esse “possível” ás vezes se mostra insuficiente e isto me
deixa angustiada.
- Se houvesse um jeito da gente descobrir a
identidade dessas pessoas através de,...
Eliana
cortou-o – Pode parar por aí Zenon porque eu já sei a onde essa conversa vai
chegar! – se aproximou. – Eu respeito as suas crenças, mas preste atenção á
onde estamos e reflita se é o lugar certo para se pensar em espíritos?
-
Eu sei disso, mas a doutora há de convir que o nosso prédio bem que parece ter
seus mistérios: luzes que acendem sozinhas e aqueles ruídos e gemidos que
ninguém descobre de onde vem.
A
médica cruzou os braços e disse. – Estamos carecas de saber que os tais gemidos
e barulhos misteriosos vêm das geladeiras, que da mesma forma daquelas que
temos em casa emitem ruídos e até batidas. E quanto ás luzes: o problema não é
quem as acende, mas quem se esquece de apagá-las!
-
A doutora não acredita em parapsicologia?
-
Aqui, não! Se nós começarmos a dar vazão a este tipo de consideração ocultista,
daqui a pouco estaremos sentados em volta de mesas apoiando as pontas dos dedos
em copos deslizantes esperando á resposta de “sim” ou “não” e perguntando “tem
alguém aí?” ao invés de fazermos nosso trabalho da maneira científica que se
espera!
-
Está bem, doutora, não se fala mais nisso. E quanto ao cadáver; podemos
recolher?
-
Ainda não. Eu quero chamar um especialista em mumificação para examiná-lo; tem
aspecto de algo muito antigo. Acho que o lugar dele não é aqui, mas num museu!
– olhou seu assistente. – Veja bem, Zenon. Eu não sou essa criatura
materialista e insensível que pode parecer, mas na nossa atividade, se não
formos práticos e objetivos a gente se perde!
-
Eu sei doutora. Sem problemas! – falou e saiu da sala. Eliana ficou a sós com o
cadáver sem cabeça, cobriu-o com um lençol e se retirou, apagando as luzes.
Na
manhã seguinte Eliana estava sonolenta á mesa do café em sua casa, dando longos
bocejos. Sua filha, Elisa, chegou e perguntou. – Com sono, mãe?
Colocando
a caneca de café com leite no pires. – Um pouco. Eu detesto trazer preocupações do trabalho
para casa; mas apareceu um cadáver faltando sua cabeça. Impossível identificar!
-
Isto a incomoda, né?... Faz lembrar o tio Mário. – ocorreu um silêncio. –
Desculpe mãe,... Eu não quis falar nele. – Eliana pousou as mãos na mesa e disse.
– Tudo bem, filha. É verdade. Qualquer pessoa que não identifico, fico pensando
no Mário,... Enterrado numa vala comum,
ou como indigente... - Elisa cortou-a segurando sua mão. Ela se recompôs
dizendo. – Vamos terminar o café porque o dia será longo! – e sorriu.
Mais
tarde no trabalho, era final da manhã e todos haviam saído para almoçar. Eliana
estava sem fome, então permaneceu em sua sala refletindo: Mário era seu irmão
mais velho, muito alegre e ativo; Eliana o tinha como um protetor. Um dia, em
1974, ele saiu para comprar cigarros e desapareceu. Mário não era militante
político, mas participava dos movimentos estudantis na universidade. Contudo a
família nunca conseguiu confirmação de sua prisão pela polícia política. Então,
doía muito não saber o que aconteceu. Eliana abanou a cabeça para espantar
aqueles pensamentos e se lançou no trabalho.
O
silêncio era quebrado pelo zumbido dos aparelhos de ar condicionado. Então
iniciaram os ruídos e gemidos, além de pequenos toques. – Lá vem nossa sinfonia
das geladeiras! – resmungou. De repente pareceu ouvir passos na sala das
necropsias: - Zenon, já voltou do almoço?
– não houve resposta. Eliana se levantou seguindo á sala, que estava
vazia apenas com o cadáver mumificado sobre a mesa coberta com lençol. Ela
chamou por outros funcionários e ouviu apenas o eco de sua voz. Deu de ombros e
retornou á sua sala, mas ao cruzar o corredor se virou á esquerda percebendo o
reflexo de uma luz acesa que vinha de uma sala mais afastada. Ela seguiu ao
local que servia de depósito para guarda de ossadas sem identificação e a porta
estava aberta. Isto a aborreceu: - Tenho que chamar atenção dos funcionários
para isto de deixar luzes acesas e portas sem fechar! – ao mexer no interruptor
escutou um ruído vindo dos fundos da sala. Preocupou-se de serem ratos, e nem
seria a primeira vez. Ela caminhou ao local cheio de estantes abarrotadas de
caixas de papelão, acendeu uma luz e o ruído cessou. Porém, antes de sair algo
lhe chamou atenção: uma marca em “X” numa caixa bem antiga. Ela aproximou para
conferir porque isto não era de praxe e ainda mais com um traço tão grosso
sobre a etiqueta de identificação. Então
a apanhou e colocou-a sobre uma mesa. A etiqueta dava conta de uma peça
anatômica sem identificação. Ela rompeu o lacre e a abriu; continha um crânio
completo sem marcas de perfurações ou fraturas, sem data da sua entrada no IML.
Ela teve uma intuição e pensou consigo: - Será possível? – imediatamente Eliana
o levou á sala das necropsias, retirou o lençol que cobria o cadáver e
posicionou o crânio acima da ultima vértebra da coluna cervical, e o encaixe
foi perfeito. Ela se afastou para ver melhor e sua proporção era totalmente
compatível com o corpo. – Como pode ser?... O crânio estava aqui o tempo todo?
– Perguntava-se.
Era preciso confirmação técnica, e como teria
que preencher guias de solicitação de exames ao laboratório, ela apanhou a
caixa, seguiu á sua sala e se sentou diante da mesa. Mas quando a olhou teve
uma surpresa, pois não havia nenhuma marca de “X” ou outra qualquer. Ela olhou
todos os lados da caixa, falando. – Não tem?... Mas eu vi! – então ouviu passos
atrás de si falou: - Zenon, você nem imagina que coisa estranha aconteceu... –
mal teve tempo de terminar a frase e sentiu uma mão ressecada e forte a
agarrando pelo pescoço e arrancando-a da cadeira. Ela conseguiu olhar, e era o
cadáver mumificado em pé com o crânio sobre o pescoço. Completamente apavorada
ela se debatia, mas não conseguia gritar enquanto aquela coisa aterradora e
fétida a arrastou até a sala de necropsias, a encostou á uma bancada azulejada
e apertou seu pescoço com as duas mãos para sufocá-la. Eliana ainda tentou
perfurá-lo no tórax e abdômen com bisturis e tesouras que conseguia apanhar,
mas era inútil, pois parecia estar perfurando um boneco de palha.
Sem
ter como reagir e sufocada, Eliana foi perdendo as forças. Mas de súbito um
machado golpeou o monstro com força nas costas; era Zenon que começou á golpear
os braços da múmia até soltar a médica. Muito rápido o monstro se lançou em
cima dele, agarrando-o pelo pescoço e deixando-o sem ataque com o machado até
que, sufocado, ele largou a ferramenta ao chão. Eliana se recuperou, apanhou o
machado e golpeou o crânio do monstro, arrancando-o do corpo e atirando-o longe.
O monstro abriu os braços soltando Zenon e desabou de uma vez no chão. Ela
correu ao seu assistente e lhe fez massagem cardíaca e respiração boca á boca
até que seus sentidos voltaram.
Os
dois se acalmaram e Eliana perguntou: - O que é isto?... Que monstro é esse?
-
É uma múmia! – respondeu Zenon ainda um pouco zonzo: - Junto com ela vieram
algumas coisas que pareciam bandagens e esta etiqueta chamuscada com um número
identificando-a como uma peça arqueológica que estava na reserva técnica do
Museu Nacional da Quinta da Boa Vista destruído naquele incêndio. Fazia parte
do acervo de múmias e havia chegado lá há mais de cem anos. – Eliana olhava os
despojos no chão assustada enquanto Zenon prosseguiu: - Teria vindo de Cuzco e
tem idade estimada em seiscentos anos!
-
Mas,... Segundo o boletim policial, foi achada num terreno baldio. Como isto
aconteceu?
-
Talvez alguém tenha aproveitado para roubá-la na confusão do incêndio, mas se
tocou que não teria o que fazer com uma múmia sem cabeça e a abandonou em
qualquer lugar. Difícil saber. Mas tem outra coisa: - mostrou um papel com uma
frase: “este servo de Ah Puch traiu os
deuses, e sua cabeça jamais poderá juntar-se ao corpo sob a pena de trazer o
demônio que o habita de volta. Apenas decapitado terá sossego”. – Trata-se
de uma maldição Inca com mais de dois mil anos. A múmia já chegou decapitada ao
museu; por isso nunca foi exposta.
-
Mas, se este crânio pertencia á múmia, mas nunca poderia compô-la novamente,
ele ficou aqui, aguardando-a?... Isto é absurdo!
Zenon
respondeu: - Há muitas peças anatômicas guardadas aqui sem identificação de
origem que chegaram aqui só deus sabe quando. Era o caso deste crânio. Maldições, múmias,... É melhor a gente nem
querer saber!
-
É verdade. Mas, e este texto; a onde você o conseguiu?
Zenon
fez um silêncio e falou: - Eu sei que a doutora não gosta disto aqui, mas eu a
desobedeci; evoquei meus guias e entrei num transe como nunca aconteceu, e
quando acordei este papel estava na mesa. O espírito de luz que escreveu se
chama,... – fez uma pausa, ao que Eliana insistiu: - Diga logo!
-...
Ele se chama Mário e ordenou que eu viesse aqui rápido para socorrer á sua irmã
querida!
Ao
ouvir isto, Eliana caiu num choro compulsivo.
Comunicaram
o achado da múmia á Universidade Federal do Rio de Janeiro e ela foi devolvida
ao acervo do Museu Nacional. Já o crânio, jamais poderia reencontrar o corpo, e
assim foi arrebentado á golpes de marreta por Zenon e depois atirado ao mar.
Eliana agora sabia que seu irmão estava morto,
e decidiu se empenhar em descobrir toda a verdade sobre isto.
Ela manteve o pragmatismo indispensável á sua atividade.
Se bem que ás vezes sentia-se tentada a colocar um copo de boca para baixo,
apoiar seus dedos em cima e perguntar: – Tem alguém aí?
Fim.
Fantástico 👏👏👏👏👏
ResponderExcluirRamon como sempre arrasando em seus contos!!!
Obrigado. Este foi uma espécie de correção no segundo conto que publiquei no blog. Acho que ficou melhor. Se quiser conferir a primeira versão, ainda está nas postagens antigas.
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