Nos antigos Carnavais do Rio de Janeiro
havia uma brincadeira dos meninos da Zona Norte, subúrbios e Baixada Fluminense
chamada “Clóvis”, ou “bate-bola”, que consistia numa fantasia de palhaço, um
macacão de cetim ou tafetá colorido com elásticos nos punhos e tornozelos; uma
haste de taquara com uma bexiga na ponta (no inicio era bexiga de porco, que
fedia muito. Depois passou a tê-las de material plástico) que se batia no chão
com força, e uma máscara sob a forma de um capuz de tecido que cobria toda a
cabeça, tendo um tufo de cabelo de pelúcia na testa e tela engomada na frente (semelhante
de esgrima) pintada com olhos grandes e uma cruz na testa.
Garotos saiam ás ruas com esta fantasia
nos dias de Carnaval assustando as crianças mais novas, batendo as bexigas no
chão para fazer barulho. Naqueles tempos (quando não haviam inventado tantos
“traumas”) os pais achavam graça da brincadeira, acudindo os filhos e
espantando os “Clóvis” com um “xô moleque!”. Eram outros tempos.
Flávio e Henrique eram dois garotos de
12 e 11 anos que viviam nos bairros do Bonsucesso e Higienópolis na Zona Norte
do Rio de Janeiro. Colegas de escola desde os tempos do pré-primário e amigos
inseparáveis nas brincadeiras comuns do subúrbio carioca naquele final da
década de 1970, ainda no restinho dos “anos dourados”.
Não era diferente nos carnavais, quando
os dois brincavam nas matinês do “Cacique de Ramos”, mas o que eles gostavam
mesmo era da brincadeira de “Clóvis”. Na véspera do Carnaval já pediam ás mães
a produção das fantasias multicoloridas e a aquisição das máscaras em lojas de
adereços carnavalescos da Rua da Alfândega na chamada região do “Saara” no
centro do Rio de Janeiro (o conjunto de ruas entre a Av. Rio Branco, a Presidente
Getulio Vargas, o parque do Campo de Santana até a Praça Tiradentes têm este
apelido pela concentração de estabelecimentos pertencentes á árabes e judeus),
além das sapatilhas e a imprescindível bexiga presa na ponta da haste de
taquara.
A origem desta brincadeira era um tanto
obscura: alguns afirmavam ser uma herança francesa por conta das lendas em
torno do rei Clóvis I, que reinou entre 481 e 511 (séculos V e VI) e teria o
hábito de sair fantasiado, incógnito, nos festejos carnavalescos nas aldeias da
região dos “Francos”, atual França, para saber o que o povo pensava. Isto teria
chegado ao Rio de janeiro com a Missão Francesa em 1816 e se manifestado
principalmente entre escravos, inclusive os forros, que assim podiam sair
mascarados misturando-se aos brancos nos festejos carnavalescos ao final do
século XIX. Outra hipótese era que o nome “Clóvis”, na verdade seria uma
corruptela da palavra inglesa “clown”, que significa palhaço no sentido de
bufão, bobo e rústico, porém com sincretismo á tradições brasileiras mais
antigas onde pessoas saiam mascaradas vestidas de boi ou boiadeiro (semelhante
ás alegorias do bumba meu boi do Nordeste do Brasil) antes da Quaresma, e mesmo
na semana santa, para assustar as pessoas. A tradição teria chegado ao Sudeste
por conta de migrações de nordestinos e teria sofrido influências e mesclas no
figurino e conceito, mas mantendo seu aspecto assustador.
Aquele domingo de Carnaval em 1980
marcaria a vida dos dois amigos, pois na segunda feira Henrique se mudaria do
Rio de Janeiro para Porto Alegre por conta da transferência de seu pai, Assim,
seria o último Carnaval da brincadeira de “Clóvis” da dupla, que driblariam a
tristeza brincando de montão!
Pela manhã Flávio telefonou ao amigo
para combinarem o encontro. Os bairros Higienópolis, onde Henrique vivia, e
Bonsucesso, onde era a casa de Flávio, são contíguos, assim decidiram se
encontrar nas esquinas da Rua Uranos com Rua Itaóca, próximo a estação do trem
do subúrbio, que divide os bairros. Tiveram que gritar ao telefone, pois a
ligação (dos tempos da TELERJ) estava péssima.
Na hora combinada, á tarde, Flávio
aguardava ansioso quando seu amigo chegou com fantasia e máscaras novas.
Cumprimentaram-se e já saíram junto á outros garotos para “botar terror” nos
pirralhos mais novos. Era comum não falarem para não serem reconhecidos. Andaram
pela Rua Itaóca, desceram por uma rua transversal até chegarem á avenida
chamada Santa Mariana, á Avenida dos Democráticos e novamente á Itaóca onde
cruzaram o acesso subterrâneo por baixo dos trilhos, chegando á Praça das
Nações, centro do Bonsucesso, onde havia blocos carnavalescos desfilando pelas
ruas. Foi um domingo de Carnaval memorável! Ás dezessete horas eles deveriam
voltar para casa; Flávio ainda iria á matinê no Cacique, mas Henrique partiria
para Porto Alegre num voo ás vinte duas horas. Assim, despediram-se rápido para
não darem vazão á emoções (meninos nunca choram!).
Passaram-se quarenta anos. Flávio agora
era um professor que fazia doutorado na Universidade Columbia, em Nova York,
Estados Unidos. Divorciado, três filhos; casado novamente, mais um filho; assim
era a vida do futuro Doutor Flávio Borges. Ele viveu no Rio de janeiro a vida
toda, mas o Carnaval não era mais o mesmo. Ninguém brincava mais de “Clóvis”!
Por um azar, ele perdeu o contato com o amigo Henrique e pouco depois se mudou
de Bonsucesso para o bairro da Barra da Tijuca com novo numero de telefone. Se
seu amigo se lhe enviou alguma carta, também nunca a recebeu. Chegou a
procurá-lo nas redes sociais, em vão. – Vai ver que já morreu! – pensava com um
aperto na saudade.
Naquela tarde Flávio estava no metrô, em
Nova York, quando uma voz lhe aguçou a audição. Alguém falava o telefone em
português: -... Essa encrenca toda por causa de um “til”? Retifique a ficha do
hotel explicando que meu nome não é Henrique de Magalaes, e sim Henrique de
Magalhães!... Eu sei que inglês não tem “til”, mas que hotel de merda é esse
que não sabe que na língua portuguesa tem?
Flávio lançou o olhar naquele homem
gordo e careca, que nada lembrava o garoto esguio e cabeludo impresso na memória,
até que ele tirou seus óculos: eram os mesmos olhos castanhos claros como mel,
e com o mesmo brilho. – Eles vão
corrigir. Senão a gente muda de hotel!... Um beijo amor! – enfiou o parelho no
bolso do sobretudo, e ia passando por Flávio que o puxou, dizendo. – Hei! Não
conhece mais os pobres Henrique?
Ele olhou, franziu a testa por um
instante e arregalou as retinas: - Caralho!... É você mesmo Flávio?
Os
dois amigos se abraçaram fortemente, até espantando os passageiros ianques. Era
tanta saudade represada que apreciam querer compartilhar todas as experiências
não vividas de forma tópica, por osmose. Pararam na primeira estação e já foram
procurar um Café para conversarem. Eles se olhavam sem medir rugas, barrigas ou
cabelos; era como se quarenta anos tivesse sido apenas quarenta minutos de
afastamento dado o frescor daquela amizade, que nem os anos puseram a perder.
Flávio explicou sua vida, que fazia doutorado e se tornou professor
universitário. Henrique relatou que quando serviu ao exército, decidiu seguir
carreira militar tendo vivido em muitos lugares pelo Brasil, chegando mesmo a
atuar no Haiti. Tinha dado baixa com patente de Coronel e agora podia viajar
com a patroa, a passeio! – Putz! – brincou Flávio: - Tu virou milico? – ele
riu. – Pois é amigo!... Quantas vezes eu estive pra sair; minha mulher é que
não deixou! – conversaram mais trocando histórias, experiências e muitas
lembranças dos tempos de Bonsucesso e Higienópolis. Das meninas do colégio,
daquela vida diferente da atual, até chegarem á aquele domingo de carnaval.
Henrique falou: - Tu nem imagina como eu chorei debaixo da máscara!... Por isto
nem falava. – Flávio completou. – Eu também tive medo de abrir a boca e
estragar nossa festa! – riso: - Tu lembra? A gente encontrou na esquina da
Itaóca com Uranos e fomos até aquela subidinha que dava no “Alemão”. Naquele
tempo podia! Fizemos os moleques subir o morro correndo de medo! – Henrique
ouvia fazendo um muxoxo até o interromper: - Pera aí; você está confundindo as
coisas! Nós atravessamos o subterrâneo da linha do trem e fomos direto para a
Praça das Nações, no lado oposto!
- Não! Primeiro nós rodamos o
Higienópolis, depois é que nós fomos á Praça das Nações, no Bonsucesso!
- Ô Flávio, tu tá delirando? Eu tinha
que voltar cedo pra casa por causa da viagem; aí nós fomos primeiro á Praça das
Nações, no Bonsucesso, e depois é que fomos ao Higienópolis. Tu foi comigo até
a porta da minha casa!
- Não!... Foi tu que me acompanhou até o
meu prédio, no Bonsucesso! – retrucou Flávio.
Os dois ficaram em silêncio...
O mais provável é que a brincadeira de
“Clóvis” tenha origem numa lenda urbana carioca. Um garoto que realmente se
chamava Clóvis queria brincar o Carnaval fantasiado de palhaço com uma máscara.
Então sua mãe confeccionou uma fantasia colorida de cetim de seda, com mangas e
pernas largas como um pierrô. Arranjaram-lhe uma máscara que cobria toda a
cabeça, tendo uma tela pintada com um rosto medonho na frente e tufos de
cabelos vermelhos no alto. Ele amarrou uma bexiga de porco cheia de ar (como um
balão) numa haste de taquara que bateria ao chão. Já pronto e ansioso para
sair, Clóvis correu á rua feliz com sua fantasia; mas ao travessá-la sem
prestar atenção, foi atropelado por um lotação (tipo de micro-ônibus urbano
comum no Rio de Janeiro até a década de 1950), morrendo imediatamente. Ele não
pôde brincar aquele tão sonhado Carnaval, mas nos três dias do reinado de Momo
seu espírito saía ás ruas junto aos outros garotos, todos com máscaras cobrindo
seus rostos. Assim, rezava a tradição que qualquer garoto fantasiado de
“Clóvis”, poderia ser seu fantasma brincando o carnaval que não pôde em vida.
Por isto os meninos pequenos ficavam tão apavorados, de medo da assombração!
... Então Flávio e Henrique se olharam;
riram muito e se deram as mãos na certeza que um deles realmente pode ter
brincado com o “Clóvis” no Carnaval carioca de 1980!
FIM.
Obs: vivi no Rio de Janeiro na década de
1970, e apenas uma vez brinquei de “Clóvis”. Se a memória traiu a geografia de
Bonsucesso e Higienópolis em algum momento; eu garanto que o roteiro do coração
seguiu o rumo certo!