segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

OS MENINOS "CLÓVIS'.



Nos antigos Carnavais do Rio de Janeiro havia uma brincadeira dos meninos da Zona Norte, subúrbios e Baixada Fluminense chamada “Clóvis”, ou “bate-bola”, que consistia numa fantasia de palhaço, um macacão de cetim ou tafetá colorido com elásticos nos punhos e tornozelos; uma haste de taquara com uma bexiga na ponta (no inicio era bexiga de porco, que fedia muito. Depois passou a tê-las de material plástico) que se batia no chão com força, e uma máscara sob a forma de um capuz de tecido que cobria toda a cabeça, tendo um tufo de cabelo de pelúcia na testa e tela engomada na frente (semelhante de esgrima) pintada com olhos grandes e uma cruz na testa.
Garotos saiam ás ruas com esta fantasia nos dias de Carnaval assustando as crianças mais novas, batendo as bexigas no chão para fazer barulho. Naqueles tempos (quando não haviam inventado tantos “traumas”) os pais achavam graça da brincadeira, acudindo os filhos e espantando os “Clóvis” com um “xô moleque!”. Eram outros tempos.

Flávio e Henrique eram dois garotos de 12 e 11 anos que viviam nos bairros do Bonsucesso e Higienópolis na Zona Norte do Rio de Janeiro. Colegas de escola desde os tempos do pré-primário e amigos inseparáveis nas brincadeiras comuns do subúrbio carioca naquele final da década de 1970, ainda no restinho dos “anos dourados”.
Não era diferente nos carnavais, quando os dois brincavam nas matinês do “Cacique de Ramos”, mas o que eles gostavam mesmo era da brincadeira de “Clóvis”. Na véspera do Carnaval já pediam ás mães a produção das fantasias multicoloridas e a aquisição das máscaras em lojas de adereços carnavalescos da Rua da Alfândega na chamada região do “Saara” no centro do Rio de Janeiro (o conjunto de ruas entre a Av. Rio Branco, a Presidente Getulio Vargas, o parque do Campo de Santana até a Praça Tiradentes têm este apelido pela concentração de estabelecimentos pertencentes á árabes e judeus), além das sapatilhas e a imprescindível bexiga presa na ponta da haste de taquara.

A origem desta brincadeira era um tanto obscura: alguns afirmavam ser uma herança francesa por conta das lendas em torno do rei Clóvis I, que reinou entre 481 e 511 (séculos V e VI) e teria o hábito de sair fantasiado, incógnito, nos festejos carnavalescos nas aldeias da região dos “Francos”, atual França, para saber o que o povo pensava. Isto teria chegado ao Rio de janeiro com a Missão Francesa em 1816 e se manifestado principalmente entre escravos, inclusive os forros, que assim podiam sair mascarados misturando-se aos brancos nos festejos carnavalescos ao final do século XIX. Outra hipótese era que o nome “Clóvis”, na verdade seria uma corruptela da palavra inglesa “clown”, que significa palhaço no sentido de bufão, bobo e rústico, porém com sincretismo á tradições brasileiras mais antigas onde pessoas saiam mascaradas vestidas de boi ou boiadeiro (semelhante ás alegorias do bumba meu boi do Nordeste do Brasil) antes da Quaresma, e mesmo na semana santa, para assustar as pessoas. A tradição teria chegado ao Sudeste por conta de migrações de nordestinos e teria sofrido influências e mesclas no figurino e conceito, mas mantendo seu aspecto assustador.

Aquele domingo de Carnaval em 1980 marcaria a vida dos dois amigos, pois na segunda feira Henrique se mudaria do Rio de Janeiro para Porto Alegre por conta da transferência de seu pai, Assim, seria o último Carnaval da brincadeira de “Clóvis” da dupla, que driblariam a tristeza brincando de montão!
Pela manhã Flávio telefonou ao amigo para combinarem o encontro. Os bairros Higienópolis, onde Henrique vivia, e Bonsucesso, onde era a casa de Flávio, são contíguos, assim decidiram se encontrar nas esquinas da Rua Uranos com Rua Itaóca, próximo a estação do trem do subúrbio, que divide os bairros. Tiveram que gritar ao telefone, pois a ligação (dos tempos da TELERJ) estava péssima.
Na hora combinada, á tarde, Flávio aguardava ansioso quando seu amigo chegou com fantasia e máscaras novas. Cumprimentaram-se e já saíram junto á outros garotos para “botar terror” nos pirralhos mais novos. Era comum não falarem para não serem reconhecidos. Andaram pela Rua Itaóca, desceram por uma rua transversal até chegarem á avenida chamada Santa Mariana, á Avenida dos Democráticos e novamente á Itaóca onde cruzaram o acesso subterrâneo por baixo dos trilhos, chegando á Praça das Nações, centro do Bonsucesso, onde havia blocos carnavalescos desfilando pelas ruas. Foi um domingo de Carnaval memorável! Ás dezessete horas eles deveriam voltar para casa; Flávio ainda iria á matinê no Cacique, mas Henrique partiria para Porto Alegre num voo ás vinte duas horas. Assim, despediram-se rápido para não darem vazão á emoções (meninos nunca choram!).

Passaram-se quarenta anos. Flávio agora era um professor que fazia doutorado na Universidade Columbia, em Nova York, Estados Unidos. Divorciado, três filhos; casado novamente, mais um filho; assim era a vida do futuro Doutor Flávio Borges. Ele viveu no Rio de janeiro a vida toda, mas o Carnaval não era mais o mesmo. Ninguém brincava mais de “Clóvis”! Por um azar, ele perdeu o contato com o amigo Henrique e pouco depois se mudou de Bonsucesso para o bairro da Barra da Tijuca com novo numero de telefone. Se seu amigo se lhe enviou alguma carta, também nunca a recebeu. Chegou a procurá-lo nas redes sociais, em vão. – Vai ver que já morreu! – pensava com um aperto na saudade.
Naquela tarde Flávio estava no metrô, em Nova York, quando uma voz lhe aguçou a audição. Alguém falava o telefone em português: -... Essa encrenca toda por causa de um “til”? Retifique a ficha do hotel explicando que meu nome não é Henrique de Magalaes, e sim Henrique de Magalhães!... Eu sei que inglês não tem “til”, mas que hotel de merda é esse que não sabe que na língua portuguesa tem?
Flávio lançou o olhar naquele homem gordo e careca, que nada lembrava o garoto esguio e cabeludo impresso na memória, até que ele tirou seus óculos: eram os mesmos olhos castanhos claros como mel, e com o mesmo brilho.  – Eles vão corrigir. Senão a gente muda de hotel!... Um beijo amor! – enfiou o parelho no bolso do sobretudo, e ia passando por Flávio que o puxou, dizendo. – Hei! Não conhece mais os pobres Henrique?
Ele olhou, franziu a testa por um instante e arregalou as retinas: - Caralho!... É você mesmo Flávio?
 Os dois amigos se abraçaram fortemente, até espantando os passageiros ianques. Era tanta saudade represada que apreciam querer compartilhar todas as experiências não vividas de forma tópica, por osmose. Pararam na primeira estação e já foram procurar um Café para conversarem. Eles se olhavam sem medir rugas, barrigas ou cabelos; era como se quarenta anos tivesse sido apenas quarenta minutos de afastamento dado o frescor daquela amizade, que nem os anos puseram a perder. Flávio explicou sua vida, que fazia doutorado e se tornou professor universitário. Henrique relatou que quando serviu ao exército, decidiu seguir carreira militar tendo vivido em muitos lugares pelo Brasil, chegando mesmo a atuar no Haiti. Tinha dado baixa com patente de Coronel e agora podia viajar com a patroa, a passeio! – Putz! – brincou Flávio: - Tu virou milico? – ele riu. – Pois é amigo!... Quantas vezes eu estive pra sair; minha mulher é que não deixou! – conversaram mais trocando histórias, experiências e muitas lembranças dos tempos de Bonsucesso e Higienópolis. Das meninas do colégio, daquela vida diferente da atual, até chegarem á aquele domingo de carnaval. Henrique falou: - Tu nem imagina como eu chorei debaixo da máscara!... Por isto nem falava. – Flávio completou. – Eu também tive medo de abrir a boca e estragar nossa festa! – riso: - Tu lembra? A gente encontrou na esquina da Itaóca com Uranos e fomos até aquela subidinha que dava no “Alemão”. Naquele tempo podia! Fizemos os moleques subir o morro correndo de medo! – Henrique ouvia fazendo um muxoxo até o interromper: - Pera aí; você está confundindo as coisas! Nós atravessamos o subterrâneo da linha do trem e fomos direto para a Praça das Nações, no lado oposto! 
- Não! Primeiro nós rodamos o Higienópolis, depois é que nós fomos á Praça das Nações, no Bonsucesso!
- Ô Flávio, tu tá delirando? Eu tinha que voltar cedo pra casa por causa da viagem; aí nós fomos primeiro á Praça das Nações, no Bonsucesso, e depois é que fomos ao Higienópolis. Tu foi comigo até a porta da minha casa!
- Não!... Foi tu que me acompanhou até o meu prédio, no Bonsucesso! – retrucou Flávio.
Os dois ficaram em silêncio...

O mais provável é que a brincadeira de “Clóvis” tenha origem numa lenda urbana carioca. Um garoto que realmente se chamava Clóvis queria brincar o Carnaval fantasiado de palhaço com uma máscara. Então sua mãe confeccionou uma fantasia colorida de cetim de seda, com mangas e pernas largas como um pierrô. Arranjaram-lhe uma máscara que cobria toda a cabeça, tendo uma tela pintada com um rosto medonho na frente e tufos de cabelos vermelhos no alto. Ele amarrou uma bexiga de porco cheia de ar (como um balão) numa haste de taquara que bateria ao chão. Já pronto e ansioso para sair, Clóvis correu á rua feliz com sua fantasia; mas ao travessá-la sem prestar atenção, foi atropelado por um lotação (tipo de micro-ônibus urbano comum no Rio de Janeiro até a década de 1950), morrendo imediatamente. Ele não pôde brincar aquele tão sonhado Carnaval, mas nos três dias do reinado de Momo seu espírito saía ás ruas junto aos outros garotos, todos com máscaras cobrindo seus rostos. Assim, rezava a tradição que qualquer garoto fantasiado de “Clóvis”, poderia ser seu fantasma brincando o carnaval que não pôde em vida. Por isto os meninos pequenos ficavam tão apavorados, de medo da assombração!

... Então Flávio e Henrique se olharam; riram muito e se deram as mãos na certeza que um deles realmente pode ter brincado com o “Clóvis” no Carnaval carioca de 1980!

FIM.

Obs: vivi no Rio de Janeiro na década de 1970, e apenas uma vez brinquei de “Clóvis”. Se a memória traiu a geografia de Bonsucesso e Higienópolis em algum momento; eu garanto que o roteiro do coração seguiu o rumo certo!

Um comentário:

  1. Adorei a história! Muito bem desenvolvida. Tem uma pegada de suspense, mas também me emocionei.
    Parabéns, Ramon!!!👏👏👏👏

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