quinta-feira, 12 de março de 2020

O CASTELO DO SENHOR MARIANO.


Que sombras são estas
Que não são minhas e nem suas?
Serão sombras do passado
Que se projetam no presente
A me indagar: teremos futuro?
Resignado eu respondo:
Que sequer encontro respostas
Para minhas próprias sombras.
E prossigo a caminhada.




Era inicio de noite e um homem caminhava pela alameda de entrada do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora. Aquele seria seu primeiro dia no trabalho como vigia noturno.
Chamava-se Léo e observava a vetusta edificação se destacando na noite azulada: suas janelas, a textura dos tijolos aparentes, o chafariz em forma de menino-peixe e uma arcada onde havia uma escultura de Vênus muito branca segurando um manto pregueado.
Em instantes Léo chegou ao escritório do museu: uma sala alta com armários e mesas cheias de pastas, papéis, livros, computadores e outras miudezas. Nas paredes, um calendário com imagens de velhas edificações de Juiz de Fora e cartazes de eventos no museu. Ele ouvia as recomendações do chefe: - O trabalho é simples, você deverá fazer a ronda dentro do castelo, sem mexer em nada, e prestar atenção á ruídos e coisas suspeitas; mas, se forem fantasmas, não se preocupe por que são de casa! – riso: - Mas agora sério: qualquer problema, não banque o herói e dê o alarme aos demais funcionários! À meia noite faça a ronda no lado de fora e no porão. Se estiver tudo em ordem, volte ao interior do castelo. Está entendido?
Léo faz sinal positivo com o polegar enquanto o chefe concluía: - Eu estarei por aí. Bom trabalho! Ah,... Tem um lanche ali, se quiser pode pegar. Logo você vai se acostumar com nosso castelo! – ri de leve e sai.
A sós no escritório, Léo apanhou o sanduiche do lanche e enquanto mastigava olhou em torno pensando que sua quitinete caberia naquela sala com folga. O silêncio era quebrado apenas por um rádio sintonizado numa FM com velhos hits. Ele guardou o resto do sanduiche para mais tarde e se recostou numa cadeira estofada escutando a música.
Mais tarde olhou o relógio: era vinte e uma horas, o momento de fazer a primeira ronda no castelo. Com uma lanterna ele foi iluminando o piso de ladrilhos hidráulicos até chegar á um salão com diversas esculturas e mobiliário do tempo do Império: é grande galeria do Museu Mariano Procópio. A luz da lanterna ia revelando detalhes: uma arandela; um brasão; detalhe no quadro “Tiradentes Esquartejado”; três estátuas em gesso de aspecto misterioso; e outras peças do acervo em exposição. Léo achou tudo muito bonito, mas meio assustador pelas sombras que projetavam nas paredes á luz da lanterna.
Então, de súbito pareceu ter ouvido passos como se fossem pés descalços de crianças correndo sobre chão de cimento. Léo era da roça e sabia que gambás produzem este ruído, e supôs que, como havia um bosque lá fora, poderia haver animais entrando no castelo. Uma coisa para relatar ao chefe!
Ainda rondava as salas em busca de vestígios dos gambás quando algo o assustou: o som das badaladas de um relógio. Nada estranho, pois existiam vários relógios antigos pelo castelo. Léo ficou contando-as, e eram doze.  Ele riu pensando que o relógio estaria adiantando, ou atrasado!  
Continuou a ronda até chegar á uma sala contígua á grande galeria onde havia uma coleção de antigos relógios em exposição, muito belos e ricamente trabalhados. Qual deles emitiu as badaladas? Ele começou a observá-los um a um, e era estranho, pois todos estavam parados; mas o som das badaladas viria exatamente dali! Ou não?
Ele abanou a cabeça rindo das próprias divagações porque, com certeza, as badaladas deviam vir de outro lugar e tornou a cruzar a galeria.
Ao atravessá-la, teve a impressão de escutar o som de um violino com as cordas dedilhadas como se fosse um pizzicato. Novamente apontou a lanterna para todos os lados buscando a origem, e viu um besouro voando. Ele riu: mais um intruso do bosque á penetrar no castelo; e algo mais á relatar ao chefe.
Ao seguir ao vestíbulo, onde há uma escadaria, sua lanterna falhou um instante, obrigando-o a sacudi-la para retornar a luz. Neste movimento, esbarrou em um cavalete, quase derrubando uma tela, mas conseguiu segurá-la e acertar a lanterna: era o retrato á óleo de uma dama antiga usando um chapéu negro e trajando vestido decotado enfeitado com plumas. Abaixo havia uma etiqueta indicando ser o retrato de Maria Pardos. Por alto Léo sabia que tratava de uma nora de Mariano Procópio: uma espanhola que tinha sido atriz, que ao chegar á Juiz de Fora cativou o coração do seu filho primogênito e se casaram um tanto a contragosto da família.
Léo fitava o rosto da mulher na pintura, e parecia hipnotizado por aquele olhar firme e enigmático quando escutou passos no salão acima; os mesmos que pareciam pés de crianças. Devia ser os gambás! Sem perder tempo ele subiu a escadaria, disposto a pôr os animais para correr, quando o canto do olho capturou dois vultos á entrada do vestíbulo. Ele parou e se assustou de verdade, pois pareciam duas crianças vestidas de branco, que correram á grande galeria. - Minha Nossa Senhora da Aparecida! - evocou morrendo de medo, petrificado no meio da escadaria sem saber se subia ou descia. Então ouviu risadas na galeria e logo concluiu que aquilo tudo não passaria de uma pegadinha, talvez para botar medo nos novos funcionários. Então desceu os degraus esbravejando que podiam parar com aquela brincadeira sem graça!
Entrou na galeria ainda com mãos trêmulas quando o foco da lanterna se deteve num quadro em exposição onde havia duas crianças vestidas com rendas e babados. Teria ele fixado aquela imagem na mente, e sugestionado pelo ambiente do Museu e suas lendas acabou materializando-as? Pensou.
Então irrompeu uma gargalhada: - Ah, ah, ah, ah! Quanta besteira!
 Pensando ser seu chefe ele correu a lanterna para o lado e iluminou uma figura de capa preta, de costas, que se virou e o encarou com olhos vermelhos brilhando na fronte larga e alva, e disse: - Ora vejam: nós temos sangue novo no castelo esta noite!
Então se ouviu uma voz feminina: - Oh, por favor. Deixe-o em paz!
Léo olhou e a reconheceu de imediato: era Maria Pardos, igual ao retrato. - Como podia ser? – e ela prosseguiu: - É o nosso novo vigia! – suspiro. – O pobre homem ainda não conhece a rotina da casa!
A figura de capa o olhou: - Se quiser eu posso explicar á ele como é!
 – Não o espante! – falou Maria. - Vamos ver se ele dura até o fim desta semana! Oh, mas estou me saindo uma péssima patroa: sou Maria Pardos, dona da casa, embora alguns não gostem disto. E este é Dracull, um amigo de longa data da família!
Leo respondeu: - Isso,... Isso é uma brincadeirinha de halloween, não é? 
Os dois riram e Dracull falou: - Absolutamente! Estamos mais para “Uma noite no Monte Calvo” do que para “Buffy, a caça-vampiros!” – e soltou uma risada. - Mas muito prazer, meu amigo. – falava ainda lhe cortando com aquelas íris negras sobre um fundo avermelhado, e se dirigiu á Maria: - Eu acabei me demorando, o trânsito desta cidade moderna é o inferno na terra! O imperador ainda está aí?
– Ah, mas que pena, o imperador acabou de sair. Por minutos você não o encontrava!
- Que lástima! Mas então, querida Maria, quando teremos novo baile?
- Não sei! Por que perguntas?
- Esqueceu que no ultimo baile você me prometeu uma dança, mas depois me deixou á ver navios?
- Oh! Eu não fiz isto!
- Está esquecida? Fez sim!
Ela olhou para os lados e disse: – Tinha muita gente olhando e não seria de bom tom. Mas podemos remediar isto agora! – levantou sua mão e num estalo de dedos fez surgir uma orquestra de câmara com os músicos vestidos como pajens do século XVIII. Léo ficou boquiaberto.
Iniciaram-se os acordes da valsa “Danúbio Azul” de Strauss. Maria se aproximou de Dracull, que lhe tomou nos braços e começaram a dançar.
Léo olhava os dois rodopiarem ao ritmo da valsa, absolutamente atônito, e ficou mais ainda quando o ambiente foi iluminado por luzes coloridas que giravam enquanto surgiam outros casais, e os reconheceu: eram figuras dos retratos e bustos expostos no grande salão, inclusive as duas crianças do retrato! A música se tornou mais intensa e Maria deixou Dracull, buscando Léo para dançar. Ele resistiu, mas foi inútil e logo estava com seu rosto banhado nas luzes coloridas fitando o olhar de Maria. Era tudo fascinante!
Então, sorrateiro, Dracull surgiu por trás mordendo-o no pescoço!
Léo gritou de susto. Passou sua mão no pescoço e chegou a rodar olhando para os lados. De repente não estava na galeria, mas novamente diante do quadro de Maria Pardos iluminado por sua lanterna.
Ainda com o coração aos pulos ele olhou em torno, e tudo era silêncio e escuridão. Então correu á grande galeria, e não havia ninguém.
Confuso e meio zonzo, Léo voltou ao escritório, desabando na cadeira estofada. Segurou o queixo com as mãos sem entender o que aconteceu, e olhou o sanduiche mordido pela metade. Cheirou-o, fez expressão de asco e atirou-o ao cesto de lixo. 
A noite seguiu tranquila, sem ruídos ou ocorrências estranhas. Então relaxou na cadeira escutando o rádio até espiar o relógio: era meia noite, hora da ronda externa.
Léo abriu a porta metálica e chegou ao pórtico de entrada do Museu.  A luz era lunar e se ouvia apenas o farfalhar de arvores ao vento.
De súbito ele escutou novamente as badaladas do relógio, e eram doze! Depois ouviu ruídos de pés no chão arenoso do pátio e viu um vulto de capa preta de costas, e se assustou temendo ser Dracull, o vampiro. Mas quando o vulto se virou surgiu por trás da gola alta da capa um rosto de barbas brancas, cabelo grisalho partido de lado e olhos azuis que o observou.
Léo só conseguiu sussurrar –... Dom Pedro II?
O imperador continuou a lhe olhar. Então Léo tirou seu boné e lhe faz uma reverência, como um súdito. O imperador retribuiu com um leve meneio de cabeça; pôs uma cartola de seda negra, deu alguns passos no pátio do castelo e entrou numa carruagem etérea puxada por cavalos brancos que se desintegrou no ar.
Ele ainda ficou uns instantes estático e intrigado. Olhou em torno, dando de ombros, colocando seu boné, e se afastou com a lanterna iluminando o caminho.
Ao passar pelo nicho de tijolos aparentes, deu uma olhada na escultura da Vênus branca que segurava um manto pregueado, e continuou sua ronda rumo ao porão do castelo.
Ela o acompanhou com um olhar lascivo, soltou o manto mostrando sua nudez e o seguiu.
A noite estava apenas começando para Léo!

Fim.

Obs. Que me perdoem os historiadores, museólogos e monarquistas, mas abusei das licenças poéticas, com força!

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