Que sombras são estas
Que não são minhas e nem suas?
Serão sombras do passado
Que se projetam no presente
A me indagar: teremos futuro?
Resignado eu respondo:
Que sequer encontro respostas
Para minhas próprias sombras.
E prossigo a caminhada.
Era inicio de noite e um homem caminhava
pela alameda de entrada do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora. Aquele
seria seu primeiro dia no trabalho como vigia noturno.
Chamava-se Léo e observava a vetusta
edificação se destacando na noite azulada: suas janelas, a textura dos tijolos
aparentes, o chafariz em forma de menino-peixe e uma arcada onde havia uma
escultura de Vênus muito branca segurando um manto pregueado.
Em instantes Léo chegou ao escritório do
museu: uma sala alta com armários e mesas cheias de pastas, papéis, livros,
computadores e outras miudezas. Nas paredes, um calendário com imagens de
velhas edificações de Juiz de Fora e cartazes de eventos no museu. Ele ouvia as
recomendações do chefe: - O trabalho é simples, você deverá fazer a ronda dentro
do castelo, sem mexer em nada, e prestar atenção á ruídos e coisas suspeitas;
mas, se forem fantasmas, não se preocupe por que são de casa! – riso: - Mas
agora sério: qualquer problema, não banque o herói e dê o alarme aos demais
funcionários! À meia noite faça a ronda no lado de fora e no porão. Se estiver
tudo em ordem, volte ao interior do castelo. Está entendido?
Léo faz sinal positivo com o polegar
enquanto o chefe concluía: - Eu estarei por aí. Bom trabalho! Ah,... Tem um
lanche ali, se quiser pode pegar. Logo você vai se acostumar com nosso castelo!
– ri de leve e sai.
A sós no escritório, Léo apanhou o
sanduiche do lanche e enquanto mastigava olhou em torno pensando que sua
quitinete caberia naquela sala com folga. O silêncio era quebrado apenas por um
rádio sintonizado numa FM com velhos hits. Ele guardou o resto do sanduiche para
mais tarde e se recostou numa cadeira estofada escutando a música.
Mais tarde olhou o relógio: era vinte e
uma horas, o momento de fazer a primeira ronda no castelo. Com uma lanterna ele
foi iluminando o piso de ladrilhos hidráulicos até chegar á um salão com
diversas esculturas e mobiliário do tempo do Império: é grande galeria do Museu
Mariano Procópio. A luz da lanterna ia revelando detalhes: uma arandela; um
brasão; detalhe no quadro “Tiradentes Esquartejado”; três estátuas em gesso de
aspecto misterioso; e outras peças do acervo em exposição. Léo achou tudo muito
bonito, mas meio assustador pelas sombras que projetavam nas paredes á luz da
lanterna.
Então, de súbito pareceu ter ouvido
passos como se fossem pés descalços de crianças correndo sobre chão de cimento.
Léo era da roça e sabia que gambás produzem este ruído, e supôs que, como havia
um bosque lá fora, poderia haver animais entrando no castelo. Uma coisa para
relatar ao chefe!
Ainda rondava as salas em busca de vestígios
dos gambás quando algo o assustou: o som das badaladas de um relógio. Nada
estranho, pois existiam vários relógios antigos pelo castelo. Léo ficou
contando-as, e eram doze. Ele riu
pensando que o relógio estaria adiantando, ou atrasado!
Continuou a ronda até chegar á uma sala
contígua á grande galeria onde havia uma coleção de antigos relógios em
exposição, muito belos e ricamente trabalhados. Qual deles emitiu as badaladas?
Ele começou a observá-los um a um, e era estranho, pois todos estavam parados;
mas o som das badaladas viria exatamente dali! Ou não?
Ele abanou a cabeça rindo das próprias
divagações porque, com certeza, as badaladas deviam vir de outro lugar e tornou
a cruzar a galeria.
Ao atravessá-la, teve a impressão de
escutar o som de um violino com as cordas dedilhadas como se fosse um pizzicato.
Novamente apontou a lanterna para todos os lados buscando a origem, e viu um
besouro voando. Ele riu: mais um intruso do bosque á penetrar no castelo; e
algo mais á relatar ao chefe.
Ao seguir ao vestíbulo, onde há uma
escadaria, sua lanterna falhou um instante, obrigando-o a sacudi-la para
retornar a luz. Neste movimento, esbarrou em um cavalete, quase derrubando uma
tela, mas conseguiu segurá-la e acertar a lanterna: era o retrato á óleo de uma
dama antiga usando um chapéu negro e trajando vestido decotado enfeitado com
plumas. Abaixo havia uma etiqueta indicando ser o retrato de Maria Pardos. Por
alto Léo sabia que tratava de uma nora de Mariano Procópio: uma espanhola que
tinha sido atriz, que ao chegar á Juiz de Fora cativou o coração do seu filho
primogênito e se casaram um tanto a contragosto da família.
Léo fitava o rosto da mulher na pintura,
e parecia hipnotizado por aquele olhar firme e enigmático quando escutou passos
no salão acima; os mesmos que pareciam pés de crianças. Devia ser os gambás!
Sem perder tempo ele subiu a escadaria, disposto a pôr os animais para correr,
quando o canto do olho capturou dois vultos á entrada do vestíbulo. Ele parou e
se assustou de verdade, pois pareciam duas crianças vestidas de branco, que
correram á grande galeria. - Minha Nossa Senhora da Aparecida! - evocou
morrendo de medo, petrificado no meio da escadaria sem saber se subia ou
descia. Então ouviu risadas na galeria e logo concluiu que aquilo tudo não
passaria de uma pegadinha, talvez para botar medo nos novos funcionários. Então
desceu os degraus esbravejando que podiam parar com aquela brincadeira sem graça!
Entrou na galeria ainda com mãos
trêmulas quando o foco da lanterna se deteve num quadro em exposição onde havia
duas crianças vestidas com rendas e babados. Teria ele fixado aquela imagem na
mente, e sugestionado pelo ambiente do Museu e suas lendas acabou
materializando-as? Pensou.
Então irrompeu uma gargalhada: - Ah, ah,
ah, ah! Quanta besteira!
Pensando ser seu chefe ele correu a lanterna para
o lado e iluminou uma figura de capa preta, de costas, que se virou e o encarou
com olhos vermelhos brilhando na fronte larga e alva, e disse: - Ora vejam: nós
temos sangue novo no castelo esta noite!
Então se ouviu uma voz feminina: - Oh,
por favor. Deixe-o em paz!
Léo olhou e a reconheceu de imediato:
era Maria Pardos, igual ao retrato. - Como podia ser? – e ela prosseguiu: - É o
nosso novo vigia! – suspiro. – O pobre homem ainda não conhece a rotina da
casa!
A figura de capa o olhou: - Se quiser eu
posso explicar á ele como é!
–
Não o espante! – falou Maria. - Vamos ver se ele dura até o fim desta semana!
Oh, mas estou me saindo uma péssima patroa: sou Maria Pardos, dona da casa,
embora alguns não gostem disto. E este é Dracull, um amigo de longa data da
família!
Leo respondeu: - Isso,... Isso é uma
brincadeirinha de halloween, não é?
Os dois riram e Dracull falou: - Absolutamente!
Estamos mais para “Uma noite no Monte Calvo” do que para “Buffy, a
caça-vampiros!” – e soltou uma risada. - Mas muito prazer, meu amigo. – falava
ainda lhe cortando com aquelas íris negras sobre um fundo avermelhado, e se
dirigiu á Maria: - Eu acabei me demorando, o trânsito desta cidade moderna é o
inferno na terra! O imperador ainda está aí?
– Ah, mas que pena, o imperador acabou
de sair. Por minutos você não o encontrava!
- Que lástima! Mas então, querida Maria,
quando teremos novo baile?
- Não sei! Por que perguntas?
- Esqueceu que no ultimo baile você me
prometeu uma dança, mas depois me deixou á ver navios?
- Oh! Eu não fiz isto!
- Está esquecida? Fez sim!
Ela olhou para os lados e disse: – Tinha
muita gente olhando e não seria de bom tom. Mas podemos remediar isto agora! –
levantou sua mão e num estalo de dedos fez surgir uma orquestra de câmara com
os músicos vestidos como pajens do século XVIII. Léo ficou boquiaberto.
Iniciaram-se os acordes da valsa
“Danúbio Azul” de Strauss. Maria se aproximou de Dracull, que lhe tomou nos
braços e começaram a dançar.
Léo olhava os dois rodopiarem ao ritmo
da valsa, absolutamente atônito, e ficou mais ainda quando o ambiente foi
iluminado por luzes coloridas que giravam enquanto surgiam outros casais, e os
reconheceu: eram figuras dos retratos e bustos expostos no grande salão,
inclusive as duas crianças do retrato! A música se tornou mais intensa e Maria
deixou Dracull, buscando Léo para dançar. Ele resistiu, mas foi inútil e logo
estava com seu rosto banhado nas luzes coloridas fitando o olhar de Maria. Era
tudo fascinante!
Então, sorrateiro, Dracull surgiu por
trás mordendo-o no pescoço!
Léo gritou de susto. Passou sua mão no
pescoço e chegou a rodar olhando para os lados. De repente não estava na
galeria, mas novamente diante do quadro de Maria Pardos iluminado por sua
lanterna.
Ainda com o coração aos pulos ele olhou
em torno, e tudo era silêncio e escuridão. Então correu á grande galeria, e não
havia ninguém.
Confuso e meio zonzo, Léo voltou ao
escritório, desabando na cadeira estofada. Segurou o queixo com as mãos sem
entender o que aconteceu, e olhou o sanduiche mordido pela metade. Cheirou-o, fez
expressão de asco e atirou-o ao cesto de lixo.
A noite seguiu tranquila, sem ruídos ou
ocorrências estranhas. Então relaxou na cadeira escutando o rádio até espiar o
relógio: era meia noite, hora da ronda externa.
Léo abriu a porta metálica e chegou ao
pórtico de entrada do Museu. A luz era
lunar e se ouvia apenas o farfalhar de arvores ao vento.
De súbito ele escutou novamente as badaladas
do relógio, e eram doze! Depois ouviu ruídos de pés no chão arenoso do pátio e
viu um vulto de capa preta de costas, e se assustou temendo ser Dracull, o
vampiro. Mas quando o vulto se virou surgiu por trás da gola alta da capa um
rosto de barbas brancas, cabelo grisalho partido de lado e olhos azuis que o
observou.
Léo só conseguiu sussurrar –... Dom
Pedro II?
O imperador continuou a lhe olhar. Então
Léo tirou seu boné e lhe faz uma reverência, como um súdito. O imperador
retribuiu com um leve meneio de cabeça; pôs uma cartola de seda negra, deu
alguns passos no pátio do castelo e entrou numa carruagem etérea puxada por
cavalos brancos que se desintegrou no ar.
Ele ainda ficou uns instantes estático e
intrigado. Olhou em torno, dando de ombros, colocando seu boné, e se afastou
com a lanterna iluminando o caminho.
Ao passar pelo nicho de tijolos
aparentes, deu uma olhada na escultura da Vênus branca que segurava um manto
pregueado, e continuou sua ronda rumo ao porão do castelo.
Ela o acompanhou com um olhar lascivo,
soltou o manto mostrando sua nudez e o seguiu.
A noite estava apenas começando para Léo!
Fim.
Obs.
Que me perdoem os historiadores, museólogos e monarquistas, mas abusei das
licenças poéticas, com força!
Simplesmente, amei!!!!
ResponderExcluirNunca mais verei o Museu da mesma forma.