domingo, 1 de março de 2020

MADAME RAYMONDA.



Naqueles anos dourados, quando o presidente Kubitscheck iniciava seu mandato com a bandeira do progresso e o Sputnik dava suas primeiras voltas á terra, o chique era fazer roupas nas modistas como eram designadas as costureiras. O ateliê de Madame Raymonda ficava no terceiro andar de um distinto prédio comercial no Centro de Juiz de Fora, e ela acabava marcar a bainha num vestido com a delicadeza de um violinista, elogiando: – Que tecido maravilhoso; a senhora teve muito bom gosto! – a freguesa sorriu. Na sala de espera, havia mais duas senhoras aguardando-a, indicando á prosperidade do seu negócio.
 Sua residência ficava numa rua sem saída ao final da via. Ela não possuía vizinhos próximos, o que lhe garantia muita privacidade. Aliás, esta era uma das características de Madame Raymonda: extrema descrição de sua vida particular. Sabia-se apenas que ela vivia sozinha naquela bela casa em estilo neocolonial com muros altos e uma grande porta de garagem em madeira pintada de verde musgo.
No lado oposto havia uma casa modesta com jardim frontal e varanda. Ali vivia uma adolescente de quatorze anos chamada Sofia, a mais nova de três irmãs.  Sua saída á escola coincidia com a de Madame Raymonda ao ateliê, e ela sempre observava seus trajes que pareciam diretamente vindos das telas do cinema ou dos figurinos de Alceu Penna nas paginas da revista “O Cruzeiro”. E ainda havia aquele cabelo negro, digno das propagandas dos xampus “Silk”, que lhe caía aos ombros em ondas perfeitamente simétricas. Tão diferente das suas irmãs, sempre metidas em vestidos fora de moda e de cabelos ressecados emaranhados em grampos e lenços.
Um dia, Sofia folheava um jornal quando viu anúncio do Ateliê de Madame Raymonda com o desenho de um vestido assinado pela própria. Então veio a curiosidade de conhecê-lo.
A garota inventou compra de material escolar para ir á cidade, e foi fácil encontrar o ateliê no prédio na Rua Halfeld, pois havia um manequim de corpo inteiro com uma das criações de Madame Raymonda á recepção. Seus olhos captavam os detalhes daquela saleta que parecia um cenário de filme; abajures, tapeçarias, um grande espelho com moldura dourada e um sofá em couro vermelho onde uma senhora aguardava.
 Sofia não entrou, apenas ficou á porta observando, e em instantes, outra senhora muito elegante e perfumada saiu com um embrulho ás mãos.  - Tudo tão lindo! – pensou; mas como não daria para ficar contemplando aquele cenário de sonhos o resto do dia, Sofia teve que voltar para casa.
Uma noite ela saiu á varanda para ver os vagalumes na primavera, quando ouviu o ronco de um motor; era um automóvel azul com capota preta que parou diante da casa de Madame Raymonda. Um homem de terno e chapéu saiu do carro abriu a porta da garagem entrou com o veículo e tornou a fechá-la. Isto a deixou intrigada, pois, até onde se sabia Madame Raymonda não era casada! Mas deu de ombros e voltou aos vagalumes.
As idas ao ateliê se tornaram constantes á qualquer saída á cidade. Numa tarde, a recepção estava vazia e Sofia entrou sentindo o leve perfume de lavanda no ar e vendo sua imagem refletir no belíssimo espelho. Subitamente a porta do ateliê abriu e Madame Raymonda espiou a saleta: – Olá, você está me esperando? – ela respondeu: -... Não. Estava só olhando! – e foi saindo ao que a modista perguntou: - Espere! Eu conheço você; é minha vizinha de frente! – e sorriu: - Eu vejo você todos os dias seguindo á escola quando venho trabalhar, e percebo que me olha sempre; por quê?
- Eu acho a senhora muito elegante!
Ela riu: - Obrigada querida, é uma obrigação do meu ofício! – e a olhou: - É uma moça! Quantos anos você tem?
- Quatorze anos. Vou fazer quinze daqui dois meses!
- Ah, que coisa linda! Vai ter festa?
- Só no colégio para as meninas que farão quinze anos este semestre. Mas eu não irei!
- Por que não?
- Eu não tenho roupa para ir e não quero passar vergonha!    
Raymonda á olhou um instante, e falou com o dedo indicador nos lábios: - Venha comigo, querida! - a pegou pela mão e entraram no ateliê. Ela buscou um cabide com um vestido e o posicionou no corpo de Sofia, dizendo: - Creio que vai servir! Mude de roupa no provador. – ela retrucou: - Não posso ficar com esse vestido, não teremos como pagar! – A modista respondeu: - Não falei nada em pagamento! Este vestido foi encomenda de uma freguesa que, depois de pronto decidiu fazer outro modelo para a filha! – deu de ombros: - Pagou e não o levou. Hoje nem serve mais na garota, e é melhor que seja usado do que mofar aqui, não é? – e já foi buscando fita métrica e alfinetes para os ajustes. Era um vestido em cetim de seda rosa com bordados no corpete e saia rodada tipo “guarda chuva” com anágua em tafetá.
Sofia sorriu e voltou para casa radiante.
Assim que entrou ela contou para os pais. Dona Neide ficou contente, mas ressalvou: - Faremos questão de pagar pelo vestido!
Oswaldo, seu pai confirmou: - Evidente! Ah, vou gostar muito de dançar a valsa com minha filha caçula!
Agnes, sua irmã dez anos mais velha protestou: - Essa é boa! Quando eu fiz quinze anos só teve uma festinha roscofe aqui em casa e nada de vestido novo!
Dona Neide reagiu: - Aqueles eram outros tempos Agnes; não estávamos em condições de gastar e fizemos o melhor possível!
 Ela respondeu irritadiça: - Sei! Mas mesmo assim estou achando estranha esta mulher querer dar um vestido á Sofia! Por acaso você foi lá pedir?
- Não! Ela me ofereceu por que quis!
- Estão vendo? – abanou a cabeça: - Acho que não devemos aceitar esse presente sem mais nem menos!
- Não! – protestou Sofia: - Eu quero o vestido!
- Cala a boca, sua pirralha, que você não sabe de nada da vida!       
 Dona Neide a cortou: - Chega Agnes, pare de implicar com a vizinha! Amanhã mesmo eu irei ao ateliê dela para ver melhor esse negócio do vestido.
 - Vocês são muito bobos; essa mulher engana todo mundo, mas a mim, não! – e saiu pisando duro.

 Sem se dar por vencida, Agnes começou a buscar aliados na sua cruzada contra Raymonda. Primeiro no pai, que a princípio gostou da ideia de dançar valsas com a filha caçula no baile, mas deu certa razão a filha mais velha. A irmã do meio, Mariana, foi fácil dobrar porque sempre acompanhava as ideias de Agnes. Em pouco tempo a campanha de antipatia á Raymonda tomava a vizinhança, pois a achavam esnobe e uma costureira careira demais para seus bolsos. Começou circular fofocas sobre a sua vida pessoal: uma mulher solteira que vivia sozinha numa casa de luxo? Uma vizinha reclamou que ela se insinuava aos homens ao caminhar na rua, e mais de uma vez apanhou o marido debruçado na janela vendo-a passar. Uma manhã, o acaso se encarregou de criar mais factoides, pois Raymonda seguia ao trabalho a pé carregando uma sacola que arrebentou a alça. Um vizinho (homem casado) ajudou-a, e isto bastou para insurgir uma onda de veneno contra a destruidora de lares, que sempre retornava á casa tarde da noite num carro de luxo, um Thunderbird conversível, com um homem.
Uma madrugada alguém atirou uma pedra na janela da casa de Raymonda, que apenas mandou trocar o vidro sem emitir comentários.
 Agnes insistia para a mãe recusar o presente, mas Dona Neide se mostrava irredutível: Sofia teria sua noite de debutante!

Numa tarde a garota estava na sala estudando e escutou Agnes conversando com as vizinhas e planejando uma espécie de emboscada para Raymonda á porta de sua casa quando retornasse de carro. Elas se colocariam diante da porta da garagem, impedindo-os de entrar, para revelar a identidade do homem misterioso, certamente o amante que bancava sua vida de luxo, e devia ser um homem casado!
Sofia se assustou e correu ao ateliê para alertá-la.
Raymonda ouviu tudo em silêncio, apenas abanando a cabeça em desaprovação. Ao final, Sofia falou: - Elas viram a senhora chegando á sua casa de carro, com um homem,... Eu também vi esse homem, mas acho que ninguém tem nada com isto!... – ela interrompeu-a, e disse. – Sim, mas as pessoas pensam o contrário! – apanhou um embrulho amarelo com laço rosa: - Este é o seu vestido, querida; leve-o! E não se preocupe comigo. Certas coisas são inevitáveis! – Sofia não compreendeu bem aquelas palavras, mas obedeceu.

Passava das 21hs quando o Thunderbird azul e preto chegava á entrada da garagem e foi imediatamente detido pelas mulheres que fecharam sua passagem. O homem de chapéu saiu e perguntou: - O que está acontecendo por aqui? – Agnes respondeu: - Nada! Só estamos preocupadas com a reputação da nossa vizinhança! – ele retrucou: - É mesmo? Podem me explicar? – uma vizinha espiou dentro do carro e falou: - A tal da Raymonda nem veio junto! Mandou o homem dela para nos afrontar! 
O homem riu e disse: - Não! Ela não mandou homem nenhum! – e tirou seu chapéu, revelando seus cabelos negros e ondulados lhe caindo nos ombros. – Eu sou o homem, e vim de peito aberto para lhes mostrar o que sou: apenas uma mulher que vive e pensa diferente! – as mulheres fizeram “Ooooh” em uníssono, algumas se benzendo enquanto Agnes gritou. – Eu não falei que ela era uma esquisita? Uma mulher que se veste de homem e certamente deve gostar de mulheres. Isto é uma aberração que afronta á Deus!
 Raymonda chegou perto e a desafiou: - Eu sei do que eu gosto, e você? – riu. – Tu não me enganas nem um minuto, querida.  E se eu me encostar á você agora?... O-ho! Aposto que vai gostar!
Furiosa Agnes se afastou, apanhou uma pedra e atirou-a, ferindo Raymonda na testa. Outras mulheres fizeram o mesmo, obrigando-a buscar refúgio dentro de casa, que foi apedrejada, assim como seu carro. Chamaram a policia, e isto acabou sendo o estopim do escândalo da modista que se vestia de homem á noite para beber nos bares e frequentar cabarés na parte baixa da cidade, como afirmaram várias testemunhas. Até seu ateliê foi vandalizado.
Era o fim de Madame Raymonda que não teve alternativa, senão deixar Juiz de Fora.
 Da varanda da casa Sofia espiava o Thunderbird azul repleto de arranhões na lataria levando-a embora quando Agnes chegou triunfante: - Depravados como esta aí não podem viver perto de pessoas decentes! – atirou o pacote amarelo ao chão: o vestido de Sofia estava todo retalhado á tesouradas: - Ás vezes isto ainda serve como estopa! – falou com ar de deboche. Furiosa, Sofia voou em Agnes, puxando-lhe o cabelo e as duas se engalfinharam. Dona Neide chegou para apartá-las: - Chega, parem com isto!
- Olha o que ela fez mãe! – falou Sofia chorando e mostrando os trapos.
- Essa garota boba ficou indo no antro daquela esquisita todo dia mãe! – bradou Agnes apontando-lhe o dedo. – Vai ver que aconteciam coisas lá que a gente nem sabia!
Ao ouvir isto a mãe lhe deu dois bofetões no rosto: - Cala essa boca sua burra! – sacudindo-a: - A gente tem é que torcer para esse veneno não se voltar contra nós! – e arrastou-a para dentro de casa debaixo de tapas.
Sofia ficou chorando e segurado os retalhos do vestido junto ao peito enquanto Mariana observava de longe.
Mas Dona Neide estava certa. Inconsequente, Mariana contou ás colegas de colégio que sua irmã frequentava o ateliê de Madame Raymonda todos os dias, e tinha ganhado um vestido novo.
Numa manhã Sofia chegava ao colégio e seus colegas foram se afastando com cochichos e risinhos: - É esta aí mãe! – ouviu alguém falar, ao que a mãe respondeu: - Não quero que você ande com ela!
No recreio Sofia acabou brigando com uma colega. Dona Neide foi chamada á secretaria e recebeu repreensões por ter permitido que a filha frequentasse e até ganhasse presentes de uma pervertida.
Os jornais viram uma chance de espichar a história, e saiu uma matéria sobre o escândalo da garota seduzida pela costureira lésbica, sem citar nomes, mas todos sabiam que era Sofia. Até Oswaldo teve problemas no trabalho por conta de comentários maldosos de colegas e do patrão. A família foi assediada pela imprensa e estigmatizada por vizinhos e amigos a tal ponto que não tiveram outra coisa a fazer senão se mudarem de Juiz de Fora. Agnes se desligou da família permanecendo na cidade e foi viver sozinha num bairro afastado na periferia.
Foi um trauma para Sofia, que a partir daquele momento entendeu que os chamados “anos dourados” eram apenas folheados á ouro numa camada tão fina, que bastava um leve risco para rompê-la mostrando sua base em metal barato, corroído de preconceitos.

 Passaram-se muitos anos, décadas, e Sofia vivia no Rio de Janeiro. Tornou-se uma advogada especialista em questões de intolerância racial ou de gênero. Era divorciada e tinha dois filhos. Mariana continuou sendo a “maria-vai-com-as-outras” de sempre. Agnes não se casou, e entrava e saía das mais variadas religiões e seitas de todos os matizes em busca algo que nunca encontrou. As três irmãs se encontravam apenas nas festas de fim de ano onde mantinham atitudes amistosas para não aborrecer os pais idosos. Ainda havia muitas cicatrizes!
Sofia nunca mais ouviu falar de Madame Raymonda. Procurou-a nas redes sociais, mas como não sabia se aquele era seu nome de fato ou um pseudônimo, suas pesquisas nunca chegavam á uma resposta coesa. Mesmo depois de tantos anos sentia-se culpada pelo ocorrido. Talvez se nunca tivesse dado vazão á curiosidade em torno da modista, se aproximando, nada daquilo tivesse acontecido!
Uma manhã ela folheava o jornal quando a encontrou sem querer, nos obituários: “Raimunda Einsenman (Madame Raymonda)”. O sepultamento ocorreria naquela mesma manhã no Cemitério do Caju, zona portuária do Rio. Sofia nem perdeu tempo; pegou as chaves do carro e seguiu á capela onde o corpo estava sendo velado.
Ao chegar, entrou com cerimônia, como que pedindo perdão por algo tão distante quanto presente. Aproximou-se da urna e hesitou um pouco em fitar a face do cadáver; até que a olhou. Era ela mesma, mais enrugada, porém com a expressão plácida da sua memória. O que dizer? Fazer uma oração? Pensou. Havia um homem de cabelos grisalhos ao lado do caixão, que Sofia ouviu se apresentar como o filho de Madame Raymonda. Mais uma vez a curiosidade tomou as rédeas, e Sofia se aproximou: - Com licença,... – ele se virou com olhos vermelhos: - Sim?
Ela o cumprimentou: - Meus sentimentos. Eu a conhecia,... Há muito tempo! Era sua mãe?
- Sim! Mãe adotiva. – ele sorriu e falou com sotaque italiano: - Eu tive duas mães, e agora estão as duas no céu. – aproximou-se. – Era um casal homoafetivo como se diz hoje... Mas foi bem mais que afeto: foi um lar com muito amor! – suspirou. – Vivíamos na Toscana, mas mamãe fez questão que a trouxesse de volta. Ela queria morrer no solo brasileiro! Ah,... Mamãe foi grande em tudo! Era estilista, sabia que trabalhou no ateliê de Gianni Versace? – alguém o chamou: -... Acho que é a hora do sepultamento. Com licença,... Como é o nome da senhora?
- Sofia
- Oh,... – olhou para frente e pensou um pouco: - Mamãe falava de uma menina chamada Sofia; era a senhora? – mas ao se virar, ela já havia se retirado.

Ao chegar á sua casa, Sofia foi direto ao armário, buscando uma caixa onde guardou os retalhos do vestido de cetim rosa por todos aqueles anos; e suspirou aliviada. Então apanhou uma sacola de lixo, pois finalmente poderia sepultar sua culpa junto á aqueles trapos.

FIM.

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