Era
noite em Roma e a luz acesa naquele apartamento indicava que haveria atividade
literária pela madrugada.
No
tapete próximo á um cesto de lixo repousavam bolas de papel amassado com
fragmentos de poemas abortados. O poeta apoiava a testa na mão como num
exercício de adivinhação tentando antever os versos que lhe escapavam
totalmente e espiava a escuridão do céu por trás de uma cortina de veludo: quem
sabe as estrofes perdidas não estariam nas dobras daquele tecido?
Era
inútil; sentia-se possuído por uma ansiedade sem razão quando ouviu uma voz
etérea: - Sem sono Murilo?
-
Sim. As palavras represadas parecem travar uma luta para se entenderem antes de
saírem!
Riso:
- Tanta coisa para dizer que está sem inspiração?
-
Ora Ismael, por acaso você nunca teve momentos em que os pincéis não obedeciam
ao seu comando?
-
Sim, claro. Se bem que ás vezes parecia-me que meus pincéis me comandavam e eu
é que os obedecia.
Alguém
chegou á porta: - Murilo?
-
Ah,... Sim Maria?
-
Tu estás á falar sozinho?
-
Oh, - riso. – Apenas confabulando com meus botões. Vai deitar?
-
Sim, estou um pouco cansada. Tu não vens?
-
Ainda não. Vou teimar mais um pouco com a pena!
-
Está bem, mas não se demore! – aproximou-se lhe beijando a testa, e ainda deu
uma última espiada antes de seguir ao quarto.
-
Tua esposa vai acabar te colocando num sanatório de doidos de tanto te ver
falando sozinho!
Murilo
fechou a porta e respondeu: - Eu não estou falando ás paredes. Você está aqui
Ismael!
-
Eu estou mesmo? Se eu me colocar diante do espelho, aparecerá meu reflexo?
Vamos ver:... Não apareceu nada! Então se não sou um vampiro serei o quê
Murilo?
-
Pare com isto!
-
Responda-me! Tua esposa sente que tem mais alguém na casa, mas não vê! Este
edifício tem mais de trezentos anos, assim a Dona Maria da Saudade pensa que
aqui há fantasmas e não está errada por que é exatamente isto que eu sou!
-
Por favor, Ismael; não se ponha como um clichê numa trama de terror barato!
-
Você quer saber mesmo o que é ser um clichê de terror? É ser fantasma em Roma e
ter que conviver com mais de dois mil anos de história! Você sabia que neste
mesmo prédio tem um fantasma no porão? Uma mulher que pensa estarmos ainda nos
tempos da Renascença, e a julgar pelo jeito que me olha devia ser uma cortesã!
-
Você está de galhofas!
-
Pergunta então para tua esposa, que morre de medo de descer ao porão! Os restos
mortais da cortesã estão enterrados no subsolo e ela nem sabe que morreu. E
ainda há os fantasmas ilustres como os Bórgia, que assombram o Vaticano; Nero,
que anda pela Via Appia com uma tocha na mão, perseguido por Agripina, sua
descabelada mãe; e ainda um mais recente: Mussolini que ainda pensa ser o Duce
e faz discursos que ninguém escuta,... Quero dizer, ninguém do mundo dos vivos,
porque eu os escuto e posso lhe garantir que são insuportáveis! De vez em
quando ele ainda me arrasta á procura por Clareta, sua amante, mas esta foi
mais esperta e já se foi. Em Paris é pior ainda, porque há uma legião de
guilhotinados na Revolução Francesa em busca de suas cabeças que pensam que eu
sei á onde elas estão!
-
Pare com este falatório Ismael, não vê que estou angustiado? Mesmo tendo poemas
inteiros á mente, eu não consigo colocá-los no papel!
-
E eu com isto?
Murilo
se aborreceu: - Ora essa! Estou colocando minha angústia para você, e recebo
este desdém?
-
Pois eu digo o mesmo. Acabei de lhe expressar minha própria aflição e você fez
ouvidos moucos! Ah sim; é o grande poeta Murilo Mendes em crise de inspiração
buscando o bom e velho Ismael Nery como interlocutor ideal: o hóspede perfeito
que não suja a louça e nem a roupa de cama, e é só chamar que ele atende
prontamente!
– O que está acontecendo Ismael? Você nunca
falou assim comigo.
-
Eu falei sim, muitas e muitas vezes durante esses 27 anos. Falei desta
existência errática seguindo por corredores repletos de histórias engastadas em
cada degrau de escada, umbral de porta, jardim, campo ou qualquer lugar por
onde vidas se passaram. Falei dos muitos fantasmas que encontro, todos os dias,
presos á própria existência, melhor dizer inexistência sem ter a consciência
que sua vida terrena acabou; a diferença é que eu sei que morri e aqui não é
mais o meu lugar! – suspiro: - Mesmo depois de tanto tempo, você ainda não se
conformou com a minha morte. Recordo-me
do escândalo que fez no meu velório, tanto que o Pedro Nava queria te dar um
“gardenal” para te acalmar!
-
Não foi tanto escândalo, o Nava exagerou. Eu estava expressando minha dor pela
perda de um grande amigo! – ergueu as mãos. – Como se conformar diante de
tamanha injustiça do destino? Você era jovem, apenas 33 anos, forte, atlético e
certamente Ismael Nery viria a ser um dos maiores e mais talentosos pintores
que o Brasil conheceria. E isto ainda seria pouco porque você ganharia o mundo!
-
Sim, isto poderia acontecer, mas nunca saberemos.
-
Eu sabia! – respondeu. – Eu via o teu futuro tão claro como um dia de sol!
-
Mas que bela lembrança! – falou Ismael. – Foi numa noite de lua após um dia
ensolarado que nós entramos para a confraria dos magos, em Paris, lembra quem
nos levou? Picasso, que depois ficou meio enciumado porque o mestre Duchamp
falou que você era o discípulo mais promissor entre os iniciantes!
-
Realmente ele ficou meio bicudo comigo uns tempos e,... Mas,... Ora essa, para
quê lembrar-se disto? Não faço mais parte de nenhuma confraria de bruxos,
aliás, hoje sou católico apostólico, esqueceu?
-
Então porque você, que se diz tão circunspeto na sua fé católica, conversa com
um fantasma desde o dia 6 de abril de 1934? Não me parece atitude de um
católico apostólico!
-
Uma coisa não tem nada com a outra, Ismael.
Sua morte só me fez ver o quanto era equivocada minha participação
naqueles rituais pagãos!
-
Porque, Murilo?
-
Porque a magia nos enganou ao não te resguardar da morte!
-
Eu estava tuberculoso, e o que você esperava da magia, uma ressurreição?
-
Se quer saber Ismael: sim! Eu esperava que a magia tivesse força suficiente
para reverter a sua doença ou te curar!
-
Mas como isto não ocorreu, porque magia não é milagre e eu bati as botas, você
a renegou e se converteu ao catolicismo mais fervoroso possível, mas continua á
se utilizar desta mesma magia para me prender á terra, transformando-me num
fantasma refém do seu desejo em ter minha companhia!
-
Você está dizendo que te seguro ao meu lado por egoísmo Ismael? Evidente que
não!
-
Por que me mantém aqui então? – Murilo ficou sem resposta e Ismael prosseguiu:
- Eu sei a razão: é porque lá no fundo você continua a ser o mesmo aprendiz de
mago que não acreditava na existência de algo além do que há na terra! Você era
ateu, e assim continuou!
-
Que absurdo! Eu acredito em Cristo e no Evangelho!
-
Mas não acredita na vida eterna que a fé cristã prega! É por isto que me mantém
preso á este mundo através da magia por que tem medo que eu desapareça para
sempre. Não seria esta a contradição que vem lhe afligindo há anos?
Murilo
abaixou a cabeça e perguntou: - Isto é verdade. Está tão evidente assim?
-
Não. Você dissimula bem para o público e até na sua poesia, mas não consegue
fingir para si mesmo e daqui á pouco isto vai contaminar sua própria arte; vai
ouvindo!
-
Ah Ismael; entenda porque te seguro aqui!... Sinto-me perdido e solitário!
-
Por favor, Murilo, você é um poeta como poucos, e se ás vezes as palavras não
vêm á pena com facilidade é porque não é assim que funciona. Ou pensas que para
um pintor não é deste mesmo modo também? Não é um guia que nos incorpora como
num ritual de espiritismo, somos nós mesmos diante do desafio da arte!
Ele
riu irônico e disse: - Puxa vida, Ismael, você é um gênio, e disse-me algo que
nunca imaginei na vida! – falava arremedando-o. - Então, o que o meu guia
sugere?
-
Apesar do deboche embutido neste “gênio”, eu sugiro que você pare com estas
suscetibilidades tolas se acostume com a solidão inerente á produção artística
por que você é bem maior do que isto. E pense seriamente em retornar á
confraria! Lá terá apoio.
-
Como vou fazer isto? Eu não posso ser católico ao meio dia, e mago á meia
noite! Lembre-se que “não se pode servir á dois senhores”!
-
Pois então se lembre de que “a casa do Senhor tem muitas moradas”, e não está
escrito em nenhum lugar que você precise ocupar apenas uma delas. E lembre-se
também que para brasileiros como nós, comungar-se á missa ás seis da manhã e
depois ir á cartomante á seis da tarde é a coisa mais normal do mundo! – riso.
- Acho que a dicotomia faz parte da nossa cultura.
-
Sempre o galhofeiro, mas faz sentido. – após um silêncio perscrutador, Murilo
perguntou: - Você quer mesmo ir embora, é sério?
-
Sim! Eu estou muito cansado desta existência sem essência. E mais uma noite
ouvindo os discursos do Mussolini, acho que vou virar um poltergeist!
-
Um o quê?
-
Espírito zombeteiro como se diz no Brasil! E então?
Ele
tomou coragem e disse: - Está bem, querido amigo Ismael Nery: se é isto que
você quer, eu ficarei com muita saudade, mas continuarás comigo para sempre na
memória e no coração,... A partir deste momento você está livre!
Após
uns minutos, Murilo olhou em torno e era tudo silêncio. – Ismael? – ainda
chamou uma vez, sem resposta. Então ele chorou.
Maria
ouviu e foi acudi-lo: - Ai meu Jesus, o que aconteceu, por que estás a chorar?
-
Nada não,... Venha aqui e me abrace, sem perguntas.
Ela
o abraçou enquanto ele chorava copiosamente.
A
partida de Ismael foi um duro golpe para Murilo, mas suas palavras ajudaram-no
a repensar sua fé. Nos dias e meses seguintes, a rotina da missa ganhava
contornos mais místicos como se reencontrasse seu amigo no recinto sagrado do
tempo.
Num
desses retornos da missa, Murilo sentou-se adiante de sua escrivaninha e sua
mão, parafraseando Ismael, pareceu tomar o comando das palavras que fluíram
numa apaixonada torrente de versos.
Era o meio da tarde e a ideia de uma nova obra
começava a tomar corpo. Sentia-se exausto, mas feliz. No entanto, algo faltava.
De olhos fechados Murilo se preparou para uma decisão, e então se levantou
seguindo ao porão do apartamento em busca de mais um resgate. No recinto
iluminado por uma lâmpada amarelada, chegou a sentir a presença da cortesã
citada pelo amigo enquanto apanhava uma canastra escondida atrás de uma fileira
de livros. Abriu-a com cerimônia, e lá estava seu antigo manto de mago
embrulhado num papel de seda. Ao lado, o manto de seu amigo Ismael, ao qual
Murilo tocou com saudade e gratidão.
Maria
estava lendo uma revista quando Murilo se colocou á porta. Ela o olhou: -
Escreveste muito?
Um
tanto sem jeito, ele respondeu: - Sim!... Acredito que o jejum de versos
acabou-se! Mas eu preciso,...
Ela
o cortou: - Que maravilha que tua inspiração está de volta! E que estranho
manto preto é este que trazes ao braço?
-
Ah,... É apenas um velho ponche que vou mandar á lavanderia!
-
Ótimo! Mas o que tu ias me falar e te interrompi?
Ele
achou mais prudente prepará-la antes de revelar sua incursão na magia, pois ela
poderia ficar assustada. E respondeu: – Eu ia dizer que preciso encontrar-me
com meu editor em Paris amanhã de manhã, e quero viajar ainda hoje.
-
Quer que eu o acompanhe?
-
Não há necessidade, Maria, eu volto amanhã mesmo.
-
Está bem, Vou ajudá-lo á fazer a mala. E se encontrar Picasso por lá, diga á
aquele bruxo para vir nos visitar! – piscou um olho e seguiu na direção do
quarto, deixando Murilo com a impressão que, de algum modo, ela já sabia de
tudo! Mas pensaria nisto depois.
Já
em Paris, perto da meia noite, Murilo seguia num táxi por uma rua chamada “Rue
de Bagnolet”, e pensava: - Quem supõe que reuniões de magos acontecem em
calabouços de castelos sombrios ou mosteiros milenares abandonados não sabe de
nada, pois os encontros acontecem em lugares bem inusitados para despistar
enxeridos!
O
carro parou diante um prédio comercial onde se lia: “Société Des Anciens
Établissements Malfille”. Nada menos que um concessionário dos automóveis
franceses Simca.
Murilo
seguiu pelo salão de exposição dos carros novos e depois pela oficina de
reparos até chegar á uma porta de madeira. Ele bateu com um toque, que era uma
senha, e a porta se abriu. Depois desceu uma escada chegando á um salão no
subsolo, e lá estava Picasso, que veio lhe receber junto ao conterrâneo Jorge
Amado. Entre outros artistas estavam, Neruda, Capote, Miró, Hitchcock,
Pasolini, De Sica, Fellini e Giulietta, e as atrizes Gloria Swanson e Hedy
Lamarr.
Naquela
noite apresentariam um novo membro à confraria: um jovem ator escocês chamado
Sean Connery. A sessão seria presidida
pelo novo mestre, ou mestra, Simone de Beauvoir, que falou: - Amis, maintenant
notre confrarie est complet. Nous pouvons faire la reunion![1]
Murilo
sorriu, se sentindo em casa.
Fim
É uma licença poética com muita admiração.
É uma licença poética com muita admiração.
Perfeito.Licença poética que nos coloca de corpo e alma a vivenciar cada passagem descrita e a ganhar conhecimento pelo rico conteúdo. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado!!!!!!
ExcluirMuito bom, Ramon! Parabéns!👏👏👏
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