quinta-feira, 30 de julho de 2020

CONTOS DA PRAÇA DA ESTAÇÃO #4

Black

 

Ele chegou a Juiz de Fora corrido pelo namorado de sua mãe que não queria saber de enteado marmanjo dentro de casa. Ela não moveu uma palha em sua defesa, limitando-se a colocar um trocado no bolso de sua camisa antes de lhe abrir a porta da rua. Assim, sem ter o que fazer em Humaitá, arranjou carona num caminhão de leite até Benfica, de onde apanhou o trem “Xangai” sem ter ideia do seu destino.

 

 

 Preto, pobre e analfabeto, Eriberto sentia seus horizontes praticamente á distância dos seus braços esticados, sem, no entanto, conseguir alcançá-los. Acabou descendo na Praça da Estação, de onde tentou vicejar um futuro melhor. Mas não foi isto o que encontrou: suas únicas qualificações estavam no trabalho duro do campo, arar a terra, rachar lenha e cuidar de criação, e não havia nada daquilo na cidade. Eriberto acabou tendo que dormir debaixo de marquises, pois o dinheiro minguado em biscates não dava nem para um barraco. Ali ele conheceu a indiferença e o preconceito. Alguns o chamavam de preto cachaceiro; logo ele, que viu seu pai alcoólatra morrer de tanto beber.

Um dia aprendeu uma palavra em inglês ao ouvir o termo “Black Power”. Soube que black significava preto, como sua cor; mas isto parecia ter tão pouca valia para quem vivia debaixo de uma marquise que não deu importância.

O pior golpe veio quando viu sua mãe no centro da cidade á noite acompanhada do namorado, que ao vê-lo se aproximar, deu-lhe um encontrão com o ombro com tanta força que o derrubou na calçada. Sua mãe apenas virou o rosto e prosseguiram. Nem um olhar!

Eriberto era homem que não chora, apenas guarda as mágoas no peito, onde espetam o coração como se fossem adagas.

Com a alma sangrando de dor, ele escutou o barulho da cancela, indicando a chegada do trem, não tão longe da calçada que lhe servia de cama. Então seguiu na direção dos trilhos que cortam a cidade de Juiz de Fora ao meio. Seria bom que lhe fizessem o mesmo, e bem rápido.

Parou á beira dos trilhos; olhou a esquerda, enxergando os faróis da locomotiva ao longe. Seria simples e rápido: quando o trem estivesse próximo, ele correria ao meio dos trilhos. Simples e rápido!

Cerrou os olhos já sentindo a terra vibrar sob seus pés descalços quando escutou um miado, muito baixinho, e ao abrir os olhos viu um gatinho preto brincando exatamente em cima do trilho. Foi questão de segundos até Eriberto apanhar o bichano e numa cambalhota espetacular caiu para trás á centímetros da locomotiva que passou rápido e feroz como um dragão cuspidor de fumaça. Ele olhou o gatinho aninhado nos seus braços, que lhe devolvia o olhar nas suas retinas amarelas e inocentes, e com as mãos trêmulas ele gritou: - Quer morrer, ô bicho doido?... – olhou a composição deslocando a sua frente com as rodas fazendo barulhos metálicos, e se perguntou: -... Qual bicho doido quer morrer?

Quando o trem acabou de passar, um homem moreno que assistiu á cena foi ao seu encontro: - Meu Deus,... Meu coração está disparado até agora;... Você está bem?

- Eu estou,...

- Oh, você está ferido!

Eriberto olhou, e havia um corte no seu tornozelo. – É mesmo. A locomotiva me arranhou.

O homem o ajudou: - Venha comigo rapaz! – ao levantar-se, ele mancou um pouco. – Você se arriscou a morrer só para salvar este gato?

-... É.

- Por quê?

- Eu,... Eu não queria que ele morresse.

- Ele é seu?

-... Não.

- Hum,... Você não tem casa?

- Não,... Não tenho!

- De fato, eu já tinha te visto aí pela calçada á noite e,... Devo confessar que não lhe dei atenção quando me pediu um trocado.

- Eu lembro,... Mas tá tudo bem. – deu de ombros alisando o dorso do gatinho: - Quem iria dar bola prum nego fudido que nem eu?

O homem coçou a cabeça e perguntou: - Você veio de onde?

- De Humaitá.

- E o quê você sabe fazer?

-... Nada que serve na cidade. Sou da roça.

- Você por acaso saberia lavar carros?

- É só jogar água em cima?

Ele riu: - Mais ou menos. Venha comigo; mas antes vamos tratar desse machucado!

O homem se chamava José de Atimateia, e depois de levá-lo a farmácia, o levou ao estacionamento de um dos hotéis da praça, conduzindo-o á um pequeno quartinho sob uma escada: - Não é grande coisa, mas tem cama. Amanhã a gente arruma melhor. Ah,... Como é seu nome?

- Eriberto de Souza.

- Bem,... Vou ter que lhe fazer uma pergunta difícil...

Cortando-o: - Mas eu já vou dar a resposta: não bebo não fumo maconha e nem cheiro cola!

Arimatéia sorriu: - Ótimo!

- Agora eu é que vou perguntar: por que o senhor tá me ajudando?

- É que uma vez ouvi falar que quando a gente salva alguém; está salvando a humanidade. Eu desconfiei o que você ia fazer ali,... E não fiz nada, enquanto que você pulou na frente do trem para salvar esse gatinho. Assim, acho que fiquei com inveja e quero salvar alguém também.

Eriberto não compreendeu as minúcias daquela frase, mas entendeu o todo, e falou: - Obrigado, Deus lhe pague. Mas e se implicarem com o gato?

- Não vão implicar. Aqui já tem gato de toda cor e tamanho. Mais um; não fará diferença! - aproximou-se fazendo um carinho na cabeça do bichano, e perguntou: - Ele tem nome?

Eriberto o olhou e respondeu: - É Black!

 

A partir de então ele aprendeu o jeito certo de lavar automóveis, e também outras coisas relacionadas aos serviços do hotel. Seu quartinho foi ganhando mimos, como um radinho de pilha, e mais tarde uma TV portátil. Por vergonha, Eriberto tentava disfarçar seu analfabetismo; mas Arimateia percebeu, e começou a lhe ensinar, incentivando-o a fazer o supletivo. Black cresceu, tornando-se um belo felino de pelo tão negro que chegava a brilhar. Já não era tão dependente de seu dono adotivo, excursionando por todos os telhados da Praça da Estação, conhecendo seus cantos mais secretos, e seus habitantes.

Ás vezes ia à lavanderia do hotel, contigua a cozinha, esperando ganhar algum petisco. Como resistir á aquela cadência insinuante? Enroscava-se nas pernas do cozinheiro, que se detinha por um instante, sorria e voltava ás panelas. Este fragmento de atenção parecia o suficiente; então ele buscava mais uma nota de carinho, desta vez com a lavadeira, que deixava a atenção ao lençol azul para fixar naqueles dois olhos amarelos que lhe fitavam. E ele pulava no seu colo, aninhando-se num cochilo.

Eriberto chegava a sentir ciúmes; mas quando o desânimo o afligia nas suas antigas lembranças - aquelas que ele não se permita chorar. - Black se aproximava, colocando suas patinhas dianteiras nos seus joelhos e fitava-o. Eriberto devolvia o olhar, respondendo: – Não se preocupe amiguinho. Estou bem,... Isso passa!

 

Realmente, passou. Ele aprendeu rápido á interagir com o mundo, e compreendeu o que significava ser um “black”, expondo a sua cor nos cabelos fartos como num halo negro. Tornou-se funcionário do hotel responsável pela garagem, uma vez que Arimateia se aposentou. Eriberto alugou um apartamento próximo, mas Black não se acostumou, preferindo sua caixinha debaixo da escada na garagem. Gatos só fazem o que lhes convém. Concluía.

Porém, o tempo para os felinos passa depressa, e seu dono adotivo foi percebendo seu amiguinho cada vez mais quieto. Já não saltava aos telhados como antes, e até para galgar ou descer sua mesa de trabalho, era preciso ajudá-lo.

Uma noite, ao fim do expediente, Eriberto viu Black entrar silenciosamente como sempre, enroscando-se ás suas pernas, e lhe fez um carinho na cabeça. O gato o fitou com seus olhos amarelos, virou-se, e seguiu á sua caixinha. Rodou algumas vezes, como sempre, e se deitou.

No tempo dos gatos Black teria vivido mais de noventa anos; mas para Eriberto, foram apenas quinze anos. Ele deu um ultimo toque naquele pelo macio e negro como uma noite sem lua, e depois tampou a caixinha que serviu de cama, e agora serviria de ataúde.

O pequeno cortejo cruzou a Praça da Estação: Eriberto, Arimateia e alguns empregados do hotel seguiram num silêncio solene, e ao cruzarem os trilhos do trem, veio á memória daquela noite, quando, ao contrário, não foi Eriberto que salvou Black, mas foi salvo por ele!

Pararam perto da ponte da Rua Halfeld, e foi aberta uma pequena cova á beira do Rio Paraibuna. Eriberto depositou a caixinha com o corpo de Black, e a enterrou. Então falou: - Vá em paz, meu amiguinho, e de todo coração: muito obrigado por você ter existido!

Depois abaixou a cabeça e finalmente conseguiu chorar suas dores.

 

FIM

 

 Notas: Humaitá é um distrito na zona rural ao sudoeste de Juiz de Fora; e Xangai era o nome do trem de passageiros que fazia percurso entre a cidade de Matias Barbosa e o bairro Benfica, em Juiz de Fora, até 1997, e era usado pelos habitantes da Zona Norte como trem urbano.

 

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