Fim de tarde na pequena
cidade mineira de Santa Rosa de Minas: meia dúzia de ruas, uma pracinha, a
igreja, o morro do cemitério e acabou-se a cidadela!
Aparecida
era uma mulher beirando os quarenta anos que não se podia dizer feia e nem
bonita, mas muito amargurada. Fazia um ano que Ary, seu marido, a havia deixado
para se bandear ao Rio de janeiro onde, segundo fofoca de vizinhos e parentes,
estava amasiado com uma carioca. Além da mágoa vinha á humilhação.
Naquela
tarde ela se preparava para sair e arrumava seu cabelo preto com raízes
grisalhas num coque. Sua mãe, dona Ana,
a censurava: - Desde que aquele trem ruim foi embora que você não se cuida mais.
Espia que feiura esse cabelo sem pintar!
-
Me deixa mãe!
-
Eu deixei e olha no que deu! Aonde você vai Aparecida?
-
Vou morrer; a senhora deixa? - e saiu.
-
Malcriada! - respondeu dona Ana.
Aparecida
seguiu á passos decididos rumo a uma vila chamada Córrego do Cuité ao casebre
de certa mãe de santo, chamada Vicentina, que trabalhava na linha de exu com a
Pomba Gira Maria Padilha, especialista em trazer de volta maridos fujões.
Ao
chegar á casinha de sapê atrás de um bambuzal, ela entrou pedindo licença. Uma
mulher morena e magra com lenço na cabeça, sentada numa poltrona falou: - Pode
entrar!
Aparecida
se aproximou, o ambiente estava impregnado com fumaça de fogão de lenha.
Vicentina perguntou: - O que ocê quer?
-
Eu quero falar com a Maria Padilha.
A
mulher á olhou fixo: – Ocê sabe mesmo o que vai pedir? –
-
Sim, eu quero ser feliz. Quero meu marido de volta!
Vicentina
piscou o olho e perguntou: - Trouxe o agrado?
Aparecida
tirou cinquenta reais da bolsa e entregou á mulher que enfiou o dinheiro no
sutiã; se levantou, andou de um lado a outro algumas vezes e começou a entoar o
ponto que evocava a entidade: “Mariá
mulambo; Mariá mulher; Mariá Padilha, rainhá do candomblé!...”. Ia
repetindo como um mantra até entrar em transe curvando-se para frente e
assobiando alto. Depois deu uma guinada para trás num salto e ficou ereta com
as mãos nos quadris e soltando gargalhadas: - Ah, ah, ah, ah, ah!... Quem me
chamou?
Aparecida
respondeu: - Eu chamei!
Novamente
a risada e a pergunta: - E suncê quer de volta o seu perna de calça?
-
É isso mesmo! A comadre traz o Ary de volta?
Sem
abrir os olhos ela pediu: – Suncê trouxe marafo?
Aparecida
buscou uma garrafa de cachaça na bolsa, encheu uma pequena cuia e passou á
entidade que bebeu e depois á ofereceu. - Bebe co’eu: três golinho!
Ela
bebeu três vezes enquanto a entidade falava: - Pra trazer seu perna de calça de
volta suncê arranja sete vela vremeia; sete vela preta; um alguidar com pipoca
branca e uma galinha preta viva!
Aparecida
se espantou: - Ah, galinha preta é difícil achar!
A
Pomba Gira riu e disse: - Se suncê quer ser feliz, vai até parir uma galinha
preta ô moça!
-
Tá! Eu dou jeito!
-
Traz também champanha e três rosa vremeia! Vamo fazer um despacho no cruzeiro
do cemitério á meia noite da segunda feira, que é dia das almas! – risada. – E
anda rápido porque daqui a pouco não tem mais jeito!
Aparecida
concordou e combinaram que quando estivesse com os itens em mãos, colocaria um
pano vermelho na janela. A entidade ainda lhe deu um passe antes de se
desincorporar num rodopio emitindo assobios.
Alguns dias depois dona Ana notou a toalha
vermelha no basculante da sala e perguntou: - Ô Aparecida, que marmota é
essa?... E esses trem aqui: garrafa de
sidra, vela preta e vermelha? Tu ta virando macumbeira agora?
Tomando
a sacola das mãos da mãe ela falou: - Me deixa! Eu to caçando jeito de ser
feliz. - e foi pegar uma galinha preta entregue por um menino que bateu á porta
enquanto Ana abanava a cabeça. - Aparecida, Aparecida. Já tá indo caçar mais
sacrafuncho na vida! – deu de ombros; - Num falo mais nada!
Onze
da noite e Aparecida esperava Vicentina á entrada do cemitério. Trazia uma
bolsa com as oferendas e segurava a galinha preta viva pelas pernas amarradas
que emitia cacarejos lamentosos enquanto batia as asas inutilmente. Daí a pouco
chegou Vicentina com cabelo solto e vestido preto, e subiram a ladeira até
abrirem o portão do cemitério num rangido lúgubre. Tinha uma lâmpada dependurada
no cruzeiro com uma luz tão fraca que parecia escurecer mais do que clarear.
Vicentina e Aparecida arrumaram as oferendas ao sopé do cruzeiro sobre uma
toalha de cetim vermelho e acenderem as velas. A mãe de santo se posicionou
diante do cruzeiro e falou. - Sarava! Pedimo licença pras santa alma bendita! -
e iniciou o ponto: - “Mariá mulambo,
Mariá mulher, Mariá Padilha, rainhá do candomblé!...” - então se encurvou
balançando a cabeça e depois se empinou rindo com as mãos nos quadris. – Ah,
ah, ah, ah, ah!... Quedê a minha champanha?
Aparecida
lhe serviu e a Pomba Gira bebeu um gole generoso. - Ah, ah, ah, ah!... Suncê tá fromosa e quer
teu perna de calça?
-
Eu quero, o Ary é meu!
A
entidade respondeu: - Então esgana a galinha e põe no alguidar!
Decidida,
Aparecida apanhou a ave e já ia esganá-la quando Vicentina começou a se
contorcer emitindo urros, jogando a cabeça á frente fazendo seu cabelo preto
cobrir sua face e falou com voz rouca e grave: - Huá huá huá!... Êta muié á
toa! A comadre num tá é com nada! Huá huá huá, agora sou eu que mando aqui!
Aparecida
se assustou mais: - Quem tá aí?
A
entidade aproximou com seu nariz adunco projetando na franja de cabelo preto e
disse, - Aqui é o exu Te-Té Veludo minha flozinha; Huá huá huá!. – olhou as oferendas
e chutou tudo gritando: - Isso aqui num presta nem pro exu limpá a bunda! – e
lhe tomou a galinha. – Mas isto aqui já serve de entrada! – então cravou os
dentes no pescoço da ave, espirrando o sangue ainda com a infeliz batendo as
asas. Aparecida ficou apavorada com a cena, enquanto o exu dizia: - Arranja
onze coco; acende onze charuto e dá três tragada em cada um! Adispois enfia
cada um num coco; acende três vela preta amarrada com fita vermelha e despeja
marafo em cima de tudo no cruzeiro do cemitério... Aí tu vai ser feliz! -
emitiu um urro e caiu ao chão em convulsão se lambuzando com sangue e terra de
cemitério. Num golpe apanhou o pé de Aparecida para derrubá-la, mas ela
conseguiu se desvencilhar e saiu correndo em disparada entre os túmulos
buscando o portão do cemitério, mas em meio á escuridão acabou caindo numa cova
aberta, torcendo o tornozelo. Dentro do buraco ela resmungou. - Que merda eu
fui arrumar! - Enquanto ouvia a gargalhada rouca do exu ecoando no negrume da
noite, ela rezou para aquele pesadelo acabar logo.
Amanheceu
e Aparecida acordou deitada na cova, toda suja de terra. Estava com a boca
amarga e esfregou os olhos; havia várias pessoas, que acompanhavam um enterro
olhando-a. Vermelha de vergonha ela falou: - É,... Eu vim visitar a sepultura
do pai e não vi a cova aberta. Ajudem a sair daqui. Machuquei o pé! – as
pessoas auxiliaram e de longe ela pôde ver o coveiro varrendo as velas, os
cacos de vidro e cerâmica, as rosas e a pipoca ao pé do cruzeiro.
Passaram-se
dois meses e sua mãe ainda lembrava: - Você foi caçar felicidade e achou foi
vexame pra gente. Agora todo mundo fala, “lá vai a mãe da macumbeira”!
Aparecida
cortava as unhas do pé: - Gentinha nojenta. Até parece que Santa Rosa não tá
cheinha de macumbeiro!
-
É, mas ninguém acorda dentro duma cova no cemitério; só você! Então bateram á
porta.
-
Para de me amolar e vai ver quem é mãe!
Dona
Ana saiu bufando enquanto Aparecida continuava a cortar as unhas. Ouviu uma voz
masculina desconhecida e em instantes sua mãe vinha acompanhada de um homem de
terno e gravata trazendo uma pasta preta. - Esse moço quer falar com você!
Ela
olhou-o desconfiada enquanto perguntava. - Boa tarde; a senhora é Maria
Aparecida Soalheiro Gazzelli? – ela assentiu e ele prosseguiu. – Meu nome é
Jairo e em primeiro lugar, gostaria de prestar condolências pela morte de seu
marido...
Ela
arregalou os olhos: - O quê?... O Ary morreu,... Quando?
Jairo
respondeu: - Faz um mês! A senhora não recebeu a correspondência informando?
Dona
Ana pôs os dedos nos lábios ao dizer. - Uai,... Chegou mesmo uma carta diferente,...
A onde eu coloquei?
Aparecida
encheu os olhos de lágrimas e começou um choro apertado: - Ãn,... Ãn,...
Ãnham-ãnham-ãnham...!
Jairo
prosseguia: – Bem, nós sentimos muito!... Eu e a companhia Aliança Gold de
Seguros.
Ela
continuava: - Ãnham-ãnham-ãnham...!
-
O senhor Ary Gazzelli possuía uma apólice de seguro de vida conosco,...
-...
Ãnham-ãnham-ãnham...!
-...
E a beneficiária é a senhora,...
-...
Ãnham-ãnham-ãnham...!
-...
E tem direito á receber a quantia de um milhão e quinhentos mil reais como
prêmio.
-...
Ãnham-ãn... O que o senhor falou aí?
Eles
estavam separados, mas ainda casados no civil. Assim, Aparecida recebeu a
bolada de prêmio e, como Ary morreu num acidente de trabalho, ainda teve direito
á uma pensão de três mil e quinhentos reais por mês.
Á
meia note da segunda-feira seguinte, no cruzeiro do cemitério, Aparecida
despejava uma garrafa de cachaça sobre onze cocos com charutos enfiados em
buracos junto a três velas pretas, acesas, amarradas com fitas vermelhas.
Estava com cabelos curtos e se vestia de modo mais aprumado. - Despacho feito,
Te-Té Veludo; estamos quites! - suspiro: - Não era bem assim que eu esperava
ser feliz... Mas,... Pelo menos serei infeliz no bem bom. Sarava!
Ao
sair, ainda ouviu no vento: - Huá huá huá!
Fim
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