quinta-feira, 23 de julho de 2020

CONTOS DA PRAÇA DA ESTAÇÃO #2


GRETA.
Não se pode falar da Praça da Estação em Juiz de Fora sem nos lembrar do famoso, e maldito, Cine São Luiz, que durante décadas ocupou o belo prédio estilo art decó á Rua Halfeld.
Marcelo era um dos funcionários mais antigos. Entrou como bilheteiro logo na sua inauguração em 1955; mas como o acharam parecido com o ator italiano Marcello Mastroianni colocaram-no á entrada da sala de exibição, recolhendo os ingressos. Ele não se achava tão bonito, mas gostou da mudança. No cinema foi também lanterninha e aprendeu a operar o projetor ocupando a função esporadicamente. Mais tarde tornou-se gerente.
Contudo, mesmo sendo uma sala de exibição bastante ampla e confortável, o Cine São Luiz não conseguia competir com o Cine Excelsior, estalando de novo, o Pálace e o Cine Central, mais ao miolo elegante do centro da cidade; assim, colhia seus espectadores entre o povo. Mas nem por isto deixava de oferecer boa programação, com festivais de desenhos e filmes do naipe de A Noviça Rebelde, e na semana santa clássicos de Cecil B. De Mille como Sansão e Dalila e Os Dez Mandamentos. Chegou a ser ousado exibindo filmes de teor adulto, como os franceses Les Amants e O Desprezo!
Marcelo assistiu ao auge do cinemão da Praça da Estação e pôde ver de perto seu declínio, pois a localização numa praça de má fama pela presença de damas da noite e boêmios afugentava as famílias. Sua a própria esposa o abandonou ante á desconfiança da traição com uma daquelas moças!
 A transformação foi paulatina: primeiro exibindo filmes obscuros de faroeste, de terror barato e eróticos europeus até chegar ao seu filão mais famoso: as pornochanchadas como foram denominadas filmes pornográficos nacionais. Marcelo viu a noviça rebelde dando espaço á noviças prá lá de rebeldes em obras como A filha de Emanuelle e Um Sutiã Para o Papai. Em alguns anos o São Luiz deixava clara sua vocação num letreiro com letras garrafais: “Sempre um Grande Filme Pornográfico” exibindo títulos como A B... Profunda; suficiente para bons entendedores até o escracho total: A Boceta Profunda! Marcelo só abanava a cabeça quando recolhia os bilhetes de adolescentes que mentiam a idade, e velhos senhores que também mentiam a idade!
Porém, o fundo do poço não estava longe, pois com a chegada do videocassete, não era mais preciso sair de casa para usufruir de um prazer solitário diante da telinha; assim o público minguou. Então, numa tentativa de sobrevida, vieram os shows de sexo explícito no pequeno tablado diante do écran. Marcelo ficava constrangido com aquele espetáculo, que considerava de uma pornografia horrenda e suja; e quantas vezes não precisou correr ao banheiro do cinema com porrete em punho á fim de evitar estupros? Ele respirava fundo e se segurava no aguardo de sua aposentadoria. 
O Cine São Luiz foi rastejando sua decadência enquanto a bilheteria conseguiu render algum trocado, até a derradeira sessão. Marcelo esperou sair o ultimo espectador daquele ultimo filme pornográfico, muito ruim cuja película se esfarelava de tanta exibição, para cerrar definitivamente suas portas. Àquela altura, sua aposentadoria havia saído.
Foi mais uma vez ao banheiro, rezando para não encontrar nada desagradável, quando no retorno, numa olhada na sala de exibição, viu uma cabeça grisalha despontando entre as cadeiras, e foi andando á sua direção pensando: - Meu ultimo dia aqui não ia deixar de ter uma ultima encrenca! – se colocou diante da fileira de poltronas e viu que se tratava de uma senhora negra de cabelos curtos arrumados em cachos prateados, bem vestida e trazendo um lenço florido nos ombros que parecia cochilar na poltrona coberta com uma espécie de toalha.
- Senhora?
Ela abriu os olhos, virou-se e respondeu: - Sim?
- Desculpe; é que a sessão acabou.
- Oh sim. Eu sei.
- É que precisamos fechar.
- Sim, sim; mas aconteceu o seguinte: tenho artrite e meu joelho começou a doer; então passei um pouco de arnica, e estou esperando melhorar para me retirar. Mas se é preciso fechar, eu dou um jeito de me levantar.
- Oh não, senhora; não se apresse. Eu posso aguardar.
- Obrigada! Hoje é o ultimo dia do cinema São Luiz, não é?
- Sim. Amanhã não haverá mais sessões. – olhou em torno. – Os refletores se apagarão para sempre!
Ela riu: - Que modo mais romântico a se referir ao fim desta sala.
Marcelo sorriu: - É uma morte anunciada, mas,... Como é sua graça?
- Greta!
- Como, Greta Garbo?
- Sim, foi inspiração de minha mãe que era fã da atriz. Para mim este nome trouxe alguns aborrecimentos. No colégio, os moleques mais atrevidos pediam que eu lhes mostrasse a greta, e eu respondia que eles fossem ver a greta das suas mães! – risos. - Mas eu gosto do meu nome. E o senhor, como se chama?
- Marcelo.
Ela piscou um olho: - Interessante. Já lhe disseram que parece com Marcello Mastroianni?
- É,... Algumas vezes. Mas hoje estou muito estragado para ser parecido com ele.
- Nem tanto. Acho que o senhor estaria até melhor que o próprio, se ele estivesse vivo!
Ele riu: - Puxa vida. Escutar um elogio desses no meu ultimo dia no São Luis, é fechar com chave de ouro!
Os dois riram e ela perguntou: - Mas, o senhor não ia perguntar algo?
- Sim! É que,... Eu imagino que a senhora saiba que tipo de filme é exibido aqui.
- Claro! Isto é público e notório!
- Pois então, me atrevo a perguntar por que a senhora veio aqui?... Desculpe se estou sendo intrometido!
- Claro que não; e realmente imagino o quão pode ser estranho ver uma senhora distinta como eu, aqui neste lugar! – ela olhou em volta: - Foi nesta mesma poltrona que em 1957 meu futuro marido roubou-me um beijo. Oh, quase lhe dei na cara tamanho abuso!... Mas no fundo eu gostei; tanto que nos casamos três anos depois!... Ah; esta noite as minhas retinas não viram o que se projetava na tela, mas aquilo que se projetou na minha memória. Tantos filmes,... Tantas histórias!
- Sim; esta sala já teve seus dias! Mas, seu marido não quis acompanhá-la nesta recordação?
- Hum; infelizmente ele não está mais aqui.
- Uh, sinto muito! Desculpe a gafe.
Ela deu de ombros e falou: - Tivemos uma bela vida juntos; ele me deu filhos, que me deram netos! E o senhor, é casado?
- Não. Eu sou separado. – riso: - Quando me separei, ainda era desquite!
- Nossa, faz tempo!
- Muito tempo!
- O senhor não se casou mais?
- Ah,... Tive uns casinhos; nada muito duradouro. Mas o tempo que estive casado também me presenteou com um filho, que me deu um neto!
- Como são as coisas. Estamos aqui trocando impressões de nossas vidas neste cinema que já exibiu tantas histórias de vida; e quantas vezes eu não retornei a esta sala com meu marido!
E quantas vezes não fui eu que recolhi seus bilhetes! - então seu celular chamou: - É o vigia, preocupado porque ainda não saí.
Greta mexeu a perna dizendo: - Meu joelho melhorou; não vou mais prendê-lo! – ela se levantou e Marcelo ajudou: - obrigada! – e foram se afastando.
- Senhora Greta: esqueceu sua toalha!
- Deixe-a aí! É uma peça velha, como minhas lembranças.
Os dois seguiram pelo saguão e ela perguntou: - O que o senhor vai fazer agora que o cinema fechou?
- Eu estou aposentado!... Não sei ainda.
Chegaram á entrada: Greta passou e Marcelo se preparou para fechar a portaria; então olhou o majestoso saguão do cinema São Luiz pela ultima vez, envolto na escuridão. Subitamente sentiu um imenso vazio, como se doravante sua vida também mergulhasse numa espécie de falta de luz. Veio um aperto muito grande na garganta, numa vontade de chorar a saudade de tudo aquilo.
Greta percebeu: - Senhor Marcelo,... Está tudo bem?
- Oh!... – limpando os olhos com as mãos: - É só uma coriza,... Ah, esse sereno!
- Sim, está frio!
Ele trancou a fechadura do seu passado e entregou a chave ao vigia. Despediram-se com um abraço e promessas de uma cerveja no fim de semana. Então se voltou á Greta. – A senhora mora longe?
- Não! Eu vivo num apartamento aqui mesmo na Rua Halfeld, próximo á Secretaria da Fazenda.
- Bem,... Está um pouco tarde. Posso acompanhá-la?
Ela riu: - Eu ia mesmo pedir!
E os dois seguiram pela rua. Mais adiante, Greta perguntou: - O que o senhor vai fazer agora?
- Bem, como eu disse: estou aposentado,...
- Não é isto! – riso: - Quero saber o que o senhor vai fazer esta noite, depois que me deixar em casa!
- Ah sim! – meio sem graça: - Depois eu vou para minha casa, ali na Rua Sete de Setembro.
- Então, senhor Marcelo: aceitaria o convite para um chá?
-... Chá?
- Hum,... Acho que eu tenho cerveja na geladeira!
Ele sorriu largo: - Se não incomodar, eu vou aceitar!
- Será um prazer! Como diz a célebre frase daquele famoso filme: acho que este e o começo de uma bela amizade!
- Sem dúvida!

Fim.

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