sexta-feira, 9 de julho de 2021

CONTOS DO VIGÁRIO #03 - PARTE FINAL.

 

VIGÁRIO NONATO

 

 

O padre Arturo colocava a imagem de São Geraldo Majela diante do altar quando escutou alguém batendo á porta: – Delegada?... Boa tarde. Aconteceu alguma coisa?

Ela entrou e o encarou: - Sim, aconteceu! Eu recebi um telefonema da Cúria, e era o próprio Arcebispo agradecendo pelo empenho da policia nas investigações do caso do padre Echeverría. – deu de ombros. – Nem sei ao quê Sua Excelência agradece, porque ainda não descobrimos nada! Só que, quando eu referi ao senhor, o Arcebispo negou que a Cúria tivesse enviado um padre em substituição ao falecido, e disse que iria investigar o que estaria ocorrendo! 

- É evidente que foi um engano! Deve ter havido um desencontro de informações entre o Arcebispo e seus assistentes.

- Pois não foi exatamente isto que me disseram a seguir num outro telefonema? – ela apanhou seu aparelho: - Meu Ifone registra a origem das ligações: Roma, Itália! O senhor foi designado direto pelo Vaticano, padre Arturo?

Ele andou um pouco pela nave da igreja e respondeu: - Delegada; o que está insinuando, que sou algum tipo de farsante?

- De modo algum! Por enquanto não estou insinuando nada, apenas quis averiguar esse desencontro de informações dentro da própria Igreja. – e sorriu: - Vejo que o senhor está ocupado; não vou mais aborrecê-lo!

- Não me aborrece; ao contrário, até me sinto mais seguro ao verificar que a doutora não deixa passar nada sem averiguar!

- Realmente; eu estou sempre atenta! – então viu um drone meio escondido por plástico-bolha num dos bancos da igreja; e estranhou. O Padre percebeu se apressou em explicar: - Sou fotógrafo amador, delegada, e quero fazer fotos aéreas da nossa igreja matriz!

Hazel assentiu, e deu uma ligeira mexida no nariz: - Não está sentido cheiro de gás, padre?

Ele abanou a cabeça: - Não estou percebendo cheiro algum!

- Bem; pode ser impressão minha, mas dê uma verificada naqueles botijões. Aliás: para que servem aqui na igreja?

- São usados nas barraquinhas de alimentos, nas quermesses, mas vou verificar se há vazamentos de gás! – ela concordou e saiu escoltada pelo padre, que fechou a porta á chave mal ela cruzou o portal.

– Ah, seu padreco! – pensou: - Estou começando a dar razão ás implicâncias da dona Cordélia. – apanhou seu telefone: - Eu acho que vou estender um pouco mais as minhas investigações; é hora de procurar meus contatos!

Mais tarde Hazel ainda se debruçava nos laudos da perícia em busca de algum indício estranho no carro e no sítio do padre Echeverría quando sentiu cheiro de queimado, seguido por gritos na rua. Ao chegar á porta, avistou uma coluna de fumaça saindo por trás da praça da cidade e correu junto aos dois policiais: a casa da senhora Cordélia parecia estar em chamas com fumaça negra saindo pelas janelas. Os dois guardas entraram acompanhados alguns populares com uma mangueira do jardim para tentar apagar o fogo. Hazel entrou na casa e ficou estarrecida pelo que encontrou: o corpo de Cordélia parecia ter sido incinerado! As ferragens da cadeira de rodas chegaram á se contorcer pelo calor enquanto nódoas negras demarcavam o chão e o teto no exato local onde a cadeira estava. Mais tarde nem os bombeiros pareciam encontrar respostas ao que poderia ter ocorrido. Mas como aquele cômodo era uma espécie de capela, supunham incêndio acidental por chamas de velas que teriam queimado as vestes da idosa.

De volta ao lado de fora, Hazel ouviu os vizinhos afirmarem terem escutado galope de cavalos um pouco antes do incêndio; porém, eles não avistaram nenhum animal á rua ou mesmo na estradinha que passava aos fundos da casa. Contudo, alguns homens que faziam a capina num terreno ao longe relataram algo estranho antes do incêndio: uma mulher nua teria entrado pela porta dos fundos da casa de Cordélia e isto os fez ficarem atentos. Quando a fumaça negra começou á sair pelas janelas, viram Bastiana e a “macumbeira” Madalena correndo em fuga pela estradinha de terra nos fundos. Hazel imediatamente ordenou aos guardas que as encontrasse e as levasse á delegacia para averiguações.   

Caía noite e Santa Rosa ainda pairava odor de queimado quando Hazel recebeu informações, por e-mail, de que o padre Arturo Montese havia desembarcado ao Brasil, vindo de Roma, há três dias, e seguiu direto á Santa Rosa. Ele era Jesuíta e fazia parte de uma irmandade secreta chamada: “Dies Irae”, sem maiores referencias, e isto aumentou suas desconfianças naquele padre italiano. Ela ainda aproveitou seus contatos para saber mais sobre a família da senhora Cordélia e veio uma revelação inusitada: o senhor José Murieta Castro, pai da falecida, teve que fugir da Espanha com sua família em 1937 não por ser anarquista, mas para escapar ás acusações de satanismo. Ele se apresentava como: ... “guia em rituais de evocação aos demônios primordiais.” - Minha nossa, que gente doida era esta?

Então o guarda veio avisá-la que conseguiram deter Madalena e a levaram á delegacia. Hazel imprimiu o texto e foi encontrá-la.

A mulher olhava para os lados, apreensiva, quando Hazel entrou na cela acompanhada de um guarda: - Senhora Madalena Souza da Cruz, informo que isto não é uma prisão. A senhora está detida para averiguações após testemunhas terem presenciado sua fuga de um local onde ocorreu um incêndio, em circunstâncias ainda não esclarecidas, que causou óbito da senhora Cordélia Murieta Castro!

- Então se não to presa, eu posso ir embora?

Hazel olhou-a firme e ordenou ao policial que saísse e fechasse a porta: - Não podemos deixá-la ir embora até esclarecer o que aconteceu esta tarde porque há muitas testemunhas que a viram entrar na casa antes do incêndio, acompanhada de Sebastiana Souza da Cruz, que é sua irmã: está correto? – mesmo á contragosto ela assentiu: - Depois viram vocês duas em fuga por uma estradinha que corre aos fundos da casa logo após o incêndio! – Madalena deu de ombros e cruzou os braços em silêncio. Hazel se irritou: - Se eu fosse a senhora, eu começaria á explicar o que aconteceu e quem era a mulher nua que também viram em fuga!

 - Mulher nua,... Ah meu Deus, eu sabia que ia dar tudo errado!

- O que deu errado?

- A doutora não tem cara que acredita em assombração!

- Assombração? Senhora Madalena: eu acredito em gente que crê em assombrações e acaba fazendo coisas insensatas em nome desta crença! – colocou os papéis impressos que trazia consigo á mesa. – O pai da senhora Cordélia era uma dessas pessoas que acreditavam ter o poder de evocar demônios! Já são três mortos, carbonizados: padre Messias, em 1977; padre Echeverría e a senhora Cordélia agora.

- Não doutora; são quatro pessoas! Eu vou contar o que sei, e depois a doutora acredite se quiser nas palavras de uma macumbeira da roça; caipira e ignorante! – então reportou á década de 1950 quando ela e sua irmã foram trabalhar na casa do senhor José Murieta Castro, o fazendeiro mais rico da região. Sebastiana era uma jovem viúva com uma filha chamada Araci, adolescente e linda, e logo ficaram amigas de Cordélia. O patrão se dizia católico apostólico, mas se interessava pelos rituais de magia brasileiros e até os praticava ás escondidas. Contudo; Murieta recebeu como hóspede um jovem seminarista chamado Norberto, que teria ido á Santa Rosa para retiro e estudos enquanto aguardava a data de sua ordenação á padre. - Se a doutora quer saber? – falou Madalena: - Um filho da puta ordinário que foi só deitar os olhos em cima da Araci para começar a se engraçar com ela! Ah,... Para uma menina da roça mulata, aquele moço da cidade com olhos azuis deve ter parecido um príncipe. A gente avisou pra ela não lhe dar trela, mas não adiantou nada, e Araci se entregou pra ele, doutora! – e continuou explicando que não foram muitos encontros, mas o suficiente para a garota “pegar barriga”. Ao saber disso, Cordélia ficou furiosa e denunciou Norberto, que negou veementemente, afirmando ter presenciado a menina se oferecendo ao capataz da fazenda, que reafirmou a mentira, certamente recebendo pagamento por isto. Norberto ainda teve a desfaçatez de declarar que, realmente, se aproximou de Araci para aconselhá-la á se manter digna! Já o senhor Murieta ficou numa posição difícil perante o pai do jovem, que era seu correligionário político! – Oh doutora!... O patrão era imigrante estrangeiro que para fazer parte da corja deu crédito á mentira, e decidiu levar Sebastiana e Araci para um mocambo no Córrego do Cuité, na época um lugareco de merda no meio do mato! – ela abaixou a cabeça ao dizer o quanto aquilo foi duro á Araci, que não resistindo á rejeição e á humilhação, roubou um revólver da algibeira de um viajante e correu á um pasto distante para se matar com um tiro na cabeça! Seu corpo só foi encontrado no dia seguinte por que viram urubus rodeando o céu, e eles haviam devorado o cérebro de Araci pelo rombo no seu crânio esfacelado.

Hazel já havia ouvido histórias semelhantes, mas não com tantos requintes macabros, que nem terminaram por aí.

- O enterro da nossa menina foi a coisa mais triste do mundo. Não pôde ser no cemitério cristão e nem teve padre para encomendar a alma, porque tirar a própria vida é pecado! – ela continuou, explicando que a partir daquele episódio Cordélia passou a nutrir extremo ódio á Igreja e aos padres, e começou a engendrar uma vingança contra Norberto, já ordenado padre e, por cúmulo da iniquidade, designado á paróquia de Santa Rosa!

– Nós éramos três bobonas revoltadas e querendo vingança de todo jeito! Cordélia aprendeu os rituais de magia negra lá da terra do pai dela, na Espanha, e decidiu que a gente ia fazer igual. Numa noite, no Córrego do Cuité, nós três fizemos um circulo, com uma estrela desenhada no meio, e ela chamou um demônio com três cabeças, corpo de gente, chifres e patas de bode que ela chamava Asmodeus, clamando vingança por Araci! A gente só esqueceu que aqui no Brasil os demônios tem outro nome e aparecem de jeito diferente! – e arregalou os olhos ao relatar a ventania repentina que quase as arrastou; as chamas das cinco velas que se transformaram num anel de fogo enquanto se ouvia um grito ensurdecedor e dolorido: era o espírito de Araci, enterrado sem nenhum ritual cristão que parecia ter voltado á terra sedento de vingança e cheio de ódio aos padres. – A doutora lembra como a gente chama o espírito das mulheres que se entregaram aos padres aqui no Brasil?

Hazel hesitou ao responder: - Mula sem cabeça?... Isto é folclore!

- Pode até ser doutora, mas depois do que a gente fez, esse folclore ganhou um corpo medonho, com uma cara sem nada dentro; e não era o animal “mula”, mas uma mulher jogada fora que nem uma mula imprestável com patas com casco fendido no meio, que nem o demônio! – Madalena até se encolheu ao explicar que o espírito demoníaco emitia chamas pelos olhos vazados e desapareceu rápido na noite. Na manhã seguinte, encontraram o corpo do padre Norberto completamente incinerado no quintal da casa paroquial. Disseram que foi atingido por um raio, mas Murieta percebeu o que havia ocorrido, e enviou Cordélia á um convento na Espanha como castigo.

– Ela se tornou freira? – perguntou Hazel, ao que Madalena confirmou, e explicou que Santa Rosa jamais poderia ter um padre fixo vivendo na cidade.  Murieta e depois a própria Cordélia conseguiam impedir a designação de padres com seu prestígio, que falhou em 1977, e novamente agora com o padre Echeverría. Por causa disto o espírito de Araci retornaria sempre como uma “mula sem cabeça” em busca de vingança; e continuou: – Cordélia sabia que não tinha mais poder para impedir que padres ficassem fixos na paróquia da cidade, e achou que como foi freira, poderia dar a extrema unção á Araci, e assim lhe dar paz! Que bobagem. A Araci não existe mais,... Só o demônio que queimou Cordélia como se fosse lixo!... Fizemos tudo errado de novo!

Hazel ia perguntar sobre o bebê que Araci esperava quando o guarda a chamou com urgência. Ela deixou a cela e ouviu-o relatar que moradores em torno da Igreja matriz queixaram-se de forte cheiro de gás, mas não conseguiram descobrir de onde vinha. A delegada apanhou os papéis que imprimiu e encontrou o trecho: ... “O demônio primordial enviado por Asmodeus só poderá ser destruído na sua forma terrena através de um raio que cause explosão emitindo fogo intenso e rápido”... – Explosão?... É claro, uma explosão de gás butano é muito violenta e emite calor intenso! Minha nossa, aquele padre maluco vai tentar explodir o demônio com os botijões de gás!

E saiu correndo na direção da igreja. Ao aproximar da construção religiosa, sentiu forte odor de gás. Olhou em volta e pessoas acendiam luzes e aparelhos diversos que poderiam ser o estopim de uma grande explosão. – Iremos todos voando para o céu se não determos esse gás! – naquele instante começou uma ventania inexplicável; era o sinal de que o demônio se aproximava. Hazel correu á porta principal da igreja que estava trancada.  Ordenou que o padre a abrisse, mas foi inútil. Ela buscou um lenço no bolso do casaco para tapar o nariz e seguiu á entrada da sacristia nos fundos da igreja. A porta também estava trancada, mas não precisou muita força para arrobá-la á pontapés, seguindo ao passadiço atrás do altar sob o cheiro de gás onde viu Sebastiana, que a olhou assustada, e o padre tentando acionar o drone.

– O que está fazendo; desligue esse gás!

- Não! É a única maneira de acabar com esta coisa!... A doutora estava certa; eu faço parte de uma irmandade com a missão de livrar o mundo desses demônios inimigos da Igreja, e é o que vou fazer!  Coloquei a imagem de São Geraldo no altar com uma gravação da minha voz para atraí-lo!

- É só uma imagem de gesso, acha que o demônio não vai perceber?

Ainda mexendo nos controles do drone, padre Arturo respondeu: - Eu sei, é só para distraí-lo! O drone está com uma ignição que disparará fagulhas no ar enquanto nós fugimos antes da explosão!... Mas há alguma coisa errada,... O controle remoto não funciona! Vou ver o que está ocorrendo!

- Largue isso, vamos embora!

Ele não ouviu e correu ao acesso da sacristia á nave da igreja onde o aparelho estava pousado. Neste instante ouviu-se barulho de cascos de cavalo no piso da igreja. De onde a delegada estava, pôde ver o padre agachado tentando consertar o drone enquanto uma figura horripilante se aproximava: tinha corpo de mulher e pernas no formato das patas traseiras de uma mula com cascos fendidos. Sua cabeça possuía apenas a parte da face, pois o restante era oco como um vaso quebrado. O padre olhou a criatura no exato momento em que ela emitiu um grito estridente, fazendo com que seu corpo entrasse em combustão, irrompendo uma violenta explosão do gás que envolvia o ambiente, provocando o desabamento de todo o telhado da igreja junto ás paredes laterais e causando imediato curto circuito na rede elétrica de Santa Rosa, mergulhando-a na escuridão e no pânico.

No dia seguinte as manchetes falavam na explosão causada por um raio que destruiu a centenária igreja matriz de Santa Rosa de Minas.  Informava ainda que ocorreram três vítimas fatais: Sebastiana Souza da Cruz; a delegada Solange Hazel dos Santos e o padre italiano Arturo Montese.

 

Um ano depois...

Um carro chegava á Santa Rosa de Minas trazendo o padre efetivo da paróquia da comunidade. A igreja estava em obras, que certamente seriam demoradas, assim decidiram que missas e demais serviços ocorreriam na casa paroquial.

Depois ele seguiu ao Córrego do Cuité onde viveria no sítio dos padres. Com mais de sessenta anos, era um sacerdote experiente e sentia-se apto á conduzir a Igreja naquele lugar repleto de supertições, ás quais pretendia combatê-las pelo poder da fé no Evangelho. Madalena, a vizinha, se aproximou: - Boa tarde!... O senhor é o novo padre?

Ele sorriu ao tirar uma valise do porta-malas. – Sim! Sou o padre Raimundo Nonato!

Ela falou: - Só se dá esse nome á crianças que nasceram mortas e reviveram pela promessa á São Raimundo Nonato, que se vivesse, teria o nome do santo!

- Bem, senhora; não sei dizer a razão de terem me dado este nome. Eu não conheci meus pais! – tirou os óculos revelando seus olhos azuis, e disse: - Vou gostar daqui. Engraçado, Mesmo sendo padre, sinto que este lugar tem algo de místico e misterioso!

- Ih padre! Aqui acontece cada coisa. Santa Rosa deve ser o lugar mais assombrado de Minas!

Ele riu: - Até mais do que Ouro Preto?

Madalena retribuiu o riso: - Perto daqui, lá não dá nem pro cheiro!

 

Fim

 

 

 

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