sexta-feira, 2 de julho de 2021

CONTOS DO VIGÁRIO #03 - PRIMEIRA PARTE.

 

VIGÁRIO NONATO

 

VIGÁRIO: s. m. Aquele que ás vezes se faz de outro.


A coluna de fumaça indicava o local do incêndio em um carro numa estrada vicinal em Santa Rosa de Minas. Os policiais tentaram identificar o motorista totalmente carbonizado pelo numero da placa, ainda legível, e em instantes veio o nome do seu proprietário: - João José Echeverría. Um morador das redondezas ouviu e exclamou: - Virge Maria; é o padre!

 A doutora Solange Hazel era a delegada titular de algumas delegacias na região da Zona da Mata mineira. Morena de cabelos curtos; olhos castanhos claros; estatura mediana e sempre trajando blazeres com corte de alfaiataria. Naquela tarde ela estacionava seu VW Voyage adiante da casa onde o padre vivia em Córrego do Cuité, distrito de Santa Rosa, que era bem modesta.

Colocou seus óculos escuros acima da testa e deu uma lida rápida no laudo da perícia do carro do padre, que antes de ser designado á paróquia de Santa Rosa, se envolveu em questões agrárias no Norte do Brasil. Isto justificaria suspeitas de homicídio por vingança.

Então alguém chegou: - Dá licença! – era uma mulher morena com lenço vermelho na cabeça. – A senhora está procurando o padre? Ele morreu!  

- Eu sou a delegada Solange Hazel, e estamos investigando o acidente que vitimou o padre. – respondeu saindo do carro.

- Delegada? Ocê parece uma modelo!

- Obrigada! Como é seu nome, senhora?

- Sou Madalena. O povo da cidade me chama de macumbeira porque boto carta. Liga não que é bobiça dessa gente!

Ela sorriu: - Então, senhora Madalena: era vizinha do padre Echeverría?

- Sim senhora.

- Como ele era como vizinho?

- Não deu tempo da gente se conhecer direito, mas ele parecia boa gente.

- A senhora viu alguém desconhecido por aqui, ou visitando o padre?

- Não vi não! Como falei, não deu tempo de fazer muita amizade com o padre. – olhou para trás: - Eu tenho serviço em casa; posso ir?

A delegada assentiu e ficou olhando-a seguir por um caminho no mato e depois observou a frente da casa do padre. Era rosa com um barrado azul em baixo e janelas de madeira. Hazel entrou devagar na sala com piso de cimento e teto sem forro. Havia uma mesa com quatro cadeiras, uma delas caída junto a restos de louça quebrada. Tinha uma garrafa térmica tombada que deixou derramar todo o café na mesa e no chão, restando apenas manchas amarronzadas. Então escutou ruídos noutro cômodo e seguiu devagar, pois podia ser um invasor. Ao entrar, viu um homem alto e calvo.  - Ei, você aí! Sou a delegada Solange Hazel, titular da delegacia desta comunidade, e o senhor, quem é?

Ele estendeu a mão: - Sou o padre Arturo Montese, e vim substituir o padre Echeverría. Virei morar aqui e vim recolher seus pertences para entregá-los a família.

Ela respondeu estendendo a mão em retribuição ao cumprimento: - Mas infelizmente o senhor terá que esperar o término da investigação para fazer isto. Talvez precisemos periciar esta casa novamente.

- Sim, claro! Vou me acomodar na sacristia da igreja.

Solange olhou de lado: - O padre Echeverría faleceu á poucos dias e a Igreja já enviou um substituto, é sempre assim nesses casos?

- Sim! A Cúria achou por bem não deixar a comunidade de Santa Rosa sem um pastor neste momento traumático.

- De fato. Pelo sotaque, o senhor não é brasileiro, é?

- Não. Eu sou italiano. – riso. – Não consigo disfarçar o sotaque napolitano de todo. Acidente horrível este: o padre Echeverría era um clérigo muito empenhado!

- Pelo que pudemos averiguar, ele fez parte das comunidades eclesiais de base favoráveis á reforma agrária e atuava em questões de demarcação de terras indígenas no Tocantins, desagradando os poderosos de lá.

- A doutora crê em um atentado como represália?

- Sim! Segundo o laudo da perícia, não há indícios de que o carro do padre tenha colidido em outro veículo.  - apontou á sala: - Observe a cadeira virada no chão, os cacos de louça e a garrafa caída. Pode ter havido luta, ou o padre saiu em correria. E ainda tem mais uma coisa; venha á cozinha! – Arturo a seguiu e ela falou: - Sinta o cheiro de queimado que impregnou nas paredes. – aproximou-se do fogão: - Olhe isto, padre: uma panela com uma crosta carbonizada ao fundo: é feijão, que deve ter ficado horas no fogão de lenha até as chamas se extinguirem. – apontou á pia: - E ali, veja: restos de legumes picados. Ele percebeu algo suspeito ao preparar o almoço e fugiu no seu carro, mas foi alcançado! – ela deu de ombros: – Mas isto são conjunturas que somente a investigação pode corroborar ou jogar por terra. – olhou em torno: - Eu vou á cidade. Os dois policiais estão me esperando no adro da igreja.

- Já que não poderei ficar aqui, eu poderia acompanhá-la?

- Sim, eu lhe dou uma carona.

 

Ao chegarem ao adro da igreja matriz de Santa Rosa de Minas, Hazel se encontrou com os dois policiais locados na delegacia da cidade, que lhe explicaram o episódio do incêndio: aparentemente o padre Echeverría teria seguido por uma estrada vicinal que ligava o distrito de Córrego do Cuité á BR-040; uma estradinha de terra esburacada que não deixaria o carro andar em alta velocidade, o que facilitaria ser alcançado por homens á cavalo. Pessoas que estavam perto do local do incêndio teriam ouvido galope de cavalos seguindo o carro, e depois viram o carro em chamas. Ela pôs a mão no queixo enquanto pensava. – Como imaginei,... Foi um atentado!

Então escutou uma voz áspera: - Ei, você aí de calça apertada! – ela olhou, e era uma idosa, muito branca, numa cadeira de rodas empurrada por uma mulher negra e magra. – Ora essa; finalmente eu vou ter o prazer de conhecer a famosa delegada desta cidade!

Um tanto aborrecida, respondeu: - Sou eu mesma: delegada Solange Hazel! Acho que não tive o prazer de conhecê-la!

A idosa recostou na cadeira e falou altiva. – Eu sou Cordélia Murieta Castro! – aquilo parecia uma intimidação apoiada em séculos de dominação, pois Hazel tinha conhecimento que ali estaria a dona de quase todas as terras das redondezas, mas não se deixou intimidar: - Muito prazer senhora Cordélia; ouvi falar da senhora!

- Eu espero que tenha mesmo, minha filha! Soube que está aqui para escarafunchar o acidente com o padreco, é isto?

- Exatamente, senhora. Suspeitamos que tenha sido um atentado!

A idosa riu entre tossidos: - Ai, ai, ai! Como as pessoas têm mentes fantasiosas! – olhou adiante apontando a bengala: - E aquele comprido lá, é quem?

- É o padre Arturo Montese. – respondeu Hazel chamando-o.

- Padre? – respondeu Cordélia: - O outro padre ainda nem esfriou na catacumba e já mandaram mais um?

Arturo escutou e respondeu se aproximando. – Sim senhora. A Cúria achou melhor não deixar esta comunidade sem um pastor.

- Pastor? Por acaso somos cabritos para sermos tangidos?

- Não senhora! – respondeu: - As pessoas precisam de fé para continuar acreditando na vida, e a Igreja cumpre seu papel de guia!

Cordélia abanou a cabeça branca: - Sim, sim. A santa Igreja na sacrossanta missão de condutora da fé!

Ele perguntou: - A senhora não gosta da Igreja?

- Eu acho que a Igreja é uma corte, cuja pompa é mantida através de contribuições de fiéis que esperam estarem financiando seu quartinho no céu, á prestações! Tenho direito de pensar o que quero, não é? - riso rouco: - Se quer saber: eu acho que deveríamos enforcar o ultimo padre com as tripas do último Papa!

Ele sorriu: - O dito certo é: “O que urge fazer? Enforcar o último rei com as tripas do ultimo frade!”. A senhora Cordélia me surpreendeu!

- Porque, podemos saber?

- Porque, como legítima representante de uma espécie de aristocracia rural de Santa Rosa, é surpreendente imaginá-la Anarquista!

Cordélia apertou os lábios ao dizer: - O senhor é muito espirituoso, e vejo que é estrangeiro. – riso: - Santa Rosa vai ficar muito chique com um padreco gringo! – bateu no chão com a bengala: - Bastiana, por favor, me leva pra casa. Estou com náuseas! – e a mulher negra empurrou a cadeira pela calçada, subindo um leve aclive com certo esforço.

- Meu deus; eu nunca me deixo intimidar por carteiradas de pessoas que se acham acima das leis, mas esta senhora até me arrepiou! – falou Hazel.

Arturo deu de ombros: - O crepúsculo do poder os faz sair das sombras, daí esta verborragia colérica contra as instituições!

- Não sei se é tão crepuscular assim, padre! Vou procurar saber se padre Echeverría chegou a fazer reuniões com viés ideológico de esquerda em Santa Rosa. A julgar pelas suas palavras, esta senhorinha nem mudaria de roupa para ordenar que capangas o executassem. Vou dar uma boa pesquisada na senhora Cordélia Murieta Castro! – olhou seu relógio: - São quase dezesseis horas; acho que vou retornar á Barbacena, e amanhã cedo eu volto.

Despediram-se e Hazel entrou no seu carro. Então se deu conta de algo: - Meus óculos escuros, cadê? – lembrou-se de tê-lo deixado na cozinha do sitio do padre, e era seu preferido, um “Ray-Ban” legítimo! Ligou o carro e seguiu ao sítio.

Parou seu Voyage e correu á casa, indo direto á cozinha e lá estava ele sobre a pia. Ela o apanhou dizendo para si: - Óculos queridos, que me custaram o olho da cara, nem pensar em te perder! – e se recostou um instante ao umbral da porta sentindo a brisa e escutando o canto dos pássaros na primavera; porém, aquele momento de encanto foi quebrado por uma voz esganiçada parecendo uma discussão. Hazel andou ao caminho que levava á casa de Madalena até uma distância que pudesse ouvi-la sem ser vista e escutou restos de frases que não entendeu: -... Isso tem que parar,... Está ouvindo? Fala pra ela...! – então veio o silêncio entremeado por barulhos de coisas de cozinha. Aparentemente foi uma mera discussão familiar; mas quando Hazel se dirigiu ao carro, viu a mulher negra e magra que empurrava a cadeira de Cordélia seguindo pela estrada, e se escondeu para não ser vista. Esperou-a sumir na curva antes de dirigir-se ao seu carro, intrigada com o que havia presenciado.

Já em sua casa, Hazel pesquisava a vida da senhora Cordélia em busca de atos de “grilagem” de terras, processos por desmatamentos ilegais e coisas no gênero. Mas o que encontrou foram apenas ações trabalhistas em que ela mesma buscou acordos justos para ambas as partes. Isto á decepcionou um pouco.

Então deu vazão á um impulso voyerista, e pesquisou a vida do padre Arturo Montese. Nova surpresa, pois não encontrou nenhuma referência dele nas redes sociais. Hazel estranhou, mas supôs que, como sacerdote, ele desejasse uma vida discreta.

E continuou as pesquisas na internet, agora sobre o caso do padre Echeverría, mas as notícias que circularam na mídia não traziam nenhuma novidade. Hazel já ia desligar o computador quando seu olhar se deteve numa das caixas de diálogo á esquerda: - “Caso do padre encontrado carbonizado no seu quarto continua sem solução”. – ela a abriu e surgiu uma notícia veiculada em maio de 1977 sobre o misterioso acontecimento em Santa Rosa de Minas, quando o corpo do padre Messias Correia foi encontrado completamente carbonizado no quarto de sua casa num incêndio sem explicação.  - Ora, ora; então outro padre morreu queimado na mesma cidade, quarenta e dois anos antes,... Tem que haver alguma relação!

No dia seguinte, Hazel chegou cedo á Santa Rosa com algo em mente: encontrar a senhora Cordélia de um modo casual, e ao passar diante de sua residência á encontrou na varanda. A delegada aproveitou para cumprimentá-la: - Bom dia senhora Cordélia! – ela respondeu: - Bom dia doutora delegada. Pulou cedo da cama?

- Sempre acordo cedo, ainda mais com esse tempo abafado!

Cordélia chamou sua serviçal: - Bastiana; abre o portão para a doutora entrar! – Hazel pensou: “melhor impossível”, e falou: - Eu não quero atrapalhar! – a mulher abriu o portão e Cordélia respondeu: - Não atrapalha nada, doutora; senão eu não convidava! Sente-se, por favor.

Não era um casarão antigo, mas uma vivenda com arquitetura retilínea, azulejos coloniais e vasos de samambaias pendendo em grossas correntes. Havia cadeiras de vime bem convidativas e Cordélia bebia um suco de cor avermelhada. – A doutora aceita uma bebida para abrandar esse abafado? – Hazel aceitou e ela ordenou á serviçal: - Traga um desse para a doutora! – a mulher saiu e Cordélia falou: - Antes que a doutora me veja como uma escravocrata; saiba que eu pago um salário justo á Bastiana para ser minha acompanhante! - em instantes a serviçal trouxe o suco. – Experimente doutora!

Ela se sentiu como a Branca de Nave provando a maçã da bruxa, mas gostou da bebida: - Hum; tem sabor agridoce, e é forte!

Cordélia a olhou e disse. – É gaspacho: tomate, vinagre, pepino, cebola, azeite, umas ervas especiais e gelo: “una iguaria para los fuertes!” – e prosseguiu: - Eu não sou representante da aristocracia latifundiária brasileira de 500 anos como aquele padreco falou: minha família chegou á Santa Rosa em 1937, fugindo da Espanha, pois eles eram Anarquistas perseguidos pela ditadura de Franco! – Hazel ficou surpresa e ela prosseguiu: - Não acredite nas lendas da poderosa Cordélia, dona da metade da cidade, pois o legado dos “Murieta Castro” se limita a esta casa e uma fazenda, que está alugada. – deu uma pausa para beber e concluiu: - E então doutora; surpresa por eu ser uma imigrante espanhola?

- Confesso que sim senhora Cordélia. Se me permite, gostaria de saber a razão da aversão aos padres e á Igreja Católica!

- Ora; até aonde eu sei, a liberdade de opinião é livre neste país, embora alguns tentem cercear esta liberdade á grupos que se acham donos da verdade! Assim, não sou obrigada á gostar da Igreja Católica!

- Certamente senhora. Mas, e quanto aos padres? A senhora foi bem contundente com o padre Arturo.

- Eu não gostei deste padreco estrangeiro. Tem cara de dissimulado! – abanou a cabeça: - Santa Rosa ficou sem padre por quarenta e dois anos, e só depois das pessoas cansarem de pedir é que a Cúria mandou aquele que morreu no acidente. Aí, de repente, mal o defunto esfriou para mandarem outro, quase á toque de caixa?

- Mas, ao que tudo indica, não foi acidente, foi um atentado que resultou na sua morte!

- Ah doutora! Qualquer um que morre em algum acidente tolo, falam que foi atentado, ou coisa que o valha, ao invés de imprudência e descuido!

Hazel resolveu provocar: - Bem, senhora Cordélia; temos informações que pode ter sido uma emboscada, pois algumas pessoas afirmaram ter ouvido galope de cavalos em perseguição ao carro antes de pegar fogo!

Cordélia fez uma expressão severa enquanto Bastiana chegava á varanda: - Dona Cordélia, eu vou sair.

- Não vai não! Precisamos conversar. - se deu conta que Hazel a observava: - Temos coisas daqui de casa para resolver, agora! – se virou á delegada: - Doutora,... Preciso entrar!

- Oh, claro senhora Cordélia! – pôs o copo na mesinha: - Também preciso ir! – e ficou olhando Bastiana empurrar sua cadeira de rodas para dentro de casa entre resmungos, e fechar a porta.

Enquanto saía, Hazel pensava na coincidência de Bastiana ter discutido com Madalena sobre algo que deveria parar de acontecer. Estaria se referindo á atentados contra padres? Depois seguiu á delegacia.

Não fosse o caso do incêndio misterioso, aquele dia se arrastaria lentamente, como sempre. Hazel ficou uns instantes conversando com os dois guardas até sair novamente, desta vez rumo á igreja.

A porta estava fechada, então ela andou á parte de trás onde ficava um acesso á sacristia, e a porta estava entreaberta. Ao entrar, viu alguns botijões de gás e uma imagem de São Geraldo Majela em tamanho natural, e nova. No chão havia uma caixa de papelão, aberta, com restos de isopor e plástico. Ela chamou pelo sacerdote e não houve resposta, então seguiu mais um pouco chegando á um passadiço atrás do altar e ouviu a voz do padre, na sacristia, que parecia falar ao telefone. Hazel parou para ouvi-lo, mas falava em italiano, e muito baixo. Então retornou á saleta e saiu antes que ele notasse.

Á tarde, após o almoço, Hazel lia o laudo da perícia no carro do padre Echeverría em busca de detalhes que lhe tivessem escapado. Meio maçante até que algo lhe saltou os olhos: um trecho afirmando que o fogo teria começado no banco do motorista atingindo a incrível temperatura de 5.000 graus Celsius em menos de 20 segundos, causando carbonização quase instantânea do corpo do padre e o derretimento do material plástico que revestia o volante do carro, chegando a envergar as armações metálicas do banco, como se o corpo do padre entrasse em combustão espontânea. Então seu celular tocou: era uma voz solene pedindo que aguardasse porque o Arcebispo iria falar, e em minutos o clérigo chegou ao fone com palavras de agradecimento pelo empenho da polícia na elucidação daquele caso, que causava enorme apreensão á comunidade católica. Ela respondeu: - Muito obrigada! Eu fico honrada pela confiança de Vossa Excelência na policia, e também pelo carinho á comunidade de Santa Rosa ao enviar o padre Arturo Montese tão prontamente! – houve um breve silêncio até o Arcebispo falar: - Não compreendi. Á quem a doutora está se referindo?...

 

CONTINUA...

 

 

 

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