terça-feira, 27 de julho de 2021

CONTOS DO VIGÁRIO #05

 

VIGÁRIO Robson

 

VIGARICE: ação ou caráter do vigarista; logro; burla.

Ele nunca teve dúvidas sobre sua vocação religiosa. Desde criança interessava-se pelas coisas da Igreja católica, e quando decidiu ingressar no seminário, não foi surpresa. Inclusive, foi dos alunos mais destacados pela sua oratória e aplicação nos estudos da religião, deixando vicejar uma brilhante carreira dentro da Igreja.

Atuava como vigário de uma das mais disputadas paróquias da cidade na zona sul, e todos não tinham dúvidas que em breve chegaria ao grau de bispo.

 No entanto, apesar de tanto êxito e prestígio, agora, na maturidade, ás vezes pensava no caminho que não seguira. Não referia ao sexo, porque teve mulheres nas férias do seminário, que cessaram totalmente quando se ordenou padre. Então qual a razão daquela gastura que o afligia, fazendo-o desviar o olhar dos decotes e barras de saias femininas, numa incômoda saudade do tesão proibido? Seria este o motivo; o que não se pode mais?

Em conversas com o arcebispo que foi seu mentor, Robson revelou esta angústia e foi aconselhado á mergulhar nas orações e estudos a fim de espantar esta tentação. – Suas dúvidas não me espantam, pois sempre foi curioso, e isto é exatamente o que te faz especial, Robson! – falava calmamente: - Quando nos tornamos sacerdotes, não deixamos de ter desejos porque nosso corpo continua pertencendo ao lado mundano da existência. Mas o espírito e a mente passam a fazer parte de outra dimensão: da fé e da misericórdia, e assim aprendemos a sublimar esses impulsos, que não nos pertencem mais em razão do mundo espiritual. Deus está lhe testando, Robson! - eram sábios conselhos, sólidos como a água que bate nos rochedos; pensava.

Mas tomou para si a tarefa de refrear seus impulsos.

Porém, um dia ouviu falar nos aplicativos de encontros amorosos no celular. Foi na confissão de um adolescente e, como bom conselheiro, padre Robson não encorajou o jovem á usá-lo por que poderia favorecer á prostituição. Mas isto lhe aguçou a curiosidade.

Descobriu que o aplicativo proporcionava certo anonimato, pois os perfis criados pelos usuários poderiam ser fictícios. Abanou a cabeça e desligou imediatamente o celular: - Oh meu Deus; o que está acontecendo comigo? – perguntava-se.

Mas como resistir ao doce depois de aberta a lata?

Uma noite acordou assustado, com as mãos no meio das pernas se masturbando ante ao sonho com uma mulher á qual entregava a hóstia consagrada na boca de lábios carnudos e vermelhos, entreaberta, na língua. Conseguiu evitar o desfecho, mas não á vontade.

Foi para a sala buscar um bom livro, mas não saía do primeiro parágrafo. Na TV religiosa, apenas preleções de sacerdotes que considerava rasos de intelecto. Então abanou a cabeça, e pensou: - Para combater o pecado, é preciso conhecê-lo! – apanhou seu celular e baixou o aplicativo. Pronto, estava aberta a estrada para o tal pecado. Teria que criar um perfil com foto que obviamente não poderia ser identificável. Então se lembrou de uma velha fotografia tirada numa praia, quando, de férias, deixou a barba por fazer por quinze dias e usando camisa aberta no colo, que não compartilhou ou mostrou á ninguém; estava irreconhecível. Quanto ao nome buscou inspiração num ator que admirava muito: Johnny Depp. Então ficou Johnny! Profissão: professor, e era verdade. Idade: 40 anos, também real. Estado civil: solteiro, é obvio! Intenção? Pensou um pouco. E colocou: sem compromisso, apenas amizade. Não mensurou se isto pareceria ambíguo, pois não pretendia levar adiante qualquer contato. Pelo menos tinha isto em mente. Preferência de gênero? Colocou: apenas mulheres. Pronto, publicado!

A brincadeira lhe trouxe algum alívio, junto ao desejado sono. Então desligou o celular, e seguiu á cama.

No dia seguinte, só ligou o aparelho após a missa das 6hs, e havia mensagens no aplicativo. Depois de escrupulosos instantes de hesitação, Robson o abriu; e eram fotos de mulheres bonitas, algumas sensuais, e outras que não deixavam dúvidas: eram garotas de programa. Perfis com predominância de professoras de todas as disciplinas. Idades? Variadas. Nomes? Das mais singelas Marias, á mais extravagante Jhennyffer; Algumas de outros estados e cidades, todas querendo conversar para se conhecerem melhor, inclusive propondo encontros para aquela mesma manhã! Algumas eram produzidas demais para serem reais, parecendo modelos. Diziam-se solteiras ou separadas, mas quais seriam realmente daquele jeito, e quais seriam mulheres casadas em busca de aventuras extraconjugais?  Robson se sentia tão perdido como um cego em um labirinto em meio a tantos rostos se oferecendo em busca de algo: atenção, relacionamento, sexo? Então saiu do aplicativo, mas não o desinstalou; apenas precisava um tempo para mensurar aquilo.

Era obvio para ele que não procuraria nenhuma daquelas mulheres. Sua convicção quanto ao sacerdócio e o celibato eram inquestionáveis, e se o aplicativo serviu para algo, foi reforçá-la. Por outro lado, sentia obrigação de dar alguma satisfação ás mulheres que o procuraram antes de desinstalar o aplicativo sem, no entanto, revelar que se tratava de um padre. Então buscou seu celular e começou a responder á mensagens pedindo desculpas e dizendo que apenas ficou curioso em conhecer o aplicativo. Recebeu algumas respostas rudes, chamando-o de  babaca e palhaço, além de xingamentos de viado e filho da puta, ou simplesmente “ok”. Mas ainda não podia desinstalar porque chegavam novas mensagens, ás quais respondia do mesmo jeito. Algumas eram insistentes e perguntavam: - Você é tímido? – e ousadas: - O que você precisa, eu tenho, e está toda molhadinha á sua espera, baby!

Com o tempo as mensagens foram se acabando. Contudo, uma parecia mais insistente: - Por que não quer falar comigo?

Ele não respondia, esperando que se cansasse e desistisse. Mas ela persistia:

- Seja o que for eu vou entender. Você é gay, é isto?

Novamente não respondeu.

- Eu posso ser sua amiga. Toda mulher bonita tem um amigo gay, né?

Nem tinha o que dizer.

- Não. Você não é gay. Senão teria colocado isto no perfil, não é?

Eram mensagens diárias que Robson não respondia.

- Por favor, Johnny, não me deixe nesta angústia. Responda-me!

Incrível, ela não desistia.

- Você não gostou de mim, né? Pode falar, eu aguento!

Todos os dias.

- Pessoas como você são más, sabia? Colocam-se á disposição e depois somem.

Ás vezes mais de uma vez ao dia.

- Eu não acredito que você seja assim!

Toda hora.

- Por favor, fale alguma coisa!

Se respondesse sabia que criaria um vínculo que não queria.

- Não é certo fazer isto! Você é pior que todos os outros. É mau!

Então no dia seguinte não houve mensagens. Robson respirou com alívio: a mulher que se apresentava como Paloma, parecia ter desistido. – Que isto sirva de lição. Realmente, Deus me pôs á prova! – concluía. Mas ainda não desinstalou o aplicativo.

Á noite, ao final da missa das 18hs Robson seguia ao estacionamento da igreja quando decidiu conferir o celular e desinstalar o aplicativo, mas encontrou a seguinte mensagem de Paloma:

- Está bem, pode parar! Já saquei qual é o seu joguinho Johnny. Se fazendo de difícil para tornar a coisa ainda mais excitante, mas também sou boa em jogos, e vou lhe aplicar um xeque mate! Estarei a sua espera no Biblo’s Pub hoje ás dez horas da noite completamente louca de tesão, e sei que você também está. Eu quero você dentro de mim! Estarei usando um vestido vermelho com echarpe rosa. Advirto para não me dar bolo, senão eu me mato! Não duvide, falo sério, e darei um jeito de você saber que fiz isto por culpa sua!

Robson encostou-se á lateral do carro completamente atônito ante aquela ameaça: “eu me mato!”. Seria realmente sério?

Ele chegou assustado e perdido ao seu apartamento. Primeiro pensou em responder á mensagem se apresentando como padre, e explicando que apenas quis entender o que era aquilo; mas se deteve ante a imprevisibilidade da reação de Paloma. E se isto a excitasse mais ainda? Ele bem sabia dos fetiches envolvendo sacerdotes! Pensou em alegar inúmeras coisas: de ser casado ou portador alguma enfermidade; talvez HIV! – Não, não; isto seria uma mentira idiota! Oh meu Deus, o que fui arrumar! – pensou ainda em buscar conselhos com o arcebispo, seu mentor: - Não posso; ele depositou tanta confiança em mim. Ficaria desapontado com minha fraqueza! E eu, envergonhado.

Meditou uns instantes e decidiu ir ao encontro de Paloma. Não tinha nada em mente; deixaria o desenrolar da trama nas mãos de Deus. Porém, procuraria se disfarçar para não ser reconhecido, o que nem seria tão difícil porque a foto do perfil trazia-o mais jovem sem cabelos grisalhos despontando nas têmporas. Também buscou roupas sóbrias e seus óculos de leitura. Ao sair ao encontro, ainda hesitou uns instantes. Talvez fosse melhor simplesmente desinstalar o aplicativo e esquecer o assunto; mas imaginar que Paloma realmente cumprisse a ameaça de suicídio, poderia se tornar um fantasma a persegui-lo para o resto da vida. Então abriu a porta e saiu.

Descobriu a localização do Biblo’s Pub num local cheio de casas noturnas. Era um bar pequeno e discreto com poucas mesas, todas ocupadas, e um balcão onde pessoas sentadas em tamboretes altos bebiam e conversavam. O ambiente estava á meia luz, assim ele demorou a identificá-la até avistar seu vestido vermelho. Robson respirou fundo e andou até ela, que havia deixado sua bolsa sobre o tamborete ao lado para marcar o lugar onde Johnny se sentaria. E agora? Estava ali ao lado de Paloma sem saber o que fazer, até ela lançar um olhar. Seu rosto era idêntico ao da foto do perfil, com olhos amendoados claros e cabelos pretos e curtos. Era bonita, mas um tanto fora de forma. Robson temeu ser reconhecido, mas notou que seu disfarce funcionou; então perguntou.

- Perdão senhora; este lugar está ocupado?

Ela olhou o tamborete, e apanhou sua bolsa, dizendo: - Pode se sentar: eu não estou esperando nada. Pelo menos, nada que valha a pena.

Robson dissimulou: - Como disse senhora?

- Que esteja á vontade, pode se sentar!

Ele sentou ao lado de Paloma, que parecia beber martini enquanto olhava seu relógio. Mas não sabia o que fazer. Então, o barman veio e perguntou o que ele queria beber: - Ah,... Bem. Tem refrigerante? – Paloma olhou de lado, e ele prosseguiu. – É que eu não bebo nada com álcool.

- Temos cerveja sem álcool senhor. – passou-lhe o cardápio, e Robson respondeu: - Não. Eu prefiro refrigerante: traga uma coca-cola light, por favor.

- Gelo e limão senhor?

- Pode ser! – e sorriu sem jeito. Paloma continuava olhando-o de lado; era a chance de tentar puxar assunto. – É que sou,... Padre. – mostrou o dedo com anel.

- Padre? – ela estranhou: - Não é da minha conta, mas o que um padre veio fazer num pub?

- Eu vim em visita á uma pessoa na vizinhança, e resolvi beber alguma coisa. Como aqui só tem bares e casas noturnas abertas á esta hora, eu entrei. Mas observei que a senhora estava guardando o lugar para alguém; assim que chegar, eu me retiro.

- Não se preocupe padre. Talvez ele não venha e,... Á bem da verdade, eu espero que não venha. – houve um instante de silêncio até ela prosseguir: - Padre, eu sei que isto aqui não é hora e nem lugar, mas,... Eu estou precisando muito conversar com alguém, e busquei isto num sujeito que não conheço, num aplicativo de encontros. O senhor sabe o que é isto?

- Sim,... Ouvi falar.

O barman trouxe o refrigerante e ela disse: - Pois então,... Eu marquei encontro com ele aqui. Não; eu o intimei a vir! – suspirou: - Como é seu nome padre?

- É... – ele já ia responder “Johnny”. Mas segurou: – Meu nome é Robson. E a senhora como se chama?

- Sou Sandra! Bem: sou casada há vinte anos e tenho dois filhos. – suspirou novamente: - Amo meu marido. Ele é um homem bom; mas,...

- Pode falar filha. – ao mesmo tempo ele pensou: “nem acredito que estou ouvindo confissão num bar!”.

Sandra prosseguiu: - Ele,... Ele não consegue me satisfazer no,... No relacionamento íntimo. Entende padre Robson?

- A senhora está querendo dizer, no sexo?

- Fico sem graça de falar, mas é exatamente isto. Denis, meu marido, não consegue me dar prazer!... Eu finjo para não desapontá-lo, e ele não percebe!

- Isto,... Isto foi sempre? – pensou: “o que estou perguntando?”.

Ela respondeu. – Acho que sim. – aproximou: - Eu me casei virgem, e Denis foi meu primeiro homem; então eu achava que todos eram assim!... Mas, quando falava com minhas amigas, elas falavam dos seus relacionamentos de outro jeito! Então eu,... Eu descobri este aplicativo e marquei encontro com um homem. Sei que estava traindo meu marido, mas não conseguia mais aguentar a dúvida!

- Não havia maneira de conversar isto com ele?

- Não! Denis é um pouco refratário á conversas. Então eu,... Eu fiz sexo com um homem que nunca tinha visto na vida! Sei como se chama isto: adultério! – bebeu o resto da taça e continuou: - Então eu vi que o sexo com outro homem era diferente. Melhor!... Aí veio á culpa, e outra coisa,... – Sandra hesitou.

- Pode falar filha! – pensou: “essa maldita curiosidade! Se segure Robson!”.

- Este homem não me procurou novamente e nem me respondeu; e isto me angustiou muito. Talvez o problema fosse comigo! Então eu comecei a procurar outros homens no mesmo aplicativo, e acontecia do mesmo jeito,... Por que fui procurar essa merda...? Desculpe padre.

- Você está arrependida?

- Não sei dizer. Só sei que sinto uma angústia que me sufoca! Nem sei mais se amo Denis, ou me acomodei á ele!... Ao jeito dele,... No inicio do nosso casamento, ele era ciumento, e, confesso que eu gostava disto. Mas agora,... – deu de ombros: - Agora parece,... Nada! Então quando eu encontrei este homem no aplicativo há uns dias, eu quis marcar um encontro, mas ele não me respondeu! Isto me deixou louca,... Uma rejeição mesmo antes de me conhecer? - Robson se sentiu culpado, e ela prosseguiu: - Então eu ameacei cometer suicídio se ele não viesse me encontrar hoje, neste bar!

Ele tirou os óculos e a encarou: - Você pretendia fazer isto? É pecado atentar contra a vida!

- Claro que não padre; foi só uma chantagem idiota inventada no desespero!... Agora estou aqui, torcendo para ele não vir! Que idiotice.

Robson pensou: “ele já está aqui ao seu lado, se sentindo tão idiota como você!”. E perguntou: - Bem, Sandra: se não queria encontrar este homem, porque veio?

- Sei lá!... Talvez para lhe disser um monte de desaforos; chamá-lo de babaca! Coisa mais inútil. – abanou  cabeça e olhou Robson: - Acho que foi Deus que lhe trouxe aqui, padre. Esta conversa me fez bem. Estou mais calma, porém:... Morta da vergonha.

- Abrir a alma não é motivo de vergonha filha, mas de coragem! – “que frase mais lugar comum!”. Pensou.

Ela olhou para os lados. – Só que eu não quero mais encontrá-lo! É melhor ir embora antes que ele chegue. – Sandra desceu do tamborete e Robson viu que era baixinha. – Muito obrigada padre! – pagou a conta e saiu apressada. Fez sinal á um taxi e entrou rápida no carro antes que Johnny chegasse e a visse. Sentia-se aliviada e decida á ter aquela inevitável conversa com seu marido, mas havia algo mais a fazer. Buscou seu celular, abriu o aplicativo e lá estava a foto de Johnny. Então enviou mensagem: - Desculpe e me esqueça. E não se preocupe com a ameaça de suicídio. Era blefe.

Mas antes de desinstalar o aplicativo, olhou bem a foto do perfil de Johnny: seus olhos pareceram-lhe familiares. Então abanou a cabeça: - Acho que estou ficando doida mesmo! – e desinstalou o aplicativo.

No pub, padre Robson recebia a mensagem, e pouco depois o perfil de Paloma desapareceu. Então ele também desinstalou o aplicativo; guardou o celular no bolso do blazer, e ficou uns instantes fitando o copo de coca-cola light com gelo e limão. Mesmo com uma conversa meio desencontrada, Sandra teve sua angústia mitigada por um tempo. E ele?

“Hum, ela é baixinha, mas bem gostosa”. Pensou, e exclamou: – Oh Deus!

O barman ouviu e respondeu: - Pois não, senhor?

- Ah,... Por favor, me traga um uísque?

- Com gelo?

- Não. Cowboy!

E buscou seu celular procurando lembrar-se do nome de algum ator favorito.

Afinal, como resistir ao doce depois de aberta a lata?

 

FIM (?)

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